Brasileiro recebe da Unesco Prêmio Sharjah de Cultura Árabe
Receberam em 27 de fevereiro, em Paris, o 10º Prêmio Sharjah de Cultura Árabe o arabista brasileiro João Baptista de Medeiros Vargens, 60 anos, professor titular da UFRJ, filiado ao ICArabe, e o jornalista libanês Elias Khoury
O Prêmio Sharjah é conferido pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), desde a sua instituição pela União dos Emirados Árabes em 1998, a duas personalidades – uma de país árabe e uma de outro país – que, por seus esforços, contribuíram para o desenvolvimento e a difusão da cultura árabe no mundo através de seu trabalho artístico ou intelectual.
O professor Vargens é autor, entre outras obras, do Léxico português de origem árabe (Almádena, 2007) e co-organizador do bem realizado Dicionário Árabe-Português do Monsenhor Alphonse Nagib Sabbagh (Almádena/Fundação Biblioteca Nacional, 2011). Especializou-se em Língua Árabe pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pela Universidade de Damasco. Fundou os cursos de extensão em Língua Portuguesa e Cultura Brasileira nas universidades de Tetuão (Marrocos) e de Damasco (Síria). O professor também é conhecido por suas contribuições à história do samba brasileiro, sendo autor das biografias Candeia, luz da inspiração (Funarte, 1997), Monarco: a sabedoria do samba (Oficina do Parque, 2011) e Martinho da Vila: tradição e renovação (Almádena, 2011). Em 2006 fundou a editora Almádena e recentemente foi contemplado com uma bolsa de pesquisa para catalogar os livros árabes de D. Pedro II, pertencentes ao acervo da Biblioteca Nacional.
Na véspera de sua partida à França para receber a premiação, João Baptista de Medeiros Vargens concedeu-me esta entrevista. Falou da paixão que marca a sua trajetória intelectual e que notabilizou suas incursões no universo da língua árabe e da cultura popular brasileira.
O que levou um brasileiro, sem ascendência árabe, a estudar esse idioma?
Foi o encontro da literatura com a política. Quando era adolescente lia os contos do brasileiro Malba Tahan, professor de Matemática do Colégio Pedro II, ambientados no Oriente árabe. Alguns deles eram sofismas matemáticos, e eu era um bom aluno de matemática, aquilo me fascinou. Mais tarde, às vésperas de ingressar no ensino superior, escrevi no jornalzinho da escola, chamado A pena firme, um artigo defendendo a causa palestina. A Guerra dos Seis Dias, de 1967, teve repercussão nos jornais brasileiros e meu grupo na escola, que era relativamente politizado, tomou posição a favor dos palestinos, àquela época se tomavam posições. Era um artigo juvenil, com uma compreensão não tão profunda da realidade, mas marcou minha escolha quando em 1971 abandonei a intenção inicial de cursar Direito e ingressei na UFRJ para estudar Letras, português-árabe, habilitação recentemente criada na faculdade. Estavam contempladas, para sempre na minha carreira, duas paixões: a mais antiga, por literatura, e a mais recente, por política, pela Palestina, o Brasil e os países árabes.
O que o senhor destaca em seu percurso de pesquisador e professor de árabe?
Em 1975 estourou a guerra civil no Líbano, que frustrou minha intenção de complementar os estudos num país árabe. Naquele mesmo ano ingressei como auxiliar de ensino para dar aula de Língua e Cultura Árabe na UFRJ. Foi quando fiz a especialização com o professor da casa, o monsenhor padre Alphonse Nagib Sabbagh, e o visitante libanês, padre Emile Ebde, curso que durou até 1977. No ano seguinte, finalmente pude viajar a um país árabe, a Síria, ganhando do governo desse país uma bolsa de estudos válida por dois anos, para frequentar o Instituto de Ensino para Estrangeiros, um braço da Universidade de Damasco. A estada em Damasco foi fantástica e me qualificou melhor para o trabalho na UFRJ...
... A Síria então contribuiu bem para a sua formação...
