Em busca de um diálogo civilizacional
O diálogo entre as civilizações não é mais uma escolha; tornou-se a partir de agora uma necessidade, essencialmente em tempos de turbulências e tensões. A iniciativa veio da América Latina, em momento oportuno, do Brasil, para participar de uma reflexão de fundo sobre as vias de realizar-se um diálogo frutífero e responsável entre os intelectuais dos dois lados.Tradução de Michel Sleiman Desde os acontecimentos trágicos do 11 de setembro, deflagrou-se uma feroz campanha contra a civilização muçulmana e os muçulmanos cuja delinqüecência chega a seu paroxismo. Os promotores desta campanha difamatória não são outros que professores, escritores e jornalistas, encorajados por homens da política, que optaram deliberadamente pela submissão ao ditame sionista, malgrado seu pertencimento a centros renomados de pesquisas científicas. Esses últimos se fizeram mestres na arte da mentira e da falsificação das verdades históricas inerentes à civilização muçulmana. Diante deste estado de coisas, o imbróglio se faz aceitar, notadamente, quando é barrado o caminho a intelectuais notórios que se encontram em condições de transmitir e explicar aos ocidentais o verdadeiro Islã e as riquezas da civilização muçulmana. A situação se complica mais quando a mídia insiste nos “inimigos da verdade” e nos “deformadores”, ou quando, por outro lado, cenas de genocídio, em que são vítimas os muçulmanos, são automaticamente censuradas afim de não despertar a opinião pública internacional e gerar reações e oposições. Islã antídoto da civilização ocidental, terroristas, sanguinários, opressores, torturadores, antidemocráticos... são tais os estereótipos sobre os muçulmanos que circulam bem e têm um inestimável impacto sobre um largo público do Ocidente. Por conseqüência, algumas vozes da inteligência árabe foram chamadas à ordem, propondo-se a instaurar um diálogo civilizacional sereno que preconize a tolerância e o respeito às diferenças. Aceitei sem a menor hesitação o amável convite da diretora do Instituto de Pesquisas em Relações Internacionais (IPRI), um dos braços da Fundação Alexandre Gusmão (FUNAG), para participar de um seminário científico que teve por tema o mundo árabe e sua civilização no passado e no presente. Tal seminário ficou dito que será um prelúdio à cúpula que reunirá os Chefes de Estados e de Governos árabes e sul-americanos, convocada pelo Presidente Luis Inácio Lula da Silva, que tratará o mundo árabe através de múltiplos eixos concernentes às sociedades árabe-muçulmanas. Tal evento será sem dúvida alguma uma oportunidade para nos fazermos conhecer em lugar de que outros o façam por nós e de contra-atacar as idéias preconceituosas sobre o Islã e os muçulmanos que as mídias ocidentais se esforçam por inculcar nas sociedades não-muçulmanas. Há que se admitir que os intelectuais brasileiros não têm essa visão hostil para com a cultura islâmica e os muçulmanos; ao contrário, eles desejam conhecê-la mais a fundo sem quaisquer pré-conceitos. Alusão que me foi confirmada por Sua Excelência o Embaixador do Marrocos no Brasil, senhor Ali Achour. Por outro lado, há laços muito estreitos entre os países árabes e os países da América Latina e que encontram sua origem em fatores históricos, sociais e psicológicos, apesar da grande distância a separar esses dois povos. Os laços de consangüinidade desempenharam um papel inegável em benefício dessa aproximação, através das vagas de imigração árabe que atravessaram o mar para descobrir a nova terra, que é a América Latina, bem como a imigração européia, cujo grande lote eram os imigrantes de origem árabe-andalusa (portugueses e espanhóis). A influência da civilização árabe-muçulmana sobre os latino-americanos é manifesta em vários aspectos de sua vida cultural e civilizacional: tradições, ritos, arquitetura, gastronomia e língua. Para esse fim, muitos escritores da América Latina, seja os de origem árabe, seja os que têm um conhecimento da cultura árabe, não perdem a oportunidade de exprimir sua consideração e seu reconhecimento ao aporte da cultura e da civilização árabe. Dentre esses eminentes escritores cabe citar, a título de exemplo, Gabriel García Márquez, Juan Rulfo, Ikram Antaqui, Octavio Paz, Ernesto Sábato, Jorge Guillén, Carlos Fuentes, Pablo Neruda, Mario Vargas Llosa, Jorge Luis Borges... entre outros. O espírito de um diálogo sereno e construtivo baseado no respeito do outro esteve no encalço do franco desenrolar desse encontro de intelectuais. Rompeu-se igualmente com as idéias preconceituosas e os julgamentos sem fundamento científico, que marcam os encontros deste gênero, cuja palavra mestra é, em geral, a hostilidade ao Islã e aos muçulmanos. Uma nota muito interessante foi levantada pelo Discurso do representante do ministro brasileiro dos assuntos estrangeiros: a elite brasileira formulou o voto de portar a tocha da cultura e do diálogo, da tolerância e, por outro lado, da oposição às vozes alarmistas que pregam o conflito e o discurso do choque das civilizações. Certos homens políticos preconizaram a opção da cultura como a única voz para uma verdadeira cooperação entre os povos árabo-muçulmanos e aqueles da América Latina, mesmo se os horizontes políticos, econômicos e sociais são divergentes. Minha surpresa fez-se igualmente grande ante o interesse crescente dos universitários brasileiros com relação ao mundo árabe, em todos os níveis, e isto pela promoção e o fundamento dos estudos e pesquisas que denotam suas publicações e traduções. O exemplo mais saliente é a revista “Tiraz” editada pelo Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo. Várias publicações sobre o mundo árabe foram-me ofertadas pelos professores brasileiros; foi gratificante notar a originalidade de suas pesquisas, que abarcam diversos campos científicos, tais como a política, a sociologia, a história, a lingüística, a literatura e a crítica. A maior parte desses estudos trata da Andaluzia (Alandalus) do tempo dos muçulmanos. No mesmo contexto, meu amigo Nizar Messari, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, participou-me que um brasileiro professor de lingüística está atualmente preparando um léxico de termos árabes utilizados no português do Brasil, com uma neta predominância do dialeto marroquino. Será o Brasil a imagem daquilo que representou outrora Alandalus? Uma questão que me acompanhou durante toda minha estadia no Brasil por ocasião de minhas conversas com os intelectuais e os cidadãos. Efetivamente, os árabes de outrora ganharam a aposta da integração e da cooperação com as outras etnias e instauraram na Península Ibérica uma civilização rica baseada na tolerância e na coexistência de três religiões monoteístas. Uma civilização que libertou o Homem e lhe permitiu, graças ao pensamento e ao conhecimento, viver em paz e em segurança, uma moeda rara de nossos dias. Este argumento milita contra aqueles que nos acusam de chauvinismo e intolerância. Seremos capazes de reincidir, a exemplo de nossos ancestrais, e construir uma civilização fundada no Homem, com abstração de seu sexo, sua etnia e sua religião? É a nova mundialização que se deve pregar e trabalhar para sua realização, voltada a criar um novo modelo que não é outro se não um mundo onde reina a paz, a tolerância, o convívio e o Amor entre os Homens. Aposta difícil, mas não impossível.