Edward Said - inspiração da nossa causa e de muitas outras

Seg, 16/07/2007 - 21:00
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A necessidade de criação do ICArabe nasceu, em grande parte, após a morte do escritor palestino Edward Said, ocorrida em 25 de setembro de 2003, ícone da resistência cultural e política para os árabes e para todos que lutam por justiça e igualdade.

Edward SaidNa época, a Folha de S. Paulo publicou um artigo a respeito, assinado por Nelson Ascher, que continha um tom desrespeitoso e agressivo direcionado ao intelectual (Veja o Manifesto dos 187).

No dia 11 de dezembro daquele ano, por uma iniciativa da SBPC-Reg. São Paulo e do Instituto Jerusalém do Brasil, foi realizado no Club Homs, na capital paulista, um ato em homenagem a Said. Marcaram presença no local mais de 60 entidades da sociedade civil e o auditório foi lotado com mais de 200 pessoas.

Durante o evento, os intelectuais Emir Sader, Aziz Ab´Saber, Marilena Chauí, Francisco de Oliveira, Ricardo Antunes, Francisco Miraglia, Mohamad Habib, Milton Hatoum, Ligia Osório, Mamede Jarouche, José Arbex Jr., Jacob Gorender, Ivana Jinkings, Gilberto Maringoni prestaram um tributo a Edward Said.

Said era um intelectual público que não hesitou em intervir para defender ideias, valores e principalmente a causa conhecida como Questão Palestina. Como crítico literário e sociólogo da cultura, ele se tornou conhecido pelo seu livro Orientalismo, onde demonstrou que no Ocidente a imagem dos orientais, especialmente dos árabes, foi construída para legitimar sua supremacia. Said foi um grande defensor das legítimas aspirações do povo palestino de viver em paz e com independência na sua terra. Ao mesmo tempo defendia também esse direito aos judeus. Sua vida foi um exemplo para todos os que lutam contra os opressores, por uma nova ordem mundial, mais solidária e com mais esperança (Saiba mais sobre a obra e vida de Edward Said nos links no fim da página).

 

Do ato, um livro

Imagem removida.Dois anos após o Ato, no dia 13 de dezembro de 2005, foi organizado e lançado pelo ICArabe, em parceria com a Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, o livro “Edward Said – Trabalho Intelectual e Crítica Social”, no Museu da Casa Brasileira, em São Paulo. Mais de 250 pessoas participaram do evento. A publicação reúne artigos de diversos intelectuais que participaram do Ato em homenagem ao intelectual. 

Leia abaixo o discurso feito em nome do ICArabe por Soraya Smaili, na época presidente do Instituto, no dia do lançamento do livro. Na sequência estão palavras de Mariam Said, esposa de Edward Said, que impedida de comparecer ao evento, enviou-as especialmente para a ocasião.

Boa noite a todos e todas

Por muitas razões hoje é um dia de celebração para nós. Celebramos Edward Said, sua vida, sua obra e luta pela causa palestina e pelos árabes. Celebramos o intelectual e ativista, mas também celebramos o entusiasmo e a iniciativa coletivos.

Há dois anos, em setembro de 2003, falecia o ativista e expoente da intelectualidade Edward Said, após uma longa jornada de luta contra a leucemia. A morte de Said provocou inúmeras reações de tristeza e de comoção pela perda do intelectual pleno e pacifista inconteste.

A morte de Said terminou por nos mostrar uma outra realidade também dolorosa : o quanto estávamos despreparados frente aos ataques e às injustiças. Mas essa constatação foi seguida de uma reação, onde imediatamente, por iniciativa de Ivana Jinkings, Emir Sader e Daniela Morreau, teve lugar o manifesto em honra a Said e que foi assinados por muitos dos mais expressivos intelectuais brasileiros. Foi o primeiro sinal de que algo especial estava por acontecer e que teria a força da organização coletiva.

Por sugestão de Emir Sader e com iniciativa da SBPC-SP e do Instituto Jerusalém do Brasil, iniciamos a organização de um Ato em homanagem a Said que, embora tenha começado pequeno, terminou de grandes proporções. Ocorrido em dezembro 2003, contou com as presenças generosas e os pronunciamentos brilhantes de Jocob Gorender, José Arbex Jr., Gilberto Maringoni, Milton Hatoum, Chico de Oliveira, Ricardo Antunes, Lygia Osório, Mamede Jarouche, Ivana Jinkings, Chico Miraglia, Mohamad Habib, Aziz Ab`Saber, Marilena Chauí e Emir Sader.