Sem dúvida. Nestas quatro décadas, o governo sírio, através da Universidade de Damasco, é o que mais tem apoiado o curso de árabe da UFRJ. Mas voltando: no início de 1980, participei da criação do Centro Cultural Árabe Brasileiro, no Rio de Janeiro, que teve apoio da Líbia, mas fechou dois anos depois devido a um incidente diplomático envolvendo o governo líbio e o nosso, pressionado pelo governo estadunidense que esperava do nosso país relações mais brandas que as que tínhamos na época com a Líbia. Foi uma pena a extinção desse centro cultural.
Entre finais da década de 1980 e inícios da década de 1990, passei três anos no Marrocos ensinando Português e Cultura Brasileira, na Universidade de Tetuão. Nesse tempo, cavei e mantive uma coluna semanal de meia página em língua portuguesa no jornal de expressão francesa L’Opinion, porta-voz do partido marroquino Alistiqlal “A Independência”. Lembro que logo no início postei uma chamada para uma reunião com lusófonos interessados em colaborar com a coluna, e compareceram 30 africanos falantes de português, a maioria bolsista em Tetuão. Por outro lado, o interesse dos marroquinos pela cultura de expressão portuguesa era claro: em três anos foram 126 alunos árabes estudando a língua portuguesa, Brasil e culturas de aproximação. A coluna cobria especialmente as atividades de cultura, pois Tetuão é por excelência uma cidade cultural: mostras de arte, festival anual de cinema. Numa dessas, divulgamos a mostra de filmes portugueses organizada pelo então adido cultural de Portugal, o professor Rui Rastilho, da Universidade de Lisboa, que mais tarde levou ao seu colega, o professor António Dias Farinha, uma carta minha em que eu solicitava sua orientação para pesquisar o léxico português de origem árabe. E assim fiz várias viagens a Portugal, seja de Tetuão, seja, já de volta ao Brasil, do Rio de Janeiro, até a conclusão do doutorado em 2000.
E como entra o seu trabalho como editor?
Em 2006 eu me aposentei da UFRJ e fui convidado a lecionar na cadeira de Língua Portuguesa e Filologia da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro). Mas eu não queria me afastar do árabe e, sem que eu me desse conta disso, entre 2006 e 2011, fundei e mantive a Almádena, uma pequena editora que vem publicando alguns títulos, como o Português para falantes de árabe, os contos À sombra das tamareiras, de Humberto de Campos, o Dicionário Árabe-Português. Este último, do nosso constante mestre, o monsenhor Sabbagh, trabalho seu de anos, que tive a honra de organizar junto aos colegas da UFRJ, com apoios da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro) e da Fundação Biblioteca Nacional.
Nestes últimos anos o senhor voltou aos países árabes?
No interregno de 2006 até este ano de 2012, quando retorno à UFRJ como professor titular de Árabe, tive duas missões do Ministério da Cultura brasileiro: fundar o curso de extensão em Português na Universidade de Damasco, para o qual foi enviada a leitora Paula Caffaro, formada pela UFRJ, e supervisionar o curso de extensão em Português na Universidade do Líbano, para o qual havia sido enviado o leitor Richard Max de Araújo, formado pela USP (Universidade de São Paulo). A realização do I Simpósio de Arabistas Luso-Brasileiros, que preparei em conjunto com a UFRJ e a USP, possivelmente tenha sido um marco de colaborações futuras entre as poucas universidades nacionais e portuguesas que se dedicam à matéria do arabismo.
Então andam bem as relações culturais entre o Brasil e os países árabes?
Não há uma política estabelecida e por isso muitos esforços se perdem no meio do caminho. Por exemplo, consegui 126 alunos em Tetuão, mas com a minha volta ao Brasil não houve um professor que me substituísse. O mesmo se deu com a volta da Caffaro: a universidade síria queria outro professor, mas ninguém se apresentou. É de se esperar que o Itamaraty passe a ouvir as únicas instituições do Brasil que neste momento formam profissionais do ensino de Língua, Literatura e Cultura Árabe, a USP e a UFRJ. Será importante essa articulação, para o que o esforço, que é muito, não seja desperdiçado. Só acredito em acordos que sejam oficiais e que passem de preferência pela instituição de ensino e pesquisa, que no nosso país é por excelência a universidade. Pode haver iniciativas feitas por outros organismos, quantas mais melhor, como os tantos cursos de língua oferecidos em clubes, igrejas e mesquitas. Mas à medida que diminui a procura de alunos, eles se extinguem. É importante, por outro lado, o trabalho de divulgação, como as iniciativas diversificadas de organismos como o Instituto da Cultura Árabe. Contudo, se não houver oficialidade nos acordos e, no que se refere a ensino de língua, se não houver a mão da universidade que prepara o profissional do ensino, nada ou pouco do trabalho vingará. Estaremos sempre à mercê da sorte e da tenacidade de alguns. Por outro lado, a USP e a UFRJ podem oferecer cursos preparatórios de cultura árabe para os diplomatas que servirão em países árabes. Esse tipo de suporte funciona muito bem na Espanha, por exemplo.
O senhor menciona a Espanha – onde matrizes como a árabe e a judaica parecem ser cada vez mais reconhecidas como partes centrais da hispanidade. E o arabismo brasileiro? O senhor acha que continua marginal ou é tema central do cenário da nossa cultura? A mídia, por exemplo, desempenha algum papel nisso?
Proporcionalmente ao número de árabes e descendentes, o arabismo no Brasil é muito pequeno. A importância da cultura árabe na sociedade brasileira é muito grande. Não só pelo expressivo contingente de imigrantes e seus descendentes como também pela cultura dos portugueses: 800 anos de presença árabe e islâmica na Península Ibérica não são 800 horas nem 800 minutos. E na expedição de Cabral ao Brasil já havia árabes e descendentes. A consciência nacional do arabismo no entanto ainda é obscura. E a mídia embarca na confusão, ou nem quer mesmo informar o que pode até saber. Nesse sentido, o trabalho do ICArabe é diametralmente corretivo. O instituto deve ter cada vez mais um alcance mais amplo e procurar um caminho de divulgar melhor o trabalho bonito que vocês fazem.
Os agentes desse trabalho no nosso país, os que aqui estudam, ensinam e divulgam a cultura árabe, parecem-lhe bem conscientizados do papel do arabismo na história e na identidade brasileiras?
Não há que generalizar. As pessoas ligadas a instituições de pesquisa, ou as que atuam junto a órgãos especializados de divulgação dessa cultura, como centros e institutos culturais, as universidades que citamos – essas pessoas têm boa prospecção no assunto. É só você acompanhar as publicações, as atividades de promoção cultural e a circulação de notícias que chegam de portais de notícias como este do ICArabe. Seu teor revela um processo contínuo de aprofundamento da consciência nacional do papel que os árabes e seus descendentes têm na cultura nacional ou americana como um todo. Mas também há o grupo ligado aos clubes e agremiações que veem na cultura árabe um elo de ligação e manutenção da colônia de imigrantes e de seus descendentes diretos e indiretos. O cenário é múltiplo, como a sociedade árabe e a de seus descendentes no Brasil o são. Há aquele grupo de muçulmanos que quer ensinar cultura islâmica, há o grupo de libaneses e “libanistas”, seus grupos religiosos etc. Não invalido nenhuma dessas iniciativas. Mas cada qual no seu lugar.
A 10ª. edição do Prêmio Sharjah da Unesco, com que o senhor acaba de ser laureado, sublinha, entre outras qualidades suas, a sua atuação de aproximador das culturas de árabes e lusófonos. Sua outra paixão, sabida de todos, é o samba. O que nos aproxima afinal – árabes, europeus, africanos, americanos – nessa flor da cultura nacional? Modulando um pouco a pergunta: um arabista é necessariamente especialista em Oriente, e um estudioso do samba é necessariamente especialista em Brasil?
Eu me considero um intelectual livre. Essa é uma característica do intelectual, é sua essência. Por um lado, é dever de quem estuda e tem certa percepção do mundo registrar isso aos seus descendentes. Por outro lado, não existem compartimentos entre as culturas, isto é falso. Fazendo pesquisas dentro da minha área no âmbito acadêmico, encontrei as coisas fantásticas a respeito da cultura popular. E vice-versa. Quando eu fazia o livro A velha-guarda da Portela com Carlos Monte (pai da cantora Marisa Monte), entrevistando o Paulinho da Viola, eu perguntei a ele qual havia sido seu momento singular junto ao pessoal da velha-guarda. Ele respondeu sem pestanejar: “Foi um dia, um domingo de manhã, que eu chego lá, está todo mundo reunido na Portela, e eu escuto um som diferente, um naipe de instrumento diferente, ouvi e vi uns pandeirinhos sem patinela.” Aí eu perguntei: “Paulinho, quem fazia esses instrumentos?” E ele disse: “O pai do Jamil.” Eu perguntei: “Cadê o pai do Jamil?”, “Morreu”, ele disse. Aí pensei: “O pai do Jamil morreu, acabou o adufe lá na bateria da Portela.” Se o pai do Jamil não morresse, hoje certamente o adufe seria incorporado às baterias das escolas de samba. Ainda mais que a Portela é conhecida por inovar no samba. O Paulo Lins, que escreveu Cidade de Deus, está lançando um livro que é resultado de profunda pesquisa sobre as origens das escolas de samba no Brasil. Ele conta que na fundação da primeira escola constam dois nomes árabes: Assad e Assamani. Enquanto na década de 1920, em São Paulo, um grupo de burgueses fazia a Semana de Arte Moderna, no Rio de Janeiro se fazia a primeira escola de arte popular, da qual faziam parte sírios-libaneses!
Você aceita a formulação de que “falar de arabismo é falar de Brasil”?
Aceito, sem dúvida. Oito por cento da população brasileira é tida como descendente de árabes. Uma população ativa, participante. São eles que inventaram o comércio ambulante na América. Essa classe de comerciante foi chamada de mascate, termo que se refere aos habitantes da cidade de Masqat, em Omã, na Península Arábica. Os portugueses os conheceram nas imediações do Oceano Índico, ainda antes de chegarem ao Brasil. E quando os árabes chegaram ao Brasil no último quartel do século XIX tinham que se virar por aqui: aprenderam a língua portuguesa, para falar nela, e para cantar. E tiveram que fazer isso em todo o território nacional, deslocando coisas, aproximando, encurtando distâncias. Com isso se fundiram na sociedade brasileira como um todo: no campo e na cidade e, seguindo a tendência da economia na virada do século XX, vicejaram sobretudo nos meios urbanos, fazendo sua a cultura dos outros, e dos outros a que era sua. Como talvez nenhum outro segmento de imigrantes no mundo.
Na sua avaliação, o que significa para este País que um prêmio como esse da Unesco venha para um brasileiro?
Desde 2003, com os ações do governo Lula nas relações internacionais entre o País e o mundo árabe, observa-se uma crescente aproximação entre esses dois grandes blocos da cultura. E as universidades não poderiam ficar fora desse processo. O prêmio não é uma vitória de um indivíduo, mas de um grupo. Destaco o grupo de professores da USP e da UFRJ, dos seus alunos, dos seus funcionários, agentes desse Brasil como um todo. O prêmio é um estímulo a todos nós. Insisto que é chegada a hora de uma política cultural que amarre o trabalho árduo dos poucos de hoje a fim de garantir seu sucesso e a continuidade de sua missão. Não há por que a universidade não ser ela a interlocutora.
O que é ser árabe fora do mundo árabe?
Para grande parte do mundo, hoje, ser árabe é uma ameaça. Mas ser árabe é um dos bens da humanidade para uma pequena parte do mundo, que tem conhecimento de história e da contribuição que os árabes deram para a civilização, e que ainda poderão dar, se forem tratados com dignidade e respeito pelos ocidentais e demais dirigentes do mundo.
E o que é ser brasileiro fora do mundo brasileiro?
O conceito de brasileiro começa a mudar no mundo, devido à própria afirmação do País. Antes éramos a Amazônia, o samba, o café, o Pelé. O Charles De Gaulle já não poderia dizer que este país não é mesmo sério. Temos cientistas trabalhando em importantes universidades do mundo. O Brasil é outro.