"Sobre Futebol e Barreiras" no Território do Nunca Esqueceremos
O que guiou a pesquisa do projeto inicialmente, em viagem que fiz sozinho de janeiro a março de 2010, foi, como jornalista, a necessária curiosidade de conhecer a realidade in loco do que eu conhecia de longe. Era um ajuste para desfazer estereótipos ou criações idealizadas e, assim, entender o cotidiano daquilo que eu conhecia como ocupação. Por entre as barreiras da Cisjordânia, lá estava eu em 28 de janeiro de 2010 quando jogavam Egito e Argélia por uma das semifinais da Copa Africana de Seleções. Eu estava em Beit Sahour, uma cidade na parte sul dos territórios palestinos ocupados da Cisjordânia. Naquela noite, um telão capturava a atenção daqueles palestinos. Todos torciam para a Argélia. Motivo: a alguns quilômetros a oeste de onde estávamos, o governo egípcio ainda presidido por Hosny Mubarak controlava a fronteira de Rafah, ao sul da Faixa de Gaza. E, junto com o governo israelense, realizava o cerco a “compatriotas” de muitos dos que assistiam àquele jogo – “compatriotas” sem Estado.
O futebol não fazia os palestinos esquecer a ocupação. Àquela altura eu já estava há um mês na Palestina e sabia que isso seria impossível. A ocupação é o cotidiano dos palestinos. Mas o espaço aberto com a possibilidade de ver a Copa por lá poderia trazer alguma nova brecha para enxergar o conflito. O futebol, na verdade, seria moldado pela política e a paixão pelo esporte mais popular do mundo durante sua maior festa seria transformado pelo que costumamos chamar de conflito palestino-israelense.
Mas para o objetivo de compreender um quadro mais geral, que aqui chamarei de “sociedade Palestina/Israel”, a Cisjordânia ocupada não bastava. Era essencial ir a Israel para entender o cerne do conflito neste território que ganha variados nomes. Um dos aspectos que pude enxergar ali foram barreiras incrustadas não só em seu pensamento social e em sua identidade nacional, mas em um cotidiano de barreiras concretas que faz com que sejam ignoradas as realidades de pessoas que caminham no centro de Ramallah, nos campos de refugiados de Nablus ou que têm suas lojas no centro de Hebron.
Andar por Israel é enxergar o cotidiano do Estado que para a totalidade de seus aspectos se autodenomina judaico. Um aspecto que exaltam bastante é o de que nunca esquecerão, “never again” insistem em dizer, jamais novamente aceitar a aniquilação a que assistiram na Europa, e que alegam que agora os árabes querem realizar. Mas o lema “Never Again” alimenta a lenta ocultação e destruição de uma outra população que grita pelos seus próprios direitos, encontra diversos meios para não desaparecer. E, de fato, a trama de acontecimentos que em parte foi suprimida da memória global e que ganhou o nome de nakba (catástrofe) não desapareceu. Sim, os palestinos também prometem “nunca esquecer”. É a versão deles do “never again”.
Aí está a base da história que palestinos e israelenses compartilham no cotidiano do conflito, como ocupante e ocupado, no dia-a-dia de armas, estragos de bombas, olhares raivosos, postos de controle, medo da morte. Uma luta de duas versões e suas consequentes políticas – de quem oprime, de quem assassina, de quem domina e controla, de quem resiste, de quem se corrompe, de quem se mobiliza, de quem pensa ou de quem se aliena - que se digladiam no mesmo Território, a alegada necessidade de um Estado de caráter judeu em todos os seus aspectos e a resiliente persistência de um Estado palestino que ainda luta para existir, um meio para que a história de um povo que se acha injustiçado não desapareça em meio ao Estado sob símbolos judaicos que quer construir sua hegemonia.
É sobre a base formada por alguns destes aspectos que acredito termos construído “Sobre Futebol e Barreiras”, em um território fragmentado sobre os diversos interesses que jogam com as sociedades que lá vivem. Um território que, pelo caráter de sua luta, poderia ter como um de seus nomes “Nunca esqueceremos”.
Exibir o filme na Mostra Árabe tem um significado especial para toda a equipe, já que estaremos em um evento de cinema que se consolida no calendário de São Paulo e Rio de Janeiro, ao lado de uma seleção especial de filmes do cinema árabe - com obras clássicas, experimentais e atuais -, e do lançamento de “Constantino”, de Otávio Cury. Da minha parte, devo admitir, o tempo em que trabalhei como jornalista para o Instituto da Cultura Árabe colaborou para que eu pudesse ter um contato mais crítico e profundo com as sociedades árabes. Se algo ficou da prática do Icarabe, foi a sua linha de atuação sempre tendo em vista exercer um pensamento crítico, em não aceitar dogmas, em buscar através de pesquisa e uma reflexão profunda retratar realidades de culturas e sociedades cheias de contradições. Não à toa, a sua fundação ocorreu em ato em homenagem ao palestino-americano Edward Wadie Said e seu presidente de honra foi até recentemente Aziz Ab’Sáber. Esta, uma perda recente enorme, aliás. Para todos os estudiosos e profissionais que precisam de um olhar crítico e apurado para retratar complexas realidades sociais.
Arturo Hartmann é jornalista e realizou, ao lado de Lucas Justiniano, José Menezes e João Carlos Assumpção, o documentário “Sobre Futebol e Barreiras”