Egípcios deixam repressão e desilusões para trás

Qui, 03/02/2011 - 16:04

Quase 60 anos depois do início de uma série de governos militares que se mostraram sangrentos, ineptos e cruéis, a população egípcia se levantou em massa contra o regime. Mas a pergunta é: por que somente agora, logo após a revolta popular que derrubou a ditadura de Ben Ali na Tunísia?

Há algumas explicações. Uma delas é que os egípcios se tornaram apáticos após sofrerem várias desilusões. Começando, no período contemporâneo, pelo reinado grotesco de Farouk. Ao assumir em 1936, o rei mal sabia falar árabe –era de origem turco-circassiana e foi educado na Inglaterra. Durante seu governo, ocupou-se em colecionar carros, armas, jóias e mulheres, além de ter uma incontrolável queda por jogos de azar e comida. Adorava demitir primeiros-ministros que não seguiam suas ordens, mesmo que tivessem o apoio popular. Este apoio surgiu quando os Oficiais Livres mandaram o rei para o exílio na Itália em 1952.
 
Depois, a decepção veio com o partido nacionalista Wafd. Foi alçado ao poder por voto popular e com uma forcinha dos britânicos durante a Segunda Guerra Mundial. Logo, aliou-se aos ocupantes de fato que antes combatia. Os líderes do Wafd também foram protagonistas de seguidos escândalos de corrupção, que mancharam a sigla diante de seus eleitores. As condições de vida, que já eram bastante difíceis durante a guerra, pioraram após o seu encerramento, quando desapareceram mais de 250 mil postos de trabalho ligados ao esforço de guerra.

Gamal Abdel Nasser também deixou a desejar. Apesar de ser tornar herói no mundo árabe após obter a nacionalização do Canal de Suez, derrotando israelenses, ingleses e franceses, não trouxe pujança para a população. Seu regime, que se declarava socialista, foi responsável pela acachapante derrota para Israel em 1967. Perdeu o território do Sinai para o inimigo, além de toda a sua força aérea. E fracassou em outra frente: o pan-arabismo pregado por ele e que se mostrou inviável com a dissolução da República Árabe Unida, que juntou Síria e Egito sob um único governo.

Nasser morreu no cargo e foi sucedido por Anwar Al Sadat, outro oficial do grupo que derrubou a monarquia na década de 50. Liberalizou a economia e empobreceu ainda mais os egípcios. Mais uma vez, o pais entrou em guerra contra Israel em 1973. O Sinai somente foi obtido de volta após negociações de paz mediadas pelos Estados Unidos. Nelas, ficou acertada uma ajuda econômica anual, que hoje está na casa de US$ 1,3 trilhão. Essa aproximação com os norte-americanos e o velho oponente não trouxe grandes mudanças para a população, que continuou enfrentando altos índices de desemprego, salários de fome e a falta de perspectivas, principalmente para os mais jovens cada vez mais escolarizados. E o dinheiro vem sendo aplicado maciçamente no aparato repressor do governo.

Mas a pergunta “por que só agora os egípcios se revoltaram” implica que não houve nenhuma resistência por parte da população. Sim, houve. Mas a repressão também tem sido brutal. Durante o período Nasser, os campos de trabalhos forçados ficaram lotados e as condições sub-humanas levaram a uma radicalização da oposição, principalmente dos opositores de inspiração religiosa. O mais famoso deles, Sayid Qutb, pregou a violência como única forma de resistência. O grupo havia sido praticamente dizimado e todos os seus líderes estavam nos campos de concentração. Membro da Irmandade Muçulmana, que tem sido o maior grupo de oposição nas últimas seis décadas, Qutb foi enforcado em 1966 e virou inspiração para figuras como Osama Bin Laden. Lição do episódio: a repressão só levou à radicalização.
 
Hosni Mubarak assumiu o cargo de ditador, após o assassinato de Sadat por militares descontentes em 1981. Já tinha o know-how da repressão por participar dos governos anteriores. E ainda vem contando com a ajuda financeira norte-americana para torturar, prender e reprimir seus opositores. Soldados e policiais armados podem ser vistos por todos os cantos do país. A tortura policial, que tem como principal alvo a Irmandade Muçulmana, é tão disseminada que até aparece nas populares novelas do país.

Por outro lado, a miséria não tem dado trégua. O PIB per capta do país foi de US$ 6 mil em 2010. O do Brasil foi quase o dobro. Para sobreviver, os egípcios que estão no serviço público têm de arranjar outra fonte de renda para pagar as contas. Quem trabalha com turismo tem melhor sorte. Mas há poucas vagas para uma população que não para de se multiplicar. Em 1920, o Egito contava com 13 milhões habitantes. Hoje são 80 milhões. Ou seja, em apenas 90 anos a população cresceu seis vezes. Pelo menos um quarto deles tem menos de 30 anos, faixa que tem mais dificuldade de encontrar vagas no mercado de trabalho.     

Após a vitória da revolta popular na Tunísia, os egípcios parecem ter deixado de lado o medo e a desilusão. Ir às ruas para desafiar Exército, polícia, serviço secreto e espiões à paisana mostra que boa parte da população não se importa mais com a repressão e a série de governos fracassados. Se esse sentimento se mantiver, é provável que os dias do faraó estejam contados.