Massacre em Port Said é recado aos egípcios
A Irmandade Mulçumana, principal força em ascensão no país, é atualmente a maior ameaça aos interesses do Exército. Agora é a vez de o Egito experimentar um “governo islâmico”.
O recente conflito entre torcidas em Port Said pode ter soado como um recado para a sociedade egípcia e principalmente para a Irmandade Muçulmana, principal força política do país. O recado vem do Conselho Supremo das forças Armadas, que governa o país desde a queda de Hosni Mubarak há um ano. E nele se lê: deixem o Exército no poder ou a violência grassará pelo país.
Uma das versões mais críveis do episódio é de que a cúpula do Exército, que ainda se agarra firmemente ao poder um ano após a queda de Hosni Mubarak, teria punido membros da torcida organizada do Al-Ahly, time de futebol do Cairo, deixando-os à mercê de seus rivais. O motivo: os torcedores cairotas são ativos opositores dos militares e da violenta polícia do antigo ditador e foram ativos participantes dos protestos que derrubaram o regime.
A junta militar que detém o poder no país vem tentando a todo custo estender a velha ordem a fim de manter os privilégios que obteve durante as três décadas de ditadura de Mubarak. Defende também a manutenção de sua fatia de 30% da economia egípcia. Pela legislação vigente, o deserto é considerado fronteira, território que pode ser explorado somente pelos militares. Essas fronteiras chegam bem perto das grandes cidades e da própria capital. Nestes territórios foram erguidos shopping centers, hotéis de luxo e restaurantes. Estes opulentos centros de lazer e consumo são a principal fonte de renda da junta militar que governa o país.
O massacre após o jogo de futebol é também uma forma de pressionar a principal força em ascensão no país, a Irmandade Muçulmana, a abandonar a pressão contra os militares. O grupo islâmico, grande vencedor das eleições em novembro passado, é atualmente a maior ameaça aos interesses do Exército. Seu braço político, o Partido Liberdade e Justiça, elegeu 60% dos deputados da Câmara Baixa do Parlamento. Assim como seus opositores no poder, a Irmandade também tem fortes interesses econômicos. Membros do grupo dominam setores da economia como o de telefonia móvel e o imobiliário.
Ambos os lados já tentaram costurar um acordo para garantir seus interesses, mas até agora ele não se concretizou. E dificilmente se concretizará, já que a Irmandade conseguiu se estabelecer como a maior força no Parlamento e deverá ter importante papel na eleição do próximo presidente. Tem também grande influência nos sindicatos de profissionais liberais e universidades, onde o grupo é bastante estruturado.
Para combater os militantes islâmicos, a junta militar usa velhas táticas emprestadas de Mubarak. Tenta emplacar a ideia de que é a melhor opção à um governo islâmico. Essa carta já foi jogada recentemente. O massacre de 24 manifestantes cristãos coptas em outubro foi uma tentativa de demonstrar isso. Mas, em pouco tempo, a verdade veio à tona. Descobriu-se que os militares foram os verdadeiros culpados pela morte dos manifestantes e não enfurecidos muçulmanos. O próprio chefe das Forças Armadas, Muhammad Hussein Tantawi, teve de pedir desculpas publicamente. Agora, mais uma vez, exército e polícia tentam se isentar da responsabilidade pela morte de mais de 70 torcedores em Port Said.
Os militares também sabem que o apoio da população se esvaiu. Até meados da década de 90, o Exército contava com altos índices de popularidade por haver participado de várias guerras e, na última, contra Israel, obteve um resultado tão positivo que anos depois resultou no Acordo de Paz que devolveu a Península do Sinai ao território egípcio. Por isso, não houve grande oposição quando os militares no momento em que foram alçados a responsáveis pela transição. Mas este mesmo exército era um dos pilares da manutenção de seis décadas de ditadura, que teve início em 1951 com golpe dos Oficiais Livres.
Por outro lado, a simpatia da população pelos militantes islâmicos é também um reconhecimento pelas décadas de oposição ao regime. Fundada em 1928, a Irmandade foi um dos primeiros grupos a apoiar o golpe militar de 1951. Mas, desde 1954, está na ilegalidade. Grande parte dos seus líderes passou décadas na prisão sob trabalhos forçados e outros ainda foram executados. A Irmandade foi alvo de anos de repressão e é, portanto, bastante sensível a ameaças de violência.
A popularidade do grupo também é reflexo da ideia de que é a vez de o Egito experimentar um “governo islâmico”. O domínio turco-otomano, o imperialismo britânico, o liberalismo do partido Wafd, o socialismo nasserista, o capitalismo selvagem de Sadat, além, é claro, do despotismo nepotista de Mubarak, não foram capazes de amenizar a difícil vida dos egípcios. Portanto, a experiência prometida pelos militantes islâmicos, responsáveis há décadas pela manutenção de bancos de distribuição de comida, redes de assistência e clínicas de saúde gratuitas, é uma promessa tentadora.
Além disso, a sociedade egípcia é bastante conservadora e extremamente religiosa. Não é incomum em viagens de ônibus pelo país ver o motorista parando o veículo para fazer um das cinco preces diárias indicadas pelo Alcorão. Também percebe-se que a vestimenta modesta, que inclui mangas e calças compridas, também para homens, é popular mesmo em dias muito quentes. O Islã, portanto, é uma solução a ser colocada à prova. É verdade que outros países tentaram com resultados bastante desanimadores, principalmente do ponto de vista democrático, como no caso do Irã xiita e a Arábia Saudita wahabita. Mas os egípcios têm todo o direito de experimentar a fórmula à sua escolha, que parece ser um governo islâmico no molde pregado pela Irmandade Muçulmana e com o exército de volta à caserna.
Isabelle Somma é mestre em Letras pelo Programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe da USP e doutoranda em História Social/USP com o projeto “O pensamento social de Hasan Al-Banna e a Sociedade dos Irmãos Muçulmanos (1928-1949)”