Projeção internacional, apesar da censura
A produção de filmes no Irã surpreende em quantidade e em qualidade, ganhando espaço e admiradores ao redor do planeta. Diretores como Abbas Kiarostami, Jafar Panahi, Bahman Ghobadi, Mohsen e a filha, Samira Makhmalbaf, criaram um estilo que se consagrou no exterior, veiculando aquele típico olhar ligeiramente ingênuo, perpassado de simbolismo e poesia até no trato dos assuntos mais violentos. Esse registro tão característico não é um capricho dos diretores, mas uma forma de manter a produção viva e dinâmica driblando o regime autoritário que cerceia a liberdade dos realizadores. Para se desenvolver dentro desta verdadeira camisa-de-força, o cinema iraniano conta com uma longa tradição. A imagem em movimento chegou muito cedo no que já foi a antiga Pérsia. Na passagem do século XIX para o XX, Miza Ebrahim Khan Akkas Bashi já filmava as visitas do Xá persa à Europa. Poucos anos depois, em 1904, Mirza Ebrahim Sahhafbashi abria uma sala de projeção na capital que, até os anos 1930, teria a companhia de outras 15 salas e mais 11 espalhadas pelos vários estados. Em 1925, um iraniano de origem armênia fundou a primeira escola de cinema no país; em 1932 o primeiro filme falado iraniano retrataria a história de Ferdoussi, o autor de um celebrado épico persa. Mas a indústria cinematográfica iraniana deve-se a Esmail Koushan e Farrokh Ghaffari, que também estabeleceram as bases para o cinema alternativo. Ao longo da década de 1960, foram realizados 65 filmes, a maioria dos quais melodramas e thrillers, incluindo “A noiva do mar”, “Casa de Deus” e “O marido de Ahoo Khanom”, entre outros. Apesar da produção alternativa, a guinada cinematográfica iraniana para filmes de inspiração hollywoodiana fez com que o cinema fosse identificado como símbolo da dominação norte-americana e do Xá. Por isso, em 1979, muitas das 300 salas de cinema tiveram o mesmo fim dos bancos e cafés, sendo depredadas ou queimadas. Nesta fase o aiatolá Khomeini, atento às necessidades de estabelecer o novo regime usando todas as ferramentas possíveis, salvou as restantes, mas a um custo alto, com a imposição de linhas estéticas e ideológicas para a fundação de um cinema “islamicamente correto”. Assim, em poucos meses, a teocracia baixou uma série de regras não escritas. O casamento e a família deveriam ser respeitados, e o espectador não poderia jamais simpatizar com um criminoso ou alguém que tivesse pecado. Na tela, o tráfico de drogas não apareceria, o adultério não deveria ser evocado, a blasfêmia e os gestos sugestivos foram proscritos. Os sexos opostos não poderiam se tocar, os temas tidos como vulgares ou desagradáveis estavam fora de cogitação e os religiosos não poderiam ser mostrados como personagens cômicos ou desonestos. Enfim, criou-se um corolário de restrições que não se limitavam apenas ao roteiro, mas abrangiam a organização inteira das filmagens, determinando, inclusive, maquiadores separados para homes e mulheres, para garantir a ausência de contato físico ilícito. Quando o filme “O Corredor” (de Amir Nadent), de 1985, obteve sucesso internacional e grandes premiações, o Estado iraniano passou a fornecer suporte oficial para que o cinema se transformasse em produto de exportação e vitrine para a República Islâmica. A contradição entre o interesse comercial do governo e a rigidez da política doméstica no que tange o comportamento social chega hoje a tal ponto que certos filmes proibidos internamente são autorizados para serem exibidos no exterior. Naquele período inicial, realizavam-se quase 70 filmes por ano, num processo de ascensão que culminaria com a Palma de Ouro outorgada em 1997 em Cannes a Abbas Kiarostami por “O gosto de cereja”. A presença contínua dos iranianos nos mais prestigiados festivais, como o de Veneza e de Berlim, garantiram seu lugar no cenário internacional. O próximo passo foi o reconhecimento, pelas autoridades, do cinema étnico como o curdo, por exemplo, o que propiciou a emergência de cineastas como Bahman Ghobadi. Regulado pelo Islã Para garantir o controle sobre o produto final, em 1996 o governo baixou uma normatização oficial. Intitulada “Princípios e procedimentos do cinema iraniano”, traz, entre suas 16 cláusulas, impedimentos à inclusão de músicas que evoquem alegria e prazer, bem como qualquer insulto aos princípios islâmicos ou à suprema jurisprudência da qual o aiatolá está investido – o velayat-e faghig. Assim mesmo os números impressionam. Com um investimento anual superior a U$ 1,5 bilhões, o Irã lança cerca de 100 longas de ficção e mais de 2 mil curtas-metragens, o que coloca o país entre os dez maiores produtores mundiais. As escolas de cinema estão presentes em 52 cidades, mas há deficiências a serem corrigidas: “Além de ter apenas 400 salas de projeção para uma população de 70 milhões de habitantes, há falta de equilíbrio entre a quantidade de filmes de arte e comerciais”, afirma Massoud Bakhshi, ex-diretor do Documentary na Experimental Fim Center, que organiza o Festival Cinema Verdade e encarrega-se da distribuição e promoção dos filmes experimentais e pequenos documentários. O número de escolas de cinema vem crescendo, e joga a cada ano no mercado mais de 20 diretores, dentre os quais muitas mulheres. Nas duas últimas décadas, a porcentagem de diretoras iranianas é maior do que na maioria dos países ocidentais, sendo a prolífica Rakshan Bani-Etemad uma das mais conhecidas. Antes da jovem Samira Makhmalbaf estrear com “A maçã”, recebendo em 2000 o Prêmio do Júri em Cannes com “O quadro negro”, já atuavam figuras como Pouran Derakhshandeh, Zahra Dowlatabadi, Niki Karimi, Sara Rastegar e Parisa Bakhtavar, entre muitas outras. Além, é claro, de atrizes também premiadas em festivais do mundo inteiro. Recentemente, em 2006, a escritora Mariane Satrapi, autora do aclamado livro Persépolis que conta a história recente do Irã em quadrinhos, tornou-se membro do Júri em Cannes, recebendo o Prêmio do Júri deste mesmo Festival no ano seguinte pela adaptação do seu livro em desenho animado. Obviamente que, como em qualquer sistema coercitivo, os artistas buscam saídas dentro ou fora do país para financiar seus projetos, mesmo com poucas chances de viabilização. O cinema independente resiste em um mercado paralelo no qual filmes sobre corrupção, prostitutas, homossexualismo, repressão e outros temas explosivos são abordados sem censura. Recentemente, após as eleições que confirmaram Ahmadinejad no poder, suscitando uma inédita e gigantesca onda de protestos entre os apoiadores do oponente Moussavi, os confrontos com a polícia tornaram-se inevitáveis. Neste contexto explosivo, os cineastas queixam-se de perseguição e do impedimento que sofrem na tentativa de retratar a revolta que se alastra pelas ruas dos centros urbanos. Portanto, às vésperas do Festival Cine Verité, realizado no final de outubro, um grupo de cineastas dissidentes pediu aos eventuais convidados estrangeiros o boicote à versão 2009 do referido evento. Escrito em farsi, inglês, francês, italiano e alemão, explica o pedido dos dissidentes nos seguintes termos: “Durante o século passado os documentaristas iranianos registraram valiosos aspectos da nossa sociedade contemporânea. O cinema foi capaz de superar inúmeros obstáculos ao longo dos anos. Nos períodos da Revolução islâmica, das guerras e conflitos das últimas décadas, os cineastas persas forneceram documentários fundamentais para a compreensão da vida social e histórica iraniana. Cinema Verité é um festival importante, conseguindo nos dois anos anteriores invocar uma atmosfera de debate e reflexão – algo essencial no mundo dos documentários. Infelizmente, nas semanas recentes, restrições extremamente severas foram impostas aos que, nas ruas, tentam capturar os acontecimentos da atual fase de turbulência social. Enxergamos uma série de filmes em potencial que poderiam ter sido feitos, mas não foram autorizados. Assim, devido ao nosso compromisso e respeito à verdade dos fatos, decidimos não participar do Festival seja como cineastas, críticos ou espectadores”. O apelo, disparado por correio eletrônico, evidencia que o cinema iraniano encontra-se diante de um impasse. Ou relaxam as medidas restritivas ou muitos dos diretores serão obrigados a abandonar o país em busca de condições mínimas de trabalho.