Sobre o Ato em si, não é necessário dizer muito, basta apreciar a beleza de produção intelectual contida no volume que lançamos hoje. Os artigos, de uma complexidade e riqueza, são um verdadeiro convite não só à leitura das obras de Edward Said, mas ao universo do intelectual no seu verdadeiro papel de reflexão e questionamento. Para completar acrescentamos à produção os artigos de Arlene Clemesha, Ali el-Khatib, Leujeune Mato Grosso e Paulo Farah, com Capa do artista plástico Gershon Knispel. 

Hoje, dois anos depois da morte de Said, podemos dizer que este livro não é só grandioso pelo registro histórico da homenagem feita a ele. Ele representa o marco histórico do nosso movimento e da nossa organização pela criação de um Instituto da Cultura Árabe, proposta feita naquele dia por Francisco Miraglia e que elucidou o nosso desejo intrínseco de uma organização que divulgasse a Cultura Árabe em todos os seus aspectos universais, de tolência e de humanismo. A possibilidade da criação deste instituto acendeu a chama da nossa dignidade.

 Após algumas reuniões com um grupo grande de pessoas que crescia e se entuasmava com essa inspiração inicial, fundamos o Instituto da Cultura Árabe em Novembro de 2004 com a realização do I Ciclo de Debates sobre a Cultura Árabe, no TUCarena.  De lá para cá realizamos vários debates, palestras, ciclo de cinema, teatro, música e iniciamos a veiculação periódica de informação de qualidade através do nosso Correio semanal. Por isso hoje, celebramos tantas coisas, representadas não só pela memória de Edward Said, mas pela nossa capacidade de organização e de luta.  E não poderia ser diferente para representar o que foi Said, a diversidade, a intelegência, a coragem, a sensibilidade e a perseverança. De fato, Said representa os valores mais elevados desta Cultura, que ele admirava e elevava.

Para atingirmos o conjunto de celebraçòes que realizamos nesta noite contamos com muitos apoios, em especial ressaltamos:
 

  • Da Diretoria do Instituto da Cultura Árabe, Murched Taha, Michel Sleiman, Muna Zeyn, Ana Madi, Rafael Machiaverni, Carlos Madi, Mohamad Habib, José Arbex e Francisco Miraglia. Especial menção à Ana e Carlos Madi.
  • Dos Conselhos Cultural e Imprensa composto por várias pessoas de enorme contribuição cujos nomes estão no livro que hoje lançamos.
  • Do trabalho minucioso de Arlene Clemesha que atuou fortemente na organização da obra.
  • Do incentivo de Emir Sader, Milton Hatoum e Chico Miraglia que foram cruciais para que o livro se tornasse realidade.


Para a vida das pessoas que participaram deste trabalho e contribuíram para que este livro pudesse acontecer, Edward Said tem um simbolismo por uma diversidade de fatores. Durante a sua vida, lemos os seus artigos e olhamos para ele como um exemplo de perseverança. Mas não sabíamos que a sua trajetória teria uma ação determinante na nossa organização cultural e na nossa expressão intelectual mais ativa.

Como a vida e obra de Edward Said, como o Ato em sua homenagem, este livro representa o trabalho de muitos e é a expressão mais pura da beleza e da força de um trabalho coletivo.

“Acho que o que eles querem é o meu silêncio, mas até a minha morte isso não vai acontecer”.
Edward Said

Algumas Palavras e um olhar sobre Edward Said

Edward Said foi um Palestino, um Árabe que cresceu no Mundo Árabe e foi educado nas melhores escolas e Universidades nos EUA. Ele graduou-se em Literatura Inglesa e posteriormente escreveu sua tese de doutorado sobre Joseph Conrad. A carreira de professor de Said iniciou-se em 1963 na Columbia University, onde ele ensinou várias gerações de estudantes provenientes de diferentes locais e países. Quando morto em 2003, seu título na Universidade era o de “University Professor”, o mais alto grau concedido na Columbia University.

Edward também foi um intelectual proeminente e foi um crítico literário e de música de grande distinção e mérito, o que resultou na autoria de vários livros em diferentes tópicos da literatura à filosofia, da política à música. Ele escreveu sobre esses assuntos em seu livro “Out of Place”(no Brasil traduzido como “Fora de Lugar”), uma memória onde descreve o universo da sua infância. Neste livro, ele relembra como a sua curiosidade intelectual foi despertada por um de seus professores na Escola Mount Hermon, nos EUA.

