Contra o fundamentalismo, a força das idéias
Filme que aborda vida do filósofo Averrois valoriza força da razão e da reflexão contra fundamentalismos, seja ele de Estado ou de grupos religiosos. No debate do filme, da direita para a esquerda, o arquiteto Andrea Piccini, os professores de Literatura árabe da USP, Michel Sleiman e Safa Jubran, e o filósofo Miguel AttieComo parte do ciclo de cinema “Cultura árabe em debate”, realizado pelo Instituto da Cultura Árabe em parceria com o Centro Cultural São Paulo, foi exibido no dia 1º de julho, no Centro Cultural Vergueiro, o filme “O Destino”. Dirigido pelo egípcio Youssef Chahine, ao contar a trajetória do filósofo e médico Averrois, o filme propicia reflexão sobre os descaminhos a que leva o fundamentalismo religioso. Em sua mensagem principal, como contraponto ao radicalismo, as idéias, que “têm asas e ninguém pode deter seu vôo”. Não se trata de documentário, como lembrou o professor de Língua e Literatura Árabes da USP, Michel Sleiman. “É uma obra de ficção, já que não se propõe a um resgate de fatos históricos. Mas se permite a mistura de referenciais no Alandalus (atual Andaluzia)”. Segundo destacou ele, o filme, feito em 1997, é uma clara contestação ao fundamentalismo em várias localidades no mundo árabe. “Coloca-se como uma metáfora aos perigos que podem levar a intolerância e a exacerbação do poder pessoal, quando unidos a algumas alas que, em nome da religião, na verdade prestam desserviço às culturas”. A história se passa no Alandalus, no século XII, tempo em que viveu Averrois (1126-1198), Ibn Rushd na fonética árabe. Não só seu nome, mas também suas obras sofreram alterações depois de traduzidas no Ocidente. Sleiman explica que, por ser um período de decadência do califado, abriu espaço ao surgimento inicialmente dos “almorávidas” e depois dos “almóadas”, povos muçulmanos oriundos do Norte da África caracterizados pelo fanatismo religioso. Retratados em “O Destino”, reunificaram o Alandalus, porém, com a mudança do sistema político para monarquia, também viveram decadência. O filme é ambientado em Córdoba – e não Sevilha, capital do Alandalus –, onde Al-Mansur detém o trono e Averrois é o “cadi”, ou juiz, que questiona as leis islâmicas. Para Safa Jubran, também professora de Língua e Literatura Árabes da USP, sua mensagem essencial é “essa necessidade de reflexão a respeito das atitudes e políticas que foram praticadas séculos atrás no mundo árabe e, ou, islâmico, e que às vezes a gente vê ainda hoje”. “O Destino” ilustra a forte influência do discurso de seitas místicas, como observa Jubran. “Com o argumento supostamente baseado na religião e nos textos sagrados e envolvidas por um retórica que seduz jovens, acabam por levá-los muitas vezes a cometer atos abomináveis em nome de causas fabricadas”. Estudioso da Filosofia de Língua Árabe, Miguel Attie acredita que essa é a luta que atravessa todo o filme: da razão, com Averrois, contra “dois níveis de desrazão, o da mística, representado pela seita, e o do poder e da política, precisamente na interpretação de algumas escolas jurídicas mais ortodoxas de retirar do livro revelado a legislação que possa organizar e fazer justiça na sociedade”. CULTURA E ESPERANÇA - Na ótica de Jubran, o diretor egípcio usa simbologia ao apresentar em uma das cenas de “O Destino” um instrumento usado pelos amigos de Averrois para verificar a participação do príncipe Abdallah nas sessões místicas – uma espécie de telescópio. “Serve para demonstrar como na época fazíamos ciência e produzíamos tecnologia. Hoje, nossa realidade é outra e isso é triste. Mas tem uma coisa que nos consola e pode ser a nossa esperança. É o fato de o mundo árabe e islâmico em geral continuar a produzir idéias e espalhá-las. Talvez a única coisa que o árabe contemporâneo possa se orgulhar é de ainda ter vozes que tentam produzir saber e arte. Exatamente por isso, acabam desagradando o poder e os interesses políticos e, não raramente, são perseguidos, difamados, aprisionados, banidos, como aconteceu com Averrois.” O filme mostra ainda, como ressaltou Andrea Piccini, orientador em Arte e Arquitetura Árabes na USP e secretário de Relações Internacionais do Município de Santo André, a transferência da cultura árabe à Europa. Isso fica mais claro nas cenas em que as obras do filósofo oriental são levadas por seus discípulos e admiradores ao Ocidente para que sejam preservadas. Essa riqueza pode ser vista na arquitetura, decoração, literatura e até em utensílios domésticos. Diante disso, é preciso desconstruir, na concepção de Attie, o paradigma Oriente-Ocidente, em que um se contrapõe ao outro. A questão é como fazer isso em um ambiente em que fundamentalismos se confrontam, como bem lembrou o escritor Tarik Ali em seu “Confronto de fundamentalismos”. Para Sleiman, é preciso deixar essas ideologias de lado. Talvez seja necessário que “filósofos como Averrois voltem à cena e deixem falar a razão”.