Marcia Camargos homenageia as mulheres em debate na Flip
Leia abaixo a íntegra da participação de Marcia Camargos na mesa Marco Zero Modernista.
Antes de começar, queria para fazer uma homenagem às mulheres. Isso porque uma repórter veio me perguntar se eu sabia que era a única mulher brasileira integrando a programação principal da Flip, e uma das cinco do universo de 34 escritores convidados. Por isso presto este tributo às mulheres, e principalmente às escritoras, blogueiras e jornalistas iranianas, inspiradoras das revoltas na Tunísia que desabrocharam na Primavera Árabe.
E faço esta homenagem por intermédio das companheiras de Oswald de Andrade. Que ele foi um namorador inveterado, um feminista defensor do matriarcado, todos sabemos. Mas poucos se dão conta de que sua trajetória, seus escritos e sua atuação como poeta ou jornalista esteve sempre vincada, inspirada ou talvez até determinada pelas mulheres que passaram pela sua vida como Tarsila do Amaral, Pagu, a Patrícia Galvão, a pianista Pilar Ferrer, a escritora Julieta Bárbara Guerrini, Maria Antonieta d’Alkmin. E por que não, também a estudante francesa Kamiá, Carmen Lydia e a Deise? Por meio delas, eu homenageio todas as mulheres presentes na Flip ou não.
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Mas vamos então ao tema do presente encontro. O nome desta mesa remete a duas ideias. A mais óbvia refere-se ao romance Marco zero, que foi concebido como um conjunto de cinco livros. Deveria constituir, nas palavras do autor, um mural, um afresco, um mosaico e um comício de idéias: enfim, uma síntese da história do Brasil na primeira metade do século XX a partir de São Paulo. No entanto, dos cinco livros projetados, apenas dois foram escritos: Marco zero I ? A revolução melancólica e Marco zero II ? Chão. O primeiro volume da projetada pentalogia brasílico-paulistana, datado de 1943, a partir do fracasso da revolução de 1932 mencionada no título, traz um panorama de São Paulo. Ele usou nada menos do que 80 cadernos para mapear o espaço paulista percorrendo a capital, o interior, o litoral. Ele consegue a proeza de fazer o leitor percorrer diferentes regiões geográficas e sociais, indo da sede da fazenda para o bairro proletário do Brás, registrando os diferentes linguajares regionais. O segundo registro, menos aparente, mas que se encontra ai como uma possível provocação, refere-se à Semana de 1922, da qual Oswald de Andrade foi um dos artífices, e que costuma ser fixada como um corte epistemológico, espécie de marco zero das artes e da literatura brasileira, contrapondo-se à produção artístico-literária imediatamente anterior, definida como pré-modernismo, expressão criada nos anos trinta por Alceu Amoroso Lima para designar o período que se estende dos fins do simbolismo aos primórdios do modernismo. Por este território inóspito vagam nomes tão diversos quanto Augusto dos Anjos, Lima Barreto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato ou até mesmo o maranhense Sousândrade (1833-1902), um dos precursores do verso livre que teria antecipado em mais de meio século a poesia modernista. Quer dizer, o modernismo reivindica o status de ponto de partida das artes brasileiras, o que evidentemente não procede. Por isso é preciso, sempre, desmistificar a Semana de 22 como marco zero da cultura brasileira, uma construção exagerada que se deve à eficientíssima máquina de propaganda modernista, só possível devido aos cargos importantes que a maioria dos seus protagonistas ocupou na burocracia governamental ao longo da décadas seguintes.
Mas estamos aqui para falar de Oswald de Andrade. Afinal, quem é este homem polêmico, provocador, uma apaixonado que engolia a vida como se fosse um banquete antropofágico, e que deixou seu nome marcado no cenário artístico e cultural brasileiro? Bem, o paulistano Oswald de Andrade era filho único de Jose Oswald Nogueira de Andrade e de Inês Henriqueta Inglês de Sousa Andrade. Nascido em 1890, morreu com apenas 64 anos. Ele é conhecido como um dos articuladores da Semana de Arte Moderna de 1922. Realizada no Teatro Municipal de São Paulo, reuniu um grupo de jovens escritores, pintores, músicos e escultores, que pretendia sacudir a intelectualidade e tirar a arte brasileira de sua condição de cópia acrítica das vanguardas importadas do exterior, sobretudo de Paris. Neste evento tido como o primeiro ato público do que, mais tarde, viria a ser conhecido como modernismo, Oswald teve o papel de aglutinador ao lado de Mário de Andrade. Há, inclusive, quem diga que a Semana de 22 só aconteceu devido a um simples acaso do destino, a um feliz encontro entre dois opostos que se atraem e se completam. Sem guardar o menor parentesco, os dois Andrades, Mário e Oswald, numa fusão química sem precedentes, teriam funcionado como catalisadores de uma tendência que se esboçava no cenário do pós-guerra. Dotados de estilos, personalidade, extração social e atitude em tudo inversos, os Andrades conheceram-se em 1917, quando Oswald foi ao Conservatório Dramático e Musical, do qual Mário era professor.
