Uma marcha pela laicidade no Líbano
Representando uma parte da população consciente da clivagem social enraizada pelo sistema sectário libanês, o movimento Laïque Pride (em árabe Masiirah al-‘Alamaaniin nahou al-Mouwaatanah, ou Marcha dos Laicos pela Cidadania) propõe uma resposta à insistente questão: “Ma khassak” (Não é da sua conta). E é sem dúvida esta a resposta que acompanhará todos os presentes na marcha que o movimento organiza, a ser realizada no dia 25 de abril deste ano.
Por sectarismo político (ou confessionalismo) entende-se um sistema de governo no qual o poder político e institucional é dividido entre comunidades religiosas. Se o sistema atual de distribuição do poder foi elaborado durante o mandato francês e consolidado após a independência do país em 1943, as origens do sectarismo libanês remontam ao período otomano. No vasto império construído pelos otomanos, conviviam diversas etnias e religiões, ainda que houvesse uma maioria de muçulmanos. Os não-muçulmanos, chamados dhimmi, mais especificadamente cristãos de diversas confissões e judeus, gozavam do sistema de millet, que consistia na separação do sistema legislativo e judiciário entre religiões, a fim de que as minorias religiosas gerissem seus próprios assuntos internos.
Este é aproximadamente o mesmo conceito do sistema sectário presente atualmente no Líbano. Durante o mandato francês (1920-1943, últimas tropas retiradas em 1946), quando o Estado do Grande Líbano foi criado, a partir de uma extensão da região autônoma otomana do Monte Líbano, buscou-se estabelecer um sistema político que equilibrasse a distribuição do poder e ao mesmo tempo garantisse a primazia dos cristãos, na época majoritários. Baseando-se no censo efetuado em 1932, a proporção entre cristãos e muçulmanos (incluindo os drusos) foi estabelecida em seis cristãos para cada cinco muçulmanos.
No seio das duas religiões, no entanto, há diversas comunidades distintas, como os maronitas, greco-ortodoxos, armênios católicos e outras no cenário cristão libanês, e os xiitas, sunitas, alawitas e drusos no que diz respeito aos muçulmanos, sem contar os judeus, que eram enquadrados entre os cristãos (atualmente a quase totalidade dos judeus libaneses deixou o país, não restando mais que uma diminuta comunidade). Ao todo, são dezoito comunidades religiosas reconhecidas oficialmente, cada uma com seu grau de representação. Desta forma, o presidente da república libanesa deve ser um cristão maronita; o primeiro-ministro, um muçulmano sunita e o presidente da assembleia nacional, um muçulmano da comunidade xiita.
Se esse sistema assegurou certo equilíbrio no Líbano pós-independência, os problemas não tardaram a aparecer. A emigração numerosa de cristãos (que já vinham emigrando desde o fim do século XIX, notadamente para o Brasil, Argentina e Estados Unidos), a entrada em massa de refugiados palestinos, em sua maioria muçulmanos sunitas, sem contar o aumento de crescimento natural da população muçulmana, foram fatores responsáveis por uma brusca alteração no perfil demográfico do país. Ainda assim, evitou-se proceder com outro censo, e aquele de 1932 é, até hoje, o último a ter tido lugar no Líbano. A repartição do poder nesse novo cenário demográfico foi uma das questões chave na Guerra Civil Libanesa.
Ademais, não é apenas no nível político que se manifesta o sectarismo: as comunidades religiosas geram por si próprias os assuntos privados de seus membros. Assim, em determinados assuntos, a lei aplicada a um muçulmano não é a mesma aplicada a um cristão, havendo igualmente diferenças segundo a confissão. O casamento, por exemplo, é algo regido pelas religiões e há certas restrições ao casamento entre pessoas de religiões diferentes. O Líbano, entretanto, reconhece os casamentos civis de outros países, o que leva muitos casais inter-religiosos a casarem-se na vizinha Chipre e requisitarem o reconhecimento posteriormente.
O sistema político foi modificado no acordo de Taef, de 1989, que marcou o fim da Guerra Civil, igualando a proporção de cristãos e muçulmanos na representação governamental. Não obstante, o sistema continuou essencialmente o mesmo, especialmente no âmbito civil e judiciário, ainda que a estrutura política de facto tenha sofrido profundas modificações. Por outro lado, ao final da Guerra Civil, o mundo já não era mais o mesmo, e, sobretudo, os libaneses já não eram mais os mesmos.
Orgulho laico
Fazem-se cada vez menos raras as vozes que se opõem ao sectarismo. Se, há apenas algumas décadas, somente alguns intelectuais e artistas ousavam defender o fim deste sistema, e esta posição no âmbito político era monopólio de alguns partidos marginalizados, como o Partido Comunista Libanês, atualmente a evocação ao fim do sectarismo é generalizada, ganhando inclusive o parlamento libanês.
Fazendo ecoar a voz de parte da juventude libanesa que questiona cada vez mais a realidade que a cerca, o movimento Laïque Pride diferencia-se do discurso, por muitas vezes vazio, de anti-sectarismo. De início, por seu caráter civil e apolítico, e em segundo lugar porque, como seu nome diz, não é o fim do confessionalismo que é defendido, e sim a laicidade.
“Nós não confundimos laicização e desconfessionalização. A maioria daqueles que reivindicam o fim do confessionalismo político no governo é, atualmente, contra o casamento civil. Isto é absurdo!”, explica Yalda Younes, uma das fundadoras do Laïque Pride. “Nós podemos então concluir que, se a desconfessionalização não é reivindicada em nome da separação total do religioso e do político, mas também do civil, é possível que seja simplesmente uma abolição de cotas, em um ambiente que permaneceria sectário.”
Separar a religião e o Estado no Líbano. Reivindicação utópica, quase impossível? Não é o que parece a quem se debruça sobre a constituição do país: o Líbano é, legalmente, uma república laica, e um dos preâmbulos constitucionais afirma que “o fim do sectarismo político é um objetivo nacional (...)”. Por que, então, clamar pela laicidade em um país já laico?
“O Líbano é um Estado republicano e laico no qual todos os seus cidadãos são iguais. Em teoria, e não na prática.” Yalda Younes aponta a nuance. Segundo ela, o que reclama o movimento Laïque Pride é o “restabelecimento dos direitos civis contidos na constituição e amplamente ignorados pelos representantes do Estado.”
Conscientes de que assegurar a laicidade é um passo fundamental, mas não um fim em si, os membros do movimento vêem o Estado laico como condição sine qua non para a consolidação de um Estado de direito, onde a cidadania igualitária seria respeitada, independentemente de religião, confissão, origem ou gênero. A missão é fundar, ou melhor, refundar a laicidade libanesa. Inevitável a pergunta: o que seria uma “laicidade libanesa”?
“Todo país laico inventou um sistema que se adaptava à sua cultura.” Para Yalda Younes, a iniciativa do Laïque Pride é um convite à reflexão do que seria essa laicidade à la libanaise. “Há muitas questões a serem colocadas, entre elas: de maneira alguma será proibido o casamento religioso, mas, além disso, o casamento civil seria opcional ou obrigatório? Como aplicar a laicidade na esfera política e ao mesmo tempo proteger os direitos das minorias que têm medo de não mais serem representadas? A criação de um senado que represente as confissões de maneira igual é, portanto, indispensável? E, se sim, quais limites lhe devem ser colocados? Quais mudanças são necessárias efetuar nas leis eleitorais com o desaparecimento do sectarismo político? Quem protegeria a laicidade no caso de um partido político poderoso de apelo religioso recusar entrar no jogo? Como garantir a liberdade de crença de todos e continuar a respeitar a liberdade de práticas religiosas?”
O debate está aberto, e circulando. Porque os fundadores do movimento, todos do meio artístico, são experts em divulgação. Seus cartazes são encontrados por toda Beirute, e na internet, seja no Facebook, rede incontornável na vida social do país dos cedros, no Twitter ou na blogosfera, o assunto está em voga. No início do ano, o rapper Rayess Bek, conhecido por sua oposição ao sectarismo, lançou o jingle da campanha de divulgação da marcha, no qual proclama: “no dia 25 de abril, vai descer às ruas todo o Líbano.”
Como não poderia deixar de ser, o movimento ultrapassou as fronteiras libanesas. Nada mais natural para um povo que é mais numeroso fora do país de origem do que dentro – se o Líbano tem hoje uma população de quatro milhões de pessoas (sem contar os palestinos, sírios e outros estrangeiros), a população de libaneses no exterior, incluindo descendentes, é estimada em quinze milhões. Marchas já são organizadas em Paris e Londres, e ambiciona-se expandir ainda mais, inclusive para o Brasil, país que acolhe a maior comunidade libanesa do mundo. Mas que apelo poderia ter um movimento laicista no longínquo e conturbado Líbano para quem vive no Brasil, de origem libanesa ou não?
“O artigo 7 da Constituição [libanesa] declara que ‘Todos os Libaneses são iguais perante a lei. Eles gozam igualmente dos direitos civis e políticos e são igualmente sujeitados às obrigações e deveres públicos, sem distinção alguma’. Nós insistimos nestas três últimas palavras: ‘Sem distinção alguma’, que quer dizer independentemente de sua afiliação confessional – escolhida ou não, reivindicada ou não -, de seu sexo, de sua etnia e de sua crença pessoal, e também de seu lugar de residência. Este artigo da Constituição libanesa tem uma dimensão universal irrefutável no sentido em que ele é diretamente inspirado pelo artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos: ‘Todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos.’ Como a laicidade é a melhor garantia da igualdade perante a lei e da liberdade de crença de cada um, ela afeta todos os indivíduos, quaisquer que sejam suas crenças, sua nacionalidade ou seu lugar de residência”, diz Yalda Younes.
Ela lança o apelo universalista. Possivelmente o maior trunfo do movimento Laïque Pride, visto que, em despeito do número de pessoas que marcharão pela laicidade no dia 25 de Abril, ou da repercussão efetiva que terá essa marcha, o sentimento propagado dificilmente deixa espaço para a indiferença: a solidariedade com a luta pelo direito de igualdade e de justiça. A solidariedade, enfim, com aqueles que buscam o direito humano de, frente às forças da segregação, poder erguer a voz para dizer: “Ma khassak!”
Saiba mais:
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