E agora, Argel?

Sáb, 15/08/2015 - 11:25
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O jornalista e diretor de Imprensa do ICArabe discorre sobre “Sotto Voce”, o filme de abertura da 10ª Mostra Mundo Árabe de Cinema.

Sotto Voce, baixar a voz, procurar destacar-se por meio de quase silenciar o que se diz. O filme da abertura da 10ª Mostra Árabe de Cinema foi tocante demais, foi impactante demais. Entremeada em planos do filme, uma ópera - composta pelo próprio diretor, Kamal Kamal - sobre perda, sobre amores desmedidos e morte era o sinal de uma beleza estética que dialogava com a memória do narrador nascidas de um passado de dor, uma história que se desdobrava em vários caminhos e nos afligia porque desvelava várias camadas. 

Uma menina violentada no atual Marrocos, quebrada em sua alma, será confortada pelo narrador da história de Sotto Voce. Mas o diálogo torna-se um julgamento. Ela, de frágil, torna-se a autoridade moral do presente que julga o passado. A obra do marroquino Kamal Kamal é a elaboração estética perfeita, delicada e dura, do último meio século da política dos países árabes. 

Sotto Voce é sobre projetos fracassados, sobre uma revolução libertadora que cobrou seus dividendos, que não escondeu suas escolhas equivocadas, que apresenta os seus legados perturbadores, pois não há como fazer qualquer idealização do presente.  

O homem que narra é corajoso e heróico ou um covarde traidor? Essa ambiguidade poderia ser dita sobre qualquer um de nós. O drama, a tragédia, é entremeada pelas reminiscências de um idoso prostrado diante de uma jovem que questiona suas decisões do passado. O relato se torna um testemunho. 

O lamentar das perdas e dos erros dá-se dentro de um universo político, em meio a revolucionários patéticos, limitados a suas doutrinas estreitas. Sim, os heróicos guerrilheiros libertadores de Pontecorvo ficaram no passado. A herança do presente permite apenas a profecia de Frantz Fanon. A consciência nacional não se tornou a consciência social. Os projetos dos quais alguém se vangloriou um dia ficaram perdidos nas caminhadas por fronteiras, nas escolhas que se fizeram nas encruzilhadas contra o poder colonial. 

Sotto Voce é também uma escapatória de consciência, uma expiação do diretor pelo sofrimento de sua mãe. Ele disse em entrevista a este Icarabe: "Minha mãe era argelina, da resistência na guerra da Argélia. Desde a minha infância, ela contava histórias do período, de como ela cruzou as fronteiras de Tlemecen, pelas montanhas com neve, à cidade de Berkane, em território marroquino. Lá, foram até um campo de refugiados argelino, onde foi instalado um sistema de sentenças de morte in absentia. Eu entendi desde cedo que ela sofria os efeitos dessa guerra. Ela sofria de dores de cabeça frequentes e muitos pesadelos, e se ela assistia a uma cena de guerra em um filme ou na TV, ela chorava toda a noite e nada podia fazê-la parar."

Os personagens de Sotto Voce refizeram os passos da mãe de Kamal, viveram o drama da fronteira cheia de minas, onde partes do corpo e almas são amputados e deixados para trás. Da Argélia/Marrocos, até Líbano, Síria, Israel e Palestina,  até o Iraque. 

E, claro, os colonizadores estão lá, na forma de burocratas abusivos, ou então soldados sem rosto, sem forma. Notamos eles pelo medo da morte, por seu poder de controle de onde não se escapa, pela tentativa de abuso, de estupro. A Linha Morice, a barreira imposta para impedir guerrilheiros argelinos de entrar na Argélia controlada pelos franceses, não é a metáfora mas o monumento à impotência humana.

Sotto Voce não é um manifesto, mas um suspiro da dúvida. Um suspiro assustador que coloca em xeque os projetos, vitoriosos ou não. Pois aí está a dúvida, um conjunto de legados impossíveis de serem objetivamente analisados quando vistos pela sensibilidade de Kamal. O perdão está soterrado sob fracassos e culpas.  A política, a crença e o sujeito estão no palco de Kamal, são os fantasmas do diretor, são os fantasmas dos povos árabes. Um ciclo colonial que parece um pecado capital ao qual se paga eternamente. E no qual nos reconhecemos, no qual nos enxergamos como a jovem que julga, o velho que lamenta e se culpa e mulheres e homens, surdos e mudos, que vagam perdidos por paisagens inóspitas de um lugar que se torna universal.