Efetivamente, não poderia haver dois tipos tão diversos de intelectual. Oswald era uma inteligência a jato, com admirável poder de síntese. Mário era o cimento: Oswald a areia, um pouco mais áspera e atritante. Resumindo: Mário era apolíneo; Oswald, dionisíaco. Dessa rara coesão tensionada por forças divergentes, resultou a dinâmica que animou o grupo. A eles coube a liderança por sua ação estimuladora, tanto nos anos que antecederam a Semana, como no decorrer da década de vinte. Claro que mesmo durante a Semana de 22 Oswald não perdia a irreverência, uma das suas marcas registradas. Apesar dele próprio vir da elite cafeeira que financiou o Festival modernista, Oswald arregimentou estudantes de Direito do largo São Francisco ali nas imediações do Theatro para dar o tom do contra à festa, vaiando em vez de aplaudir os artistas que se apresentavam no palco. Conseguiu, assim, realizar seu intento de chocar a burguesia.
Mas não é só isso. Homem viajado, cosmopolita e bon vivant, fundou em 1924, com Tarsila do Amaral, o Movimento Pau-Brasil, que pretendia libertar a poesia “das influências nefastas das velhas civilizações em decadência”. Algo que seria alcançado quando os poetas se voltassem para a realidade singela do dia-a-dia: “A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela sob o azul cabralino são fatos estéticos”. Oswald de Andrade tropicaliza o cenário urbano dos anos 20: “Arranha-céus/Fordes/Viadutos/Um cheiro de café/No silêncio emoldurado”.
Essa receita está ainda presente no Manifesto Antropófago de 1928, datando-o também como ano 374, da Deglutição do Bispo Sardinha, retomando o papel simbólico do canibalismo nas sociedades tribais/tradicionais. Mais tarde, ao lado de Patrícia Galvão, conhecida como Pagu, aproximou o fazer literário da militância política, engajando-se nas lutas do movimento operário e antifascista. Publicou então O Homem do Povo, jornal voltado para temas como revolução, arte e cultura.
Também lembremos que Oswald de Andrade mantinha um espaço de encontros etílicos e culturais na Rua Líbero Badaró, no centro da capital paulista, que os vanguardistas denominavam de “garçonnière”. Nessa confraria, escreveram um diário coletivo que daria origem ao livro O perfeito cozinheiro das almas deste mundo. Suas páginas expunham a intimidade daquela roda em cartas, recados, colagens, desenhos, e um pouco da filosofia do grupo, que, mais tarde, protagonizaria a Semana de Arte Moderna. Neste Diário Oswald de Andrade buscou registrar o espírito modernista num mundo em transformação, no qual cabiam novas maneiras de fazer poesia, incorporando o coloquialismo e a oralidade do cotidiano.
De todos os pratos culturais servidos na farta mesa de Oswald de Andrade, que nos legou uma deliciosa travessa de “biscoitos finos”, as instituições da Antropofagia representam, segundo Antonio Candido, o momento mais denso da dialética modernista. Conjugando o léxico das vanguardas européias com a riqueza das tradições populares, alcançou o desejável equilíbrio entre enraizamento nacional e inserção universal. E aqui aproveito para ressaltar que a antropofagia não é sinônimo de canibalismo. Antropofagia tem a ver com a plasticidade herdada do homem ibérico, da permeabilidade da tradição e vanguarda, do erudito e popular, do centro e periferia, num movimento aglutinador de soma. Já canibalismo está mais ligado ao modo capitalista de produção, à exploração dos trabalhadores em busca da mais valia. O canibalismo surgiu quando o antropófago deixou de comer o homem para escravizá-lo e explorá-lo em nome do lucro.
Mas este inventor da antropofagia e marido de Tarsila do Amaral e de Pagu, Oswald acabou criando uma mística em torno de si. Conforme conta em um dos seus versos, quando era jovem repórter, ao entrevistar Isadora Duncan, que se apresentava no Municipal, bebeu champanhe servido no sapato da dançarina. Histórias como esta fizeram com que Oswald ficasse conhecido do grande público mais como um personagem do que como escritor. Antonio Candido, aliás, diz que o Oswald lendário e anedótico tinha razão de ser: a sua elaboração pelo público manifesta o que o mundo burguês de uma cidade provinciana enxergava de perigoso e negativo para os seus valores. Ou seja, Oswald escandalizava pelo simples fato de existir. Por isso, ainda segundo Candido, de um homem assim, a existência é tão importante quanto os livros. De qualquer jeito , ele legou uma extensa obra, que vale a pena ser conhecida. Um dos mais inovadores entre os modernistas abriu caminhos que influenciaram toda a poesia brasileira posterior em Carlos Drummond de Andrade, Cabral de Mello Neto, Manuel de Barros e o próprio concretismo. Com sua linguagem sempre transgressora, procurando resignificar a mensagem artística, Oswald nos legou versos deliciosos como Relicário:
No Baile da Corte
Foi o Conde d’Eu quem disse
Pra dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí