Arqueologia da Performance e dança oriental
A arqueologia é a ciência que estuda o passado através da cultura material, ou seja, dos vestígios materiais das sociedades, enquanto a história, tradicionalmente, o faz através dos documentos escritos. Por sua natureza gestáltica, digamos, a arqueologia necessita de seus pesquisadores em campo e para um trabalho que aborda aspectos tão diversos que só podem ser estudados de forma interdisciplinar. Todo o processo de uma investigação arqueológica, desde a escavação até o laboratório, chega a envolver uma gama enorme de profissionais: geólogos, biólogos paleontólogos, geógrafos, antropólogos, nutricionistas, bioquímicos, historiadores, arquitetos etc. Todos os saberes são convocados para a análise do material em si, do contexto em que o sítio foi encontrado, da relação deste na geografia e geologia do espaço que o circunda, da sociedade, da fauna e da flora que o habitou, à luz das possíveis e prováveis sucessivas ocupações e mudanças que sofreu. Quando então todos esses estudos são cruzados, algumas hipóteses são construídas. Esse conhecimento movediço não difere muito da história e constitui também uma forma de construção histórica, sujeita igualmente às questões teóricas, ideológicas e metodológicas pinceladas anteriormente.
Entretanto, a arqueologia não estuda mais somente as sociedades antigas da pré-escrita, como fazia antigamente, estuda também as sociedades históricas e atuais, e desenvolveu uma série de métodos diversificados para somar conhecimento das áreas adjacentes. Um desses métodos é a Arqueologia Experimental, derivada da Antropologia da Experiência, que enfatiza a necessidade de vivenciar e experienciar as sociedades estudadas. Assim, por exemplo, falando a grosso modo, o pesquisador numa fábrica lítica (de artefatos de caça feitos de pedra), irá ele próprio tentar produzir lascas de flechas com o mesmo tipo de rocha encontrada no local, testando técnicas a fim de compreender como funcionava, na prática, a técnica utilizada para isso, ou de confirmar sua hipótese. Seguindo esse caminho, a etnografia, etnomusicologia e as áreas artísticas afins passaram a agregar-se recentemente a um novo campo da arqueologia, denominado Arqueologia da Performance, aberto pelo arqueólogo Michael Shanks, da universidade de Stanford (EUA), que se ocupa de estudar as expressões performáticas das sociedades históricas, o que inclui desde o teatro e a música, até, obviamente, a dança. A inovação metodológica é que esta corrente incorpora os saberes tradicionais como ferramenta de estudo e reconstituição histórica.
Em 2008, a pesquisadora Alessandra Lopes y Royo abriu caminho, na Inglaterra, para os estudos da Arqueologia da Performance da dança. Além de utilizar os recursos da Arqueologia da Performance para reconstituir uma dança indiana antiga, Royo propôs que a dança poderia trabalhar como interface da arqueologia na pesquisa de danças históricas. Esta proposta baseia-se na ideia presente em seu trabalho de que toda bailarina, uma vez que incorpore elementos culturais relativos ao passado de uma dada cultura, já trabalha numa chave de interpretação histórica.
Trata-se, por um lado de encarar a dança como artefato. Nesse sentido, artefato é algo cuja materialidade funciona como meio para revelar, ao menos hipoteticamente, aspectos da sociedade que se descortina por trás das técnicas de sua fabricação, uso e funções específicas, que revelam ainda certas normas estéticas, sociais, etc., que o abarcam. No caso da dança, tratamos do artefato em ao menos dois níveis: o mais concreto da vestimenta, dos adereços, etc., e o nível da forma essencial da dança, que não é material, mas pode ser definido através dos elementos coreográficos centrais e seu simbolismo. E mais profundo, dos fatores que determinam sua preservação através dos tempos (e, por isso mesmo, sua transformação através da história), apesar de seu caráter efêmero dessa e a sua dependência do corpo presente, inevitavelmente carregado de diversas outras referências além daqueles contidos na “modalidade/período” que se pretende representar, tornando bastante complexo o seu sentido de “artefato”.
Se do ponto de vista da representação cênica ou visual, uma determinada coreografia original pode parecer indicar com precisão tal ou qual sociedade ou período, respeitando os figurinos e adereços, etc., do ponto de vista histórico isso representa um grande problema: quanto mais delimitada a referência de lugar, tempo e tema de uma dança, mais essa concepção tenderá a apagar a riqueza de sua real trajetória em termos da diversidade cultural que abarca e das influências históricas sucessivas que sofreu. Do ponto de vista existencial, a sua representação também inclui o problema da corporalidade do bailarino com sua trajetória particular as marcas das experiências pessoais contidas no seu “léxico gestual”, na expressividade do seu movimento. Essa representação/experiência está contextualizada pelo presente e variará imensamente conforme o lugar social, cultural e político da bailarina/pesquisadora e do seu escopo científico para a incorporação deste passado. Assim, como já se debate no campo da Arqueologia e da História, uma determinada forma de apropriação e interpretação do que chamamos de tradição pode revelar uma filiação – consciente ou não - a determinada representação da identidade, posicionada politicamente. Uma vez que o campo da cultura e da política são indissociáveis, todo artefato torna-se, nesse caso, especialmente disputado pelo discurso oficial ou grupos de interesse, para compor uma identidade. A questão da identidade sempre está posta, intencionalmente ou não, e será objeto de disputa política ou cultural, ou de ambas.
Executar uma dança antiga, seja dita folclórica/tradicional ou uma reconstituição histórica, como é o caso das danças do repertório oriental ou árabe, por exemplo, pressupõe certa pesquisa anterior para identificar a origem, a forma como foi elaborada, quando, onde, porque e para quem era realizada, em quais circunstâncias específicas, e qual a sua função, visualizando-se todos esses fatores num conjunto de práticas sociais e culturais mais amplo. Assim, diz Royo, todos os profissionais envolvidos no campo da dança podem explorar o trabalho da dança como artefato, utilizando como ferramenta a História, suas técnicas investigativas de datação, pesquisa documental, periodização e contextualização, estudo de campo, delimitação teórica e viés interpretativo. Isso torna necessário incorporar ao ambiente acadêmico da dança, com respeito e profundidade, as prerrogativas teóricas e metodológicas das áreas da etnologia, antropologia, história e arqueologia, que servem como base para fundamentar o exercício da prática, docência e criação artísticas da investigação corporal em danças étnicas ou históricas.
Sabemos que muito material é utilizado por professores e artistas de palco sem proceder ao que denominamos nas humanidades de crítica das fontes e discussão historiográfica. Royo também chama a atenção para o fato de que no caso das danças “étnicas”, não há divisão entre quem compõe, teoriza e quem executa a pesquisa corporal, de forma que isto torna ainda mais importante uma aproximação interdisciplinar entre História, Arqueologia, Antropologia, Etnologia e Teoria da Dança. Em tal aproximação, as discussões sobre preservação e herança cultural, por exemplo, podem trazer enorme reflexão a respeito da relação entre criação e tradição, passado e contemporaneidade das modalidades de danças pesquisadas e sobre o estudo das influências inter-culturais, bem como da condição política e ideológica dos discursos que se elaboram a partir de determinada interpretação – que corresponde ao resgate e preservação ou alteração e atualização - das tradições representadas.
Entretanto, a arqueologia não estuda mais somente as sociedades antigas da pré-escrita, como fazia antigamente, estuda também as sociedades históricas e atuais, e desenvolveu uma série de métodos diversificados para somar conhecimento das áreas adjacentes. Um desses métodos é a Arqueologia Experimental, derivada da Antropologia da Experiência, que enfatiza a necessidade de vivenciar e experienciar as sociedades estudadas. Assim, por exemplo, falando a grosso modo, o pesquisador numa fábrica lítica (de artefatos de caça feitos de pedra), irá ele próprio tentar produzir lascas de flechas com o mesmo tipo de rocha encontrada no local, testando técnicas a fim de compreender como funcionava, na prática, a técnica utilizada para isso, ou de confirmar sua hipótese. Seguindo esse caminho, a etnografia, etnomusicologia e as áreas artísticas afins passaram a agregar-se recentemente a um novo campo da arqueologia, denominado Arqueologia da Performance, aberto pelo arqueólogo Michael Shanks, da universidade de Stanford (EUA), que se ocupa de estudar as expressões performáticas das sociedades históricas, o que inclui desde o teatro e a música, até, obviamente, a dança. A inovação metodológica é que esta corrente incorpora os saberes tradicionais como ferramenta de estudo e reconstituição histórica.
Em 2008, a pesquisadora Alessandra Lopes y Royo abriu caminho, na Inglaterra, para os estudos da Arqueologia da Performance da dança. Além de utilizar os recursos da Arqueologia da Performance para reconstituir uma dança indiana antiga, Royo propôs que a dança poderia trabalhar como interface da arqueologia na pesquisa de danças históricas. Esta proposta baseia-se na ideia presente em seu trabalho de que toda bailarina, uma vez que incorpore elementos culturais relativos ao passado de uma dada cultura, já trabalha numa chave de interpretação histórica.
