Registros da experiência na história
A imigração pode ser considerada como um dos processos mais completos de construção cultural externos a uma sociedade e, no caso do Brasil, que recebeu e continua recebendo uma grande variedade de grupos étnicos desde o século XIX, tal fenômeno é parte inerente de sua formação. A dimensão desse fenômeno está condicionada a questões políticas, econômicas, sociais, culturais que alavancam a mobilidade demográfica entre a origem e o destino, sendo responsável por grande parte do desenvolvimento do país. Ainda assim, o tema da migração careceu de um maior interesse por parte dos órgãos governamentais, no tocante aos registros censitários, demográficos e documentais dos diferentes grupos migratórios, bem como por parte de pesquisadores das ciências humanas de um modo geral, como se as migrações fossem um fato evidente que dispensasse maiores atenções. Os estudos existentes sobre a imigração são fragmentários, unilaterais ou bastante generalizantes, em alguns casos até inexistentes, sobretudo pela falta de formas de registros adequados, centros de estudos que congreguem pesquisadores do tema, facilidades de acesso às fontes documentais seriadas (iconográficas, documentais, cartas, registros, periódicos), dados precisos (numéricos, censitários, demográficos, estatísticos), produções bibliográficas (artigos, dissertações, teses, obras), organização da produção dos próprios imigrantes (diários, cartas, biografias, genealogias), entre outros. Da mesma forma, a apresentação de dados é controversa, os estudos se limitam aos grandes centros urbanos ou aos locais de maior concentração de determinados grupos migratórios, desconsiderando-se deslocamentos, rearranjos, mobilidades, ocupação do espaço físico e social, formação de territorialidades, características necessárias na análise do fenômeno migratório, de modo geral, e fundamentais para a análise do processo na realidade brasileira, de modo particular. Nesse contexto, a imigração árabe para o Brasil sofre dos mesmos problemas em relação a outros grupos migratórios do país, mas é ainda mais agravado pela própria definição e identificação de quem são, quantos são e onde estão os indivíduos que fazem parte desse grupo genericamente chamado árabe ou ainda “turco”. Nos censos demográficos brasileiros, esse grupo imigrante foi enquadrado no termo genérico “outras nacionalidades” ou na categoria de “vários”. Quando referidos em suas nacionalidades a confusão é grande, pois recebem diferentes denominações: árabes, turcos, turcos-árabes, sírios-libaneses, sírios e libaneses, sírios-libaneses “não turcos”. Embora sírios e libaneses tenham sido a grande maioria dentre os povos de origem árabe que para cá vieram, essa ampla e confusa generalização desconsiderava a presença de outros grupos menores como egípcios, palestinos, iraquianos, marroquinos. Além disso, diluía sua importância numérica em relação a outros grupos de maior expressão, levando também ao problema da análise estatística, pois os dados não coincidem e em um mesmo censo foram usadas duas ou mais categorias. Torna-se, portanto, tarefa fundamental tratar dos processos de preservação da identidade cultural árabe, não como forma de enquistamento e isolamento social, mas como expressão da necessidade que todo grupo humano, deslocado de seu ambiente de origem, tem de conservar, manter e difundir sua cultura, língua, religião, hábitos, costumes, modos de vida, ainda que esteja incorporada a outra sociedade. Da mesma forma a construção de uma memória coletiva e individual dos imigrantes acerca do fenômeno migratório é ponto a ser elucidado e discutido na mesma intensidade. Tais fenômenos se expressam como um processo de adaptação e preservação, negociação e renegociação, constante, rico e dinâmico envolvendo a matriz cultural que o migrante carrega consigo e a nova realidade na qual se confronta e se insere. É ainda nesse aspecto que se pode verificar a riqueza e a complexidade dos estudos da imigração como parte fundamental da compreensão das relações humanas. Em consonância com esse objetivo é que a história oral tem se constituído numa metodologia de trabalho instigadora, sobretudo em projetos de estudo cuja preocupação não é a busca de dados, da verdade, da informação pura e simples, mas sim o sentido, o significado, a opinião, a visão do indivíduo ou do grupo, sobre si mesmos e sobre os outros. Preocupada com a experiência social de pessoas e de grupos, por meio de suas narrativas, é também conhecida como história do “tempo presente” e “história viva.” Projetos de história oral implicam elaboração de documentos, de diferentes naturezas, e se justificam quando não existem documentos sobre determinados temas de estudo; quando existem documentos mas com conteúdos em versões diferentes, ou ainda quando se pretende elaborar uma “outra história”. Nas entrevistas de história oral valoriza-se a experiência pessoal de vida, a arte narrativa do entrevistado, as visões pessoais, as versões sobre um mesmo fato, a imagem que o depoente quer deixar registrado para a História, expondo ou não sentimentos, opiniões, percepções, imaginários; pretende-se verificar como os fatos foram sentidos, compreendidos e mesmo reinterpretados por quem os viveu. Além disso, essas narrativas de um projeto de História Oral devem responder a um sentido de utilidade pública e prática. O caráter público dos projetos de história oral é um grande diferencial desse procedimento metodológico, pois leva a discussão para além dos muros acadêmicos, amplia o número de interessados e leitores comuns da história, ampliando o acesso ao saber.