Registro de um diálogo improvável

Sex, 05/11/2021 - 19:41
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Considerações gerais e, especificamente, sobre o livro de Mahmud Darwich, Memória para o esquecimento, tradução de Safa Jubran, recém-lançado pela Editora Tabla

 

J: Olá, Rapaz! Como vai? Quanto tempo, hein?

H: Olá, meu Camarada! É mesmo. Nem parece que nosso último encontro foi em setembro de 2018, em Niterói. Por coincidência, no dia seguinte do aniversário do A.

J: Você sumiu! Você se aposentou e saiu por aí.  Esqueceu os amigos?

H: Não, de forma alguma. Pelo contrário, estou revendo amigos que há muito não via.  Você sabe que o Brasil é o início e o fim do mundo e, com a vida que eu tinha, ficava muito difícil.  Agora não.  Estou livre de minhas atribuições por aqui. E como vão R, A, T e D?

J: Cada um seguindo o curso da vida, trabalhando, estudando...

H: Que bom! É bom saber disso.

J: Está chovendo. Vamos almoçar comida alemã?

H: Ótima ideia! A mesa farta e um chope bem gelado deixam a gente mais inteligente e temos muito a conversar.

J: Vamos ao Bar Brasil? o Alemão, antes da guerra.

H: Vamos lá.  Nós estamos bem perto.

J: Aquela mesa do canto está bem?

H: Excelente!  Mais reservada.  Assim, podemos pôr nossa conversa em dia.

J: Este ano tivemos um outubro diferente.  Chuva todos os dias.  Onde já se viu dormir de cobertor nesta época do ano?!

H: De fato.  Tenho estranhado.  Hoje, 2 de novembro e o tempo desse jeito! Se bem que, quando eu cheguei ao Brasil, na década de 70 do século passado - que coisa hein! - todo mundo dizia que no Dia de Finados é chuva na certa.

J: Desde pequeno ouço essa história também.

   Conte-me, e como anda o Líbano?  Tem estado por lá? É isso mesmo que a imprensa noticia?

H: O Líbano não anda, corre.  Só não se sabe para onde. As crises econômica e política são graves. Nessa altura do campeonato, eu, beirando os 80, já vi tanta coisa naquela minha terra e, por isso, tenho a convicção de que o Líbano há de superar.  Todos os beligerantes sabem que eles precisam daquele pequeno país e, desse modo, não convém que ele desapareça. E o pior: aqueles que mais apanham são os mais desfavorecidos como sempre.  As coisas no Brasil estão terríveis também. Vejo pelos noticiários internacionais. Ainda bem que me aposentei. Já estava de saco-cheio.  Acho que não iria aguentar ver tanto retrocesso. Vamos falar de coisas boas.

J: Está bem.  Vamos falar de coisas mais amenas.  O seu Flamengo vai bem.  Agora, não tão bem como há dois anos. O meu, vai continuar na segunda divisão no ano que vem.  Acho que agora eu vou torcer pelo Najma.  Pelo menos não sei dos resultados, nem pela internet.

H: Não fale assim.  Você sabe que o meu time no Líbano é o Najma? Vi o Pelé, em 1974, jogando contra o Najma.

J: Sabia que o seu time de lá é o Najma, porém essa história do Pelé jogando lá é uma novidade.

H: Foi preciso eu me aposentar para o Flamengo melhorar e, veja que ironia, o salvador foi Jesus, um português, que veio para dar um jeito na Gávea. Eu já morei em frente, lembra?

J: Se me lembro, mas bom mesmo era sua residência no Alto-Leblon.  Coisa de rico!

H: Um monte de novo rico.  Lá eu não aguentei por muito tempo.  No dia em que um garoto, filho do vizinho, quis impedir a entrada do filho do zelador no elevador social e LT, meu filho, com 8 anos, lhe deu uma porrada na cara, percebi que o meu lugar não era aquele e caí fora.

J: Mas a burguesia tem bom gosto.  Horta, verdura ao vivo, restaurante 24 horas por dia, condução de 30 em 30 minutos para o Baixo...

H: Eu quero que eles se danem.  Todos nós temos nossos momentos de fraqueza, porém o importante é percebermos que aquela não é a nossa tribo, o nosso clã, e cairmos fora.

J: Você tem toda a razão.  Como você sabe, eu nunca morei no Alto, nem em prédio, sempre em casa. Frequento um clube, lá bem perto de onde você morou, do qual nem sócio eu sou, mas o de que eu mais gosto mesmo de lá é da arraia miúda, dos trabalhadores, dos funcionários. Os graúdos me aturam, pois tenho um bom comportamento e estudei um pouco.

H: E o pessoal da Faculdade?

J: A G não dá mais aula, mas está sempre conosco; o I sumiu, dele tenho notícias pela G; a S prepara-se para ser fazendeira; a B faz parte da Direção; a P casou; a CR continua ao lado da Magnífica; o G e o AM, inventando histórias; o JC, pensando em viver na Europa e o ZC, orientando e escrevendo como sempre.

H: E o nosso C?

J: Continua relendo O Capital, envolvido com a epistemologia e a hermenêutica.

H: Vamos pedir outro para acompanhar a comida que está saindo ali? Estava com saudade do chope da Brahma.

J: Você já leu Memória para o esquecimento do Mahmud Darwich?

H: Eu ia lhe falar sobre isso.  Que maravilha!  Como a Safa conhece tão bem as duas línguas.  E que sensibilidade! E as notas de rodapé?  Magnífico! Sabe que li o original faz tempo.  Comprei o livro em Casablanca. Por incrível que pareça, a Safa incorporou o espírito do poeta, ou melhor, do escritor.

J: Safa é extraordinária! Além de competente e organizada, ela tem o coração acolhedor.  Já orientou diversas alunas nossas, no Mestrado e no Doutorado.

H: Você sabe que me fez bem ler o romance novamente, agora em português?  Eu já lhe contei sobre a amizade entre mim e o Mahmud. Eu me transportei para ruas, becos e vielas de Beirute. Meu coração pulsou forte.  A gente vive aí pelo mundo, mas a nossa infância e a juventude são inesquecíveis. Eu me lembrei de nossas discussões, às vezes acaloradas - pelos bares e cafés de Achrafieh e de Al Hamra.  E aquela recepcionista do Hotel Baalbek? Ela largava às 8 da noite!  Entrava sorrateiramente no alto dos saltos, sentava na mesma mesa, pedia um chá e abria uma revista. Que olhos! Somente ela, enigmática, esfíngica, como dizia o parceiro, era capaz de interromper nossos embates políticos.  Naquela época queríamos incutir nossos ideais comunistas em toda a população de Beirute.  Nosso amigo comum, Alexander, dizia em sua língua, o russo, uma coisa que entendíamos mais ou menos assim: “é mais fácil uma galinha com dentes do que um árabe comunista”.  Alexander estudava árabe em Damasco, mas, mesmo com o passaporte preso na embaixada, vinha para Beirute aos finais de semana com o pessoal da OLP. Conversa mole de intelectual. O que se chama aqui no Brasil de papo da esquerda festiva.

J: Esquerda?  Tenho minhas dúvidas, mas a festa é impossível. Vivemos uma dupla epidemia: a Covid 19 e o neo. Tudo é neo: neoconservadorismo, neonazismo, neofascismo, neoliberalismo, neopentecostalismo.  Não há criatividade nem para a formarmos novas palavras. E isso é gravíssimo! Remete a um momento de inércia e de passadismo.

H: Voltemos ao romance?

J: Não conhecia Darwich prosador e sim como o poeta nacional palestino, ou melhor, o poeta do mundo árabe.

H: Que mundo árabe? Este existe somente nos discursos dos políticos que o invocam para manipular as massas, atraindo-as em busca de interesses próprios. Eles desenterram feitos memoráveis, heroicos, mas discutíveis.  Eles narram histórias espanando o pó da história, vivificando lendas do pré-islamismo aos Califados. Os árabes gostam de heróis, de mártires e, principalmente, de ouvir histórias.

J: Concordo com você, mas Darwich é o poeta do povo árabe, porta-voz de grupos sufocados pelos regimes perversos e totalitários.  Eles declamam seus versos acreditando na verdade da língua árabe, a língua da Revelação.

H: E o pior, J, o drama palestino, ou a tragédia palestina, virou símbolo e a resistência de pé, ao lado de um panteão de mártires expostos a céu aberto, nos postes, nas árvores.

J: Eu presenciei manifestações populares de diversas ordens, em ocasiões distintas, da África do Norte ao Oriente Médio e Darwich estava sempre presente. Incrível! 

Em Beirute, 1979, durante o funeral de Ali Hassan Salameh, palestino emboscado pelo Mossad. Eu me dirigia à Embaixada do Brasil para almoçar com o Embaixador PCF. No caminho o trânsito travou e uma multidão reverberava versos de Darwich, acompanhando a recitação-oração de um jovem sobre os ombros de um colega.

Em Damasco, ainda em 1979, milhares de pessoas festejavam, em frente à Embaixada dos Estados Unidos, inundando de felicidade as adjacências, a queda da longa e tirânica dinastia Pahlavi no país vizinho.  Aquele momento histórico ficou fixado em minha memória: as pessoas com os dedos em forma de V para cima e versos de Darwich, musicados, entoados pelos participantes.