Trata-se, por um lado de encarar a dança como artefato. Nesse sentido, artefato é algo cuja materialidade funciona como meio para revelar, ao menos hipoteticamente, aspectos da sociedade que se descortina por trás das técnicas de sua fabricação, uso e funções específicas, que revelam ainda certas normas estéticas, sociais, etc., que o abarcam. No caso da dança, tratamos do artefato em ao menos dois níveis: o mais concreto da vestimenta, dos adereços, etc., e o nível da forma essencial da dança, que não é material, mas pode ser definido através dos elementos coreográficos centrais e seu simbolismo. E mais profundo, dos fatores que determinam sua preservação através dos tempos (e, por isso mesmo, sua transformação através da história), apesar de seu caráter efêmero dessa e a sua dependência do corpo presente, inevitavelmente carregado de diversas outras referências além daqueles contidos na “modalidade/período” que se pretende representar, tornando bastante complexo o seu sentido de “artefato”.
Se do ponto de vista da representação cênica ou visual, uma determinada coreografia original pode parecer indicar com precisão tal ou qual sociedade ou período, respeitando os figurinos e adereços, etc., do ponto de vista histórico isso representa um grande problema: quanto mais delimitada a referência de lugar, tempo e tema de uma dança, mais essa concepção tenderá a apagar a riqueza de sua real trajetória em termos da diversidade cultural que abarca e das influências históricas sucessivas que sofreu. Do ponto de vista existencial, a sua representação também inclui o problema da corporalidade do bailarino com sua trajetória particular as marcas das experiências pessoais contidas no seu “léxico gestual”, na expressividade do seu movimento. Essa representação/experiência está contextualizada pelo presente e variará imensamente conforme o lugar social, cultural e político da bailarina/pesquisadora e do seu escopo científico para a incorporação deste passado. Assim, como já se debate no campo da Arqueologia e da História, uma determinada forma de apropriação e interpretação do que chamamos de tradição pode revelar uma filiação – consciente ou não - a determinada representação da identidade, posicionada politicamente. Uma vez que o campo da cultura e da política são indissociáveis, todo artefato torna-se, nesse caso, especialmente disputado pelo discurso oficial ou grupos de interesse, para compor uma identidade. A questão da identidade sempre está posta, intencionalmente ou não, e será objeto de disputa política ou cultural, ou de ambas.
Executar uma dança antiga, seja dita folclórica/tradicional ou uma reconstituição histórica, como é o caso das danças do repertório oriental ou árabe, por exemplo, pressupõe certa pesquisa anterior para identificar a origem, a forma como foi elaborada, quando, onde, porque e para quem era realizada, em quais circunstâncias específicas, e qual a sua função, visualizando-se todos esses fatores num conjunto de práticas sociais e culturais mais amplo. Assim, diz Royo, todos os profissionais envolvidos no campo da dança podem explorar o trabalho da dança como artefato, utilizando como ferramenta a História, suas técnicas investigativas de datação, pesquisa documental, periodização e contextualização, estudo de campo, delimitação teórica e viés interpretativo. Isso torna necessário incorporar ao ambiente acadêmico da dança, com respeito e profundidade, as prerrogativas teóricas e metodológicas das áreas da etnologia, antropologia, história e arqueologia, que servem como base para fundamentar o exercício da prática, docência e criação artísticas da investigação corporal em danças étnicas ou históricas.
Sabemos que muito material é utilizado por professores e artistas de palco sem proceder ao que denominamos nas humanidades de crítica das fontes e discussão historiográfica. Royo também chama a atenção para o fato de que no caso das danças “étnicas”, não há divisão entre quem compõe, teoriza e quem executa a pesquisa corporal, de forma que isto torna ainda mais importante uma aproximação interdisciplinar entre História, Arqueologia, Antropologia, Etnologia e Teoria da Dança. Em tal aproximação, as discussões sobre preservação e herança cultural, por exemplo, podem trazer enorme reflexão a respeito da relação entre criação e tradição, passado e contemporaneidade das modalidades de danças pesquisadas e sobre o estudo das influências inter-culturais, bem como da condição política e ideológica dos discursos que se elaboram a partir de determinada interpretação – que corresponde ao resgate e preservação ou alteração e atualização - das tradições representadas.