Diálogo fictício do intelectual português Adalberto Alves e o Rei-Poeta al-Mu'tamid
José Adalberto Coelho Alves é nascido em Lisboa, Portugal. É poeta, escritor e arabista, autor de diversos livros sobre os árabes e os muçulmanos em Portugal. Foi vencedor do Prêmio Internacional UNESCO-Sharjah para a Cultura Árabe em 2008, tendo sido o primeiro galardoado de um país lusófono.
Abaixo o Icarabe publica de forma exclusiva a transcrição do diálogo engendrado entre Adalberto Alves e al-Mu'tamid, de quem é biógrafo. O diálogo fictício foi travado em sessão virtual em 21 de outubro de 2021 sob o tema "Cultura Luso-Árabe e Luso-Islâmica” e o autor gentilmente disponibilizou o texto ao Icarabe.
Para recordar: em 2017, 12ª Mostra Mundo Árabe de Cinema trouxe ao Brasil o espetáculo musical Al Mut’amid, que emocionou o público e marcou a história da cultura árabe no país (clique aqui para saber mais).
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Eis aqui o registo escrito, de um diálogo que tivémos, eu e al-Mu'tamid, nas vésperas de um evento ocorrido na Biblioteca Nacional de Portugal, no âmbito de uma homenagem conjunta que, a ambos foi prestada.
Amigo Abû-l-Qâsim: Ora viva! .
Deixa-me tratar-te assim, e não pelo teu cognome de al-Mu'tamid, uma vez que, calculo eu, este, talvez, te seja penoso, dado que significa “o que se apoia” (em Allâh)...
Olá! Como assim caro, Adalberto ?
Nada de cerimónias: trata-me da forma que mais te agradar .
Pela parte que me toca,eu opto por tratar-te por Adalberto, em vez de José (em árabe Yûsuf) porque este me traz à recordação o nome daquele impiedoso senhor dos Almorávidas,com quem não te quero confundir. Não que lhe guarde rancor já que ele foi
apenas uma personagem secundária do meu destino.
Em contrapartida,, o teu nome, Adalberto,tem na sua composição, talvez, por mera coincidência, o elemento “Adal”, que significa,como saberás, Justo, o que, julgo eu, não pode deixar de ser considerado auspicioso, o que, julgo eu não deixará, por certo de te agradar...
Seja, al-Mu'tamid, tudo bem, mas como podes tu aceitar, tranquilamente que ainda te apliquem tal cognome, quando é de todos conhecida a forma lamentável como terminou a tua vida ?
Sim, tu que havias sido tão um rei poderoso e cintilante, acabares de todo desamparado pelo Destino: miserável prisioneiro solitário, agrilhoado numa horrível masmorra?
Sabes, Adalberto, no estado de beatitude em que, desde há séculos, a minha consciência se encontra, e estando prestes a verificar-se a passagem dos mil anos da minha descida à vida, quer-me parecer que ainda não conseguiste a avaliar , com o melhor enfoque, a situação que referiste.
Mas, al-Mu'tamid, como podes tu dizer tal coisa que, a meus olhos, parece destituída de sentido? o teu cognome como que encerra, hoje, etimológicamente, uma sinistra ironia, depois das atribulações, sem fim, por que passaste no teu percurso final.
Em boa verdade, o que te aconteceu foi ter-te falhado, por fim, e em absoluto, aquele apoio que o teu cognome parecia augurar.
Não será assim ?.
Olha, amigo Adalberto, percebo o teu ponto de vista e a tua perplexidade mas, contesto, desde já, que a masmorra tenha sido, com dizess, o meu “destino final”. Por isso, gostaria que, ainda antes de continuarmos esta nossa conversa, concordasses em ouvir uma velha estória do Oriente, que circulava no meu tempo mundanal e que agora te quero contar...
À vontade meu caro Abû-l-Qâsim, quer dizer, al-Mu'tamid...
Então, escuta bem Adalberto. Tu que és, como eu, letrado e poeta, julgo que, decerto, alcançarás, facilmente, aonde eu vou querer chegar:
Contava-se que, há muitos séculos atrás, havia na Índia Antiga, um marajá, muito poderoso e justo, e que tinha, ao seu serviço, como grão-vizir, um homem que todos, sem excepção, consideravam sábio e admiravam .
Sucede, porém, que esse competente chefe do governo tinha por hábito repetir, quando se proporcionava a ocasião, algo que, invariavelmente, arreliava, sobremaneira, o seu soberano.
Consistia tal hábito em dizer, invariavelmente, como se de um mantra se tratasse, perante qualquer desgraça que acabasse de acontecer, e por mais trágica que que fosse: “é tudo pelo melhor!”. E de nada serviam os irritados e repetidos ralhos do seu senhor.
Um belo dia, o marajá, manhãzinha cedo, chamou o grão-vizir e disse-lhe: “está-me a apetecer ir à caça e quero que me acompanhes!”
“Meu amo”, respondeu o grão-vizir, “escuto e obedeço!”
Dois cavalos foram prontamente aparelhados pela cria- dagem e lá partiram os dois, com o soberano à frente.
Depois de muito cavalgarem, sem sinais de caça, chegaram a um certo ponto do caminho em que havia um ramo de árvore que estorvava a passagem.
O marajá, que seguia à frente, ao tentar quebrá-lo, acabou ferindo-se numa mão, embora sem gravidade, e logo prontamente o seu grão-vizir sentenciou, como era habitual, com ar muito sereno e sério:“é tudo pelo melhor!”
O marajá dorido com o ferimento e danado pela habitual tirada do seu grão-vizir, empurrou-o, num acesso de fúria, para dentro de um profundo, seco e abandonado poço, que existia à beira da vereda onde se encontravam.
Feito isto, o marajá, ainda mal recuperado da sua grande ira, resolveu continuar sózinho em frente e, em breve, ultrapassou e sem disso se dar conta, a fronteira do território do seu reino, ao embrenhar-se numa espessa selva.
Porém, não tardou muito, e sem ainda ter conseguido caçar o que quer que fosse, que se visse rodeado e logo manietado por um bando de ameaçadores selvagens, adoradores da deusa Kali, entidade à qual, na Índia antiga, se costumavam fazer sacrifícios humanos.
Estou-te a enfadar, Adalberto?
De modo nenhum, Abû-l-Qâsim, bem pelo contrário, estou deveras interessado. Podes continuar...
O infeliz marajá não tardou a ser arrastado para um templo existente nas proximidades, que estava votado à terrível deusa. O respectivo sacerdote tratou imediatamente de ordenar que despissem e lavassem o prisioneiro, para que, uma vez em estado de pureza ritual, fosse levado ao altar do sacrifício.
Porém, ainda mal tinham começado a lavá-lo, o sacerdote reparou na mão ensanguentada do marajá e de seguida gritou:“alto! Este homem não pode ser imolado, já que não se encontra em estado de pureza! devolvam-lhe as vestes, os cavalos e deixem-no partir!.”
E assim foi feito. E o soberano, suspirando de alívio, e não tendo ganhado para o susto, pôde livre voltar para trás.
No caminho do regresso, ainda a tremer, sobre a sua sorte, lembrou-se, de repente, daquele fiel servidor que havia deixado abandonado no fundo do poço e arrependeu-se, de imediato, por haver cedido à sua ira. E acabou reflectindo que, afinal, o seu sábio vizir falara verdade: fora, de facto, o ferimento que acabara por lhe salvar a vida.
E, assim, ao chegar junto do poço onde permanecia o seu infeliz vizir, tratou de lhe lançar uma corda, com que o içou, e contou-lhe, a seguir, as atribulações por que acabara de passar.
E fez um “mea culpa” dizendo-lhe: ““afinal reconheço que tinhas razão, quanto ao ferimento. Foi graças a ele que escapei com vida. Mas diz-me lá, agora, se também pensaste que “era tudo pelo melhor”quando te viste no fundo do poço?””
“É muito fácil”, respondeu, sem pestanejar, o grão vizir. “eu explico, se vossa majestade, me o permitir: estando vós ferido, se me não tivésseis lançado para o fundo do poço e deixado para trás, continuado juntos, seria eu, então, certamente, o sacrificado, em vosso lugar. Ou não será assim?”
E o marajá, caindo em si, teve, uma vez mais, de dar a mão à palmatória, sendo obrigado a reconhecer a sageza do seu grão-vizir, que continuou a servi-lo, fielmente, no seu alto cargo, até ao fim dos seus dias.
Muito bem al-Mu'tamid, é uma história muito edificante e que te agradeço mas, ainda assim, agora sou eu que não estou a ver que ligação possa ter o que acabaste de me contar com as desgraças do teu próprio caso...
Já vais perceber, amigo Adalberto:
Será que tu ainda continuas a achar que Alá me deixou ao desamparo, quando eu perdi minha liberdade e meu reino? Como estás enganado! Ora repara bem: a minha desdita valeu-me a compaixão das eras e herdei, do meu grande infortúnio, o maior tesouro: consolação e inspiração para escrever o melhor da minha poesia.
Aprendi também, então, a amar natureza e toda a vida que a anima: colhi o ensinamento das aves de Aghmat que, livres, eu avistava da janela gradeada da minha cela.
Delas me veio a mensagem de paciência e de resignação para suportar meu cativeiro e sorte.
Com isso, ganhei ainda o tesouro da admiração dos meus contemporâneos e vindouros e despertei, mais lúcido, para a suprema e sedutora beleza das palavras.
Assim, foi sendo tecida a veste da minha lenda: com o brocado dos meus versos. Para sempre, há-de ser lembrado e chorado o pobre poeta cativo que fui, em tempos, e o rei grande, em cuja corte competiam beleza, sabedoria e generosidade.
A estima, por mim e pela minha obra, até aos dias de hoje, quase dez séculos volvidos ,não mais deixou de crescer, a ponto de versos meus figurarem nas “1001 Noites” e a minha herança civilizacional ser reivindicada, por três culturas: a de onde nasci, Portugal, a de onde reinei, Espanha, e a de onde acabei meus dias, Marrocos.
Como podes, Adalberto, que ainda podes pretender que eu acabei meus dias esquecido por Alá ?
Tivesse eu continuado na minha opulenta corte, até ao fim e, se calhar, teria acabado meus dias, como tantos outros reis do meu tempo: velho, obeso e decadente, enredado na lassidão e na podridão das intrigas palacianas. Quem sabe, se mesmo assassinado, como muitas vezes acontecia nesse tempo, por força de intrigas urdidas por cortesãos invejosos e ambiciosos.
Al-Mu'tamid, meu bom amigo, não digas mais. Não posso deixar de concordar contigo. Vejo, agora, com clareza, como o teu teu destino fez jus, ao teu nome, pois Alá, por vias ínvias, tal como na estória que acabaste de contar, também no teu caso, “fez tudo pelo melhor”. E, com isso, foi a imortalidade que, de facto, pelo seu próprio pé, veio ao teu encontro.
Ó al-Mu'tamid, eu que, ao pé de ti, não passo de uma modesta sombra, se algum mérito posso ter, talvez seja o de ter lutado empenhadamente para que, também na tua terra natal, o teu nome fosse, para sempre lembrado.
Visitei o teu túmulo, em Aghmat, numa romagem de saudade, e lutei com minhas modestas forças pela construção, em Portugal, dos marcos que te celebram,escrevi a tua vida, transcriei teus versos.
Sabes, Adalberto, o excesso de modéstia, também é defeito. Tu sabes bem que temos muito em comum, para além de ambos sermos poetas. Então não nasceste nesta Lishbûna a cujas portas chegou o meu reino? Na, então explêndida, Bajah não me trouxe à luz minha mãe e não brincaste tu nessa mesma Beja desde a mais tenra infância e, mais tarde, naõ avançaste com a ideia do meu memorial? E em Shilb (Silves) da qual eu guardo as minhas mais doces recordações de juventude, à beira do rio Arade, não
deste, com tua obra, impulso para erguer, com o meu nome, a mais bela praça da cidade?
Não tenho feitio de contabilista e, por isso, não quero saber quem deve mais a quem... mas Adalberto, não foi só a graça da poesia que nos juntou para um fim comum. Foi a consciência que é um dom de energia com que somos todos dotados e que tudo abarca, ainda quando disso não nos apercebamos.
Dizes bem al-Mu'tamid. Sabes que hoje os sábios da Nova Ciência estão a descobrir que é de consciência, que nós somos feitos, a qual comanda tudo e que nem espaço nem tempo conseguem limitá-la porque sendo infinita é também eterna.
Estamos, então, Adalberto, em harmonia, porque todos, afinal, nos podemos chamar al-Mu'tamid.
Sim, Abû-l-Qâsim, meu mestre e companheiro, realizamos ambos plenamente o sentido da nossa profunda irmandade...
21 de OUTUBRO DE 2021