O Holocausto Iraquiano

Sex, 16/09/2011 - 13:45

Fica claro que não podemos esperar transparência nos meios propagandísticos da máquina hegemônica americana. Com vias a consolidar seu domínio político-econômico-militar sobre os países do Golfo, proclama-se na salvaguarda dos direitos humanos, da liberdade e da democracia, quando, efetivamente, promove a ditadura, a submissão e a exploração dos povos da terra. Muitos estadistas encontram-se obrigados à subserviência indesejada, porque não podem fazer face ao poderio bélico que lhes restringe o direito de escolha e autodeterminação.


O Iraque vem sendo alvo sistemático de uma campanha que, em paralelo às continuadas ações militares sobre seu território por parte dos anglo-americanos, tenta impor uma aceitação acrítica das insanas medidas que hoje querem decretar uma nova guerra, de proporções incalculáveis. Uma guerra neocolonialista, sem respeito algum pela soberania dos países, soberania esta que os EUA já declaram obsoleta.

Quando se pretende destruir uma nação para espoliá-la, a primeira coisa a fazer é demonizar seu líder, desmoralizar seu governo e sabotar todas as medidas legais que este tome em causa própria. As inspeções de armas no Iraque nada mais são do que o desmembramento covarde de sua capacidade de defesa. O ex-diretor da O.P.A.Q., o brasileiro José Bustani, foi destituído de seu cargo porque trabalhou pela inserção do Iraque na comunidade internacional, já que os EUA visam o isolamento absoluto do país, impedindo a recuperação das relações políticas e econômicas. O boicote do petróleo iraquiano aumenta o preço do produto no mercado e as empresas lucram com isso.

O Iraque deve ser, segundo os EUA, necessariamente, um país marginal. Sua imagem no resto do mundo deve ser a do eixo do mal, um fora da lei.

Por ocasião do 11 de setembro, a história ingressou num novo capítulo, onde a tragédia foi usada em toda a força da pura teatralidade. É a história como espetáculo, um vídeo-teipe várias vezes repetido. Enquanto isso, em tempo real, milhões e milhares de outras mortes têm sido perpetradas pelos bombardeios e embargos desumanos. Elas continuam anônimas, mudas, indefesas, sem representação, genocídios camuflados e condenados a não exercer, na consciência dos novos telespectadores da história, a mínima reação.

A verdade não deve ser contada. Por isso, o presidente Bush proibiu qualquer pergunta, qualquer reflexão moral e política sobre os atentados, alegando traição patriótica. Assim, ainda hoje, para muitos, as causas do 11 de setembro permanecem ignoradas. De igual modo, não se fazem perguntas sobre o Iraque.

O Oriente Médio encontra-se sob o cerco de estereótipos ignorantes e manipulativos, que evitam, conseqüentemente, a legitimação de suas causas. Seus caminhos, no que se refere à arte, à cultura, à religião, à política e à civilização, não se encontram mumificados num Islã fatalista e conservador, mas num Islã ressurgente. Trata-se, aí, do epicentro fervilhante, onde brotam novas diretrizes, novas dúvidas e novos insights, cuja característica consiste em equacionar o vasto legado do passado com os revolucionários rumos do presente. É óbvio que essa ressurgência confronta os planos do imperialismo americano-sionista, congelado em sua hegemonia unilateral, ameaçado, em seu poder, por toda e qualquer voz que clame pela diferença, pelo menor e mais silencioso movimento de contestação.

A obra de Samuel Hungtinton, diretor do Instituto de Estudos Estratégicos de Harvard, pretende criar a ilusão de que a sociedade ocidental é a única onde os valores humanos, sociais e democráticos são respeitados. As demais civilizações, em especial a islâmica (com seu um bilhão de fiéis), devem ser destroçadas e combatidas, já que carecem de humanismo. Ora, a lógica pervertida dessa ideologia fascista serve de respaldo à conduta militar do Império, com fins a garantir as ricas reservas petrolíferas.

Iraque. Ereck bíblica. Uruck. Earth. Terra. Terra onde surgiram os fundamentos da cultura, o berço da civilização. Terra onde se edificou a Torre de Babel, onde as mil línguas faladas se tornaram a primeira difusão histórica da multiculturalidade.

Iraque. Ur. Caldéia. Abrãao faz brotar o tronco original das três religiões semíticas: judaísmo, cristianismo e islamismo, estabelecendo assim o sustentáculo da Tradição Primordial.

Iraque, século VIII. O califa Al Mansur funda Bagdad, aquela que se ergueu, como um estandarte de ouro no levante, para selar a união entre Oriente e Ocidente, entre a Antiguidade e a Modernidade. Seu humanismo converteu-se num dos pilares da Renascença européia.

Iraque. Século X.X. Saddam Hussein, humilde camponês, nasce em Tikrit, a mesma cidade de Saladin, que foi a maior figura da história medieval no Islã e viveu para unificar a vasta nação árabe e muçulmana e defender a Terra Santa dos cruzados que se abateram sobre Jerusalém em busca de saques.

Saddam Hussein participou de uma revolução em 1968 cujo objetivo, além de lançar o Iraque nos tempos modernos, foi implantar, gradualmente, uma nova era de ascensão pós-colonial no Oriente Médio. Socialista e panarabista, - inspirado em Nasser e Saladin, - pregou a união dos árabes, criando em Bagdad um centro de cultura, arte, tecnologia e ciência que deveria expandir um grande intercâmbio além-fronteiras. Apreciador de escultura, pintura e arquitetura, constelou sua capital de inúmeros novos monumentos. Decidido a levar a cabo a ideia de uma renascença árabe, deu ímpeto a todas as áreas do saber, à arqueologia, ao turismo, reconstruiu museus e valiosas ruínas sumero-babilônicas, dentre outras, e criou instituições culturais avançadas.

Nacionalizou o petróleo, equipou os mais modernos hospitais e escolas com total franquia para todos (o padrão de vida do povo iraquiano elevou-se a um dos mais altos do Oriente Médio).

Deu direitos iguais a homens e mulheres. As mulheres passaram a ocupar todos os cargos que desejassem. Ele acreditou na quebra das barreiras de raça, nacionalidade e religião.

Doutor em direito, poeta épico e visionário, escreveu romances e obras diversas em política, história, economia, sociologia e religião. Defensor da causa palestina, não facilitou o caminho da exploração internacional. Saddam quer dizer isto: o que confronta, o que não se desvia. E pagou o preço. Pagou caro. Mais caro que Salvador Allende. Mais caro que o Vietnam.

Em 1991, uma coligação de 33 países liderada pelos EUA decidiu fazer uma operação cirúrgica: tirar o Iraque do mapa. Usando a desculpa de libertar o Kwait, a guerra do Golfo teve a finalidade de destruir totalmente a nação e decretar um genocídio a seu povo, que continua, ainda, sob a forma de sanções econômicas brutais.

A partir de 17/1/1991, durante 42 dias ininterruptos, Bagdad recebeu, em bombas, o equivalente ao que foi despejado sobre Hiroshima. Houve um verdadeiro ‘Apocalipse'. Num piscar de olhos, aquela próspera cidade regrediu ao nível das sociedades subsaarianas. O Iraque voltou à era pré-industrial. Como se não bastasse, 300 toneladas de lixo radioativo — urano empobrecido — foram atiradas sobre o país. Devido ao embargo que se seguiu a esse desastre, mais de um milhão e meio de iraquianos morreram e mais de oitocentas mil crianças, ainda agora, morrem lentamente nos hospitais, onde falta tudo, pois o país sofre boicote de medicamentos.

Foi permitido ao Iraque trocar petróleo por comida e remédios, mas isso, na prática, é uma farsa. Da venda de seu petróleo só recebe 30%, o resto vai para os bancos da América. Além disso, bombardeios anglo-americanos ininterruptos já somam duzentas mil toneladas de bombas em 12 anos. Monumentos, pontes, santuários, fábricas, palácios, hotéis se consomem nas cinzas. Todo o sistema elétrico e hidráulico, anteriormente um dos melhores do mundo, foi danificado. O embargo proíbe a importação de cloro, logo, a água contaminada não pode ser tratada.

Foram testadas as piores armas sobre o exército, 90% do seu efetivo dizimado, e sobre a população civil. Nem o Canadá se opôs ao uso de radiação, o que mostra o grau de decadência dos direitos humanos no Ocidente, tão civilizado. Mas o terror não pára. Trinta mil escolas foram postas abaixo, armazéns e colheitas incinerados. As crianças são as maiores vítimas. Quem visita o país volta com uma ferida indelével na alma, porque as mães nada têm para dar a seus filhos, senão o seu amor, enquanto a força moral e a fé destas pessoas estão desafiando o entendimento racional.

Há quem diga que o destino dessas crianças lembra a narrativa bíblica do sacrifício dos inocentes com o advento de Cristo. A guerra biológica contra o povo do Iraque que, segundo M. Albright,- ex-secretária de estado nos EUA, - é um preço legítimo pela consolidação dos seus interesses na região, foi denunciada pelo papa João Paulo II. É uma calamidade que coloca este povo como o maior mártir do século XXI. Um mártir do silêncio. Um mártir da omissão. Um mártir da história, sem espetáculo, sem direito a videoteipe na TV.

Organizações americanas e européias estão, hoje, reunindo artistas, políticos e intelectuais para condenar o embargo e parar a nova guerra — (nova guerra!) — antes que comece. Americanos signatários de uma carta aberta a Bush, publicada no The Guardian de Londres, em 14/6/2002, dizem: "Não em nosso nome! Não renunciaremos a nosso direito de perguntar. Não entregaremos nossas consciências em troca de promessas vazias de segurança. Estendemos a mão a todos que, pelo mundo afora, são vítimas dessa política: lhes demonstraremos solidariedade com palavras e atos!"

Assim como Hitler, Bush sonha com um poderio que dure para sempre: a supremacia infinita. Mas, como dizemos no Oriente: Allah hu Akbar, Deus é Maior!

Acordemos antes que seja tarde demais.

Texto originalmente publicado em 2002.