Algum tempo depois, no início dos anos 90, em Casablanca, constatei, também, a força do poeta palestino. Numa marcha cívica, inteligentemente encampada pelo Rei Hassan II, em um Primeiro de Maio, os sindicatos desfilavam empunhando bandeiras e algumas delas com versos de Darwich.

Em Tetuão, no ano seguinte, eu percebi alunos e professores da universidade local repetindo versos do poeta palestino.  A manifestação era um protesto contra a invasão americana e de seus aliados ao Iraque.

H: É inegável como a poesia de Mahmud tem a alma árabe, por isso empolga.  Ele diz o que o povo deseja e não pode dizer.

J: H, você é um poeta. Faz versos em árabe, inglês e português.  Leu muita literatura. Mas você reconhece que o prosador dispõe de mais recursos linguísticos para exprimir suas ideias?  Será que esse foi o motivo de Darwich enveredar para a prosa?

H: Isso é muito discutível. Mas um poeta fica impedido de escrever em prosa? Meu amigo Mahmud foi um intelectual livre.  Questionava sobre a função política daquilo que escrevia, mas estava se lixando para a crítica.  Quem teme a crítica não escreve uma palavra.

J: De fato, em Memória para o esquecimento ele trabalha o tempo de maneira admirável. A trama se desenvolve em um único dia, que se apresenta como o último, não necessariamente o derradeiro.  Naquele curto espaço de tempo, ele constrói quase uma autobiografia, contextualizada na indecisão de um destino possível, mas desconhecido, ou, sequer, imaginado. Será preciso embarcar em um navio até o final do dia.  Essa é imposição das tropas invasoras que cercam e bombardeiam Beirute sem trégua. Assim, a narrativa demonstra a efemeridade de tudo e, por isso, nada pode ficar para trás. A memória em profusão entrelaça o passado ao presente e o tempo, urgente, eterniza o futuro pelos sentidos, mais do que nunca aguçados. Mesmo assim, a palavra foi o que restou. Tudo o mais que aconteceria a partir daquele dia de agosto de 1982 era dúvida.

    E você sabe que naquele dia fatídico a G estava lá? Ela estava do outro lado da cidade. Ela estava num abrigo, num porão, lá no Alto, como lá onde você morou no Leblon.

H: Ela já me disse isso. Saiu de férias e não pôde voltar.

Na verdade, o romance de que falamos está entremeado de poesia, poeta é poeta sempre, mesmo escrevendo prosa. Ele aponta, entre outras coisas, o que estou farto de saber, a falta de identidade de um país.  Uma cidade que se diz cosmopolita, Beirute, é o retrato de uma aldeia do interior de qualquer lugar do mundo, em que qualquer forasteiro é observado com desconfiança. E quem não é forasteiro lá?

J: E a erudição de Darwich?! O homem conhece tudo: história, filosofia, cultura árabe, cultura grega, doutrinas políticas...

H: Mais uma vez convém destacar os esclarecimentos que a Safa fornece nas notas para elucidar as dúvidas. Trabalho de artesão.

J: Você bem sabe que, além de excelente tradutora, ela é professora.

H: Quando li este livro, em árabe Dhakira lil-Nisyan, pensei em escrever algo parecido relatando os trágicos acontecimentos ocorridos no mês seguinte, em setembro, o conhecido Massacre de Sabra e Chatila, em que as tropas israelenses, valendo-se de que a população palestina estava indefesa, cercaram e iluminaram os dois acampamentos para que as forças falangistas executassem, em menos de 48 horas, de 2500 a 3000 pessoas, entre elas crianças e até animais. Tentei, mas saiu somente um longo poema.  Você o conhece?

J: Não. 

H: Na próxima visita eu trago pra você. Está escrito naquele caderno grosso, em espiral.

J: Eu conheci Sabra e Chatila, há cinco anos, da última vez em que estive no Líbano.  E a G estava conosco.  Ela conheceu um Líbano que nunca lhe tinham apresentado.

H: Ela é dos nossos.

 

    Está na minha hora. Você paga a conta?  Não tenho nem um real.

J: Deixa comigo.

H: Até a próxima!

J: Não demore muito.  Um forte abraço e lembranças a nossos amigos comuns.

H: Está bem. E são muitos! Até...

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Nota de esclarecimento: Este diálogo fictício, travado entre João Baptista Vargens, professor da Faculdade Letras da UFRJ, e Hani Hazime, ex-professor da mesma Instituição, falecido em 3 de setembro de 2018, foi registrado pelo primeiro, no Rio de Janeiro, em 2 de novembro de 2021.