Como um professor, Edward passou sua vida desafiando e provocando seus estudantes e leitores a despertarem suas “faculdades crítica e imaginativa” e instigarem nos “processo complexo da descoberta intelectual (e da auto-descoberta)”. Ele queria que eles buscassem os seus territórios intelectuais da maneira que ele tinha feito. Eu me lembro de ter recebido as condolências de um de seus estudantes, onde este me descrevia como Edward ativou o melhor de suas abilidades intelectuais. Naquela ocasião o estudante apresentou um tema bastante complexo e dificil para sua tese de doutorado e Edward ficou entusiasmado também com o desafio. No entanto, o estudante não conseguia decifrar o problema e quanto mais estudava, mas dificil se tornava o problema. Desesperado, o estudante procurou Edward, explicou suas dificuldades e Edward iniciou uma série de perguntas. Após uma hora de discussão, o tópico ficou perfeitamente claro para o estudante e Edward possibiliou a abertura para um novo horizonte e perspectivas de pensamento, o que resultou em uma tese muito bem sucedida.

Edward também costumava desafiar-se da mesma forma em seus estudos e elaborações. O seu mais famoso trabalho “Orientalismo” revolucionou muitas disciplinas, pois abriu numerosos territórios intelectuais e levou ao estabelecimento de uma disciplina de “Colonial and Post Colonial Studies”.  Em seu último livro “Humanism and Democratic Criticism”, finalizado pouco antes de sua morte e publicado postmortem em 2004, sintetiza as suas estimulantes idéias e mostra o humanista que era.

A sua capacidade crítica e imaginativa e o processo de descoberta foi amplamente aplicada nos seus escritos políticos. O envolvimento político de Said teve início durante a guerra do Viet Nam e após a guerra Árabe-Israelense de 1967. A maior parte de seus escritos foram sobre a questão e a luta do povo Palestino. Como um Americano de origem Árabe-Palestina, ele articulou a questão palestina com outras causas do Ocidente onde havia opressão e colonização”, ou seja, “os que lutavam por ter uma vida descente.”

Como a sua educação formal foi inteiramente ocidental em termos ideológicos, ele teve que se reeducar e este processo ajudou-lhe a utilizar estes pensadores e escritores para interpretar a causa palestina. Entre estes escritores estão Franz Fanon, Aime Cesaire, Amilcar Cabral, Walter Rodney, Howard Zinn, Martin Bernal e Noam Chomsky. Entre os seus amigos mais ativistas estão Eqbal Ahmad, Ibrahim Abu Lughod e Noam Chomsky com os quais ele discutia suas visões políticas.

Edward acreditava que a maior esperança estava na interação e por isso ele e seu amigo, Daniel Barenboim, estabeleceram o Divan Oriente Ociente, em 1999. Este Diwan era uma espécie de workshop de música ocidental tocada por taletosos músicos do Mundo Árabe e de Israel. Este projeto envolve instrução musical, performance orquestral e discussões intelectuais. Sobre este projeto Edward disse :

“No nosso trabalho, planejamentos e discussões, o nosso princípio central é que a separação entre os povos não é solução para os problemas que dividem as pessoas. Cooperação e coexistência pode ser feita através da música da forma como nós temos feito e vivido. Eu estou repleto de otimismo apesar do céu escuro e da situação de aparente falta de esperança do momento que nos cerca a todos”

No documentário “Edward Said, the last interview”, Edward conclui a entrevista com uma discussão sobre a situação na Palestina. Ele fala sobre a complexidade e resistencia, das dificuldades do conflito, da ocupação opressiva. Ele discute o papel do  intelectual, da música, da história da partilha e como isso criou mais problemas do que soluçòes. Neste documentário ele conclui que a única maneira de solucionar o conflito será criando igualdade, permitindo cidadãos independentemente de suas origens étnicas ou religião, que tenham direitos iguais sobre a mesma terra. Sobre este assunto ele escreve no livro “The Question of Palestine”, onde ele discorre sobre a formação de um Estado binacional, onde um povo teria que admitir a existência do outro. No filme, quando o entrevistador pondera que isso parece mais uma utopia, ele responde “Olhe para a alternativa”.

Edward ainda nos leva a nossa intelectualidade a novos territórios. Ele nos apressa a pensar criativamente e em novas maneiras sobre a Questão Palestina. Ele continua a nos lembrar que nós temos que assumir riscos intelectuais pois a chances de sucesso são maiores do que se imagina. Edward e Daniel assumiram este risco e um primeiro passo nesta direção foi iniciar um projeto de educação musical. Edward nos chama a continuar nessa direção através de seus estudantes, leitores e ouvintes. Nós temos que continuar.

Edward Said, o professor, o acadêmico e o intelectual, acreditou que o criticismo e o dissenso são saudáveis. Eu os deixo com essa esperança. Manter a sua memória viva é manter Edward Said vivo.


Mariam C. Said
 

Saiba mais nos links abaixo sobre a vida e obra de Edward Said, além de atividades do ICArabe relacionadas o intelectual: