por Adriana Natali No fim do mês passado, 38 palestinos desembarcaram em São Paulo, na primeira leva de refugiados vinda do campo de Ruweished, na Jordânia, a 70 quilômetros da fronteira com o Iraque. Eles serão reassentados em São Paulo e no Rio Grande do Sul, onde o Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) trabalha em parceria com as organizações Cáritas e Associação Antônio Vieira. Nos quatro anos em que estiveram na Jordânia, os refugiados iraquianos se prepararam para viver no Brasil. O fator decisivo dessa preparação foi o aprendizado da língua portuguesa. O ensino do português a palestinos expulsos do Iraque após a invasão anglo-americana promete se ampliar na Jordânia. Um lote do recém-lançado Português para Falantes de árabe (editora Almádena), por exemplo, acaba de ser encomendado pelo Acnur. A obra é organizada por João Baptista M. Vargens, da UFRJ. Mas em todo o mundo árabe, a nossa língua está se expandindo graças à implementação do ensino do português em colônias e universidades de alguns países, como a Síria. A divulgação do idioma e da cultura do Brasil entre os árabes começou a ganhar força em 2003, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva firmou um protocolo de intenções que consagrava a abertura de cursos de português em universidades locais. Foi, no entanto, após a Conferência da ASPA (América do Sul - Países Árabes), promovida pelo Brasil em 2005 para aproximar as regiões, que o ensino do português ganhou, de fato, relevo. - É no Líbano, seguido pela Síria, em razão de sua ligação com as comunidades sírio-libanesas no Brasil, que a necessidade do ensino do português ainda deve se fazer sentir de maneira mais sensível - explica o embaixador do Brasil na Síria, Eduardo Monteiro de Barros Roxo. No início de 2006, dando seqüência à visita presidencial à Síria, o ministro da Educação, Fernando Haddad, prometeu a implementação da cadeira de língua portuguesa na Universidade de Damasco. Doutor em Lingüística Portuguesa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e professor do Setor de Estudos Árabes da UFRJ, João Baptista Vargens esteve na Síria, a convite do governo local, em abril do ano passado, para verificar as áreas de atuação para possíveis acordos entre a UFRJ e as principais universidades sírias. - Especificamente, constatei os diversos métodos de ensino de línguas estrangeiras utilizados no Instituto de Idiomas da Universidade de Damasco. Em Damasco Nos meses seguintes, o MEC e a embaixada da Síria promoveram estudos para viabilizar o curso de português em Damasco. A professora Paula Caffaro, formada em Letras (português-árabe) na UFRJ, ministrou este ano dois dos primeiros cursos de português na universidade, para cerca de 20 alunos. - A maioria dos alunos tem alguma ligação com o Brasil, ou são descendentes ou têm relação de trabalho. Os alunos são interessados e não encontram muitas dificuldades com o idioma, somente os verbos dão mais trabalho a eles - conta Paula. Alguns alunos são brasileiros que não conheciam a língua portuguesa. Nasceram no Brasil e, ainda pequenos, foram para a Síria com os pais imigrantes, mas agora resolveram retornar à terra natal. De acordo com o embaixador Eduardo Roxo, este é o início das ações com cursos de português na Universidade de Damasco. Espera contar de forma regular com professores especializados e verificar a ampliação da demanda. - O Brasil está à procura de mercados alternativos fora do eixo europeu-americano e se aproxima dos países árabes. Nós, professores de português e árabe, temos a obrigação de participar, contribuindo dentro de nossa área de atuação. Além desse interesse pontual, devemos nos lembrar dos laços históricos que temos com os árabes, via península ibérica e imigração síria e libanesa no Brasil - explica Vargens. O professor estima que existam mais de 12 milhões de árabes e descendentes radicados no Brasil. Para ele, é preciso que seja implementada uma política conjunta entre o Ministério da Educação e o Itamaraty para que haja o incentivo da difusão do português do Brasil no mundo, nos moldes do Instituto Camões, em Portugal, o Cervantes, na Espanha, os centros culturais franceses, entre outros. - A semente já foi plantada no Brasil, por meio do Instituto Machado de Assis, uma iniciativa do governo atual para ampliar a divulgação de nossa língua e cultura. Todavia, até agora, o instituto só existe no papel e não recebeu dotações orçamentárias para funcionar. Acredito que o que falta é uma ação segura, concreta, para que o Instituto Machado de Assis se torne realidade - explica. Desafios A produção do material didático usado hoje em universidades como a de Damasco e em campos de refugiados surgiu da experiência vivida por Vargens entre 1992 e 1994, quando ele ensinava português e cultura brasileira na Universidade Abdel Malik Essaadi, em Tetuão, no norte de Marrocos. - Usava métodos de português para estrangeiros em geral e, muitas vezes, sentia a necessidade de confrontar aspectos da gramática das duas línguas, para salientar as diferenças. Em tais momentos, percebia quão importante seria a criação de um método próprio para árabes, os alunos teriam mais facilidade - explica o professor. Português para Falantes de Árabe contextualiza em livro e CD 26 lições com a cultura brasileira, a partir de datas significativas do calendário nacional, como o Ano Novo, o carnaval e até o Dia da Consciência Negra. O material foi escrito por Vargens e ex-alunas, como Geni Harb, Suely Ferreira Lima, Bianca Graziela da Silva e Heloisa Ellery de Menezes. Muitas palavras da língua portuguesa têm origem árabe, dado o longo período de ocupação muçulmana, seja em Portugal (711-1249) ou na Espanha. Os sete séculos de dominação moura deixaram marcas na linguagem, especialmente em áreas como artesanato e agricultura. A influência lingüística que eles exerceram sobre a península ficou restrita ao léxico. Há inúmeras diferenças entre a gramática do árabe, uma língua semita, e a do português, idioma latino. Por exemplo, o verbo árabe tem flexão de gênero, não existente na língua portuguesa. Há, também, no verbo árabe as flexões de número: singular, plural e dual, esta referente a duas unidades. Em português não existe o dual. - Tais fatos demonstram a importância do estudo contrastivo entre as gramáticas da língua materna e da língua estrangeira que o aluno deseja aprender - explica Vargens. Sete séculos O namoro atual entre o português e o mundo árabe resgata, por tabela, a influência que o nosso idioma recebeu dos povos de fala árabe. Segundo Miguel Nimer, num importante estudo editado inicialmente em 1943 e reeditado em 2005 (Influências Orientais na Língua Portuguesa, pela Edusp), a península ibérica tinha profundas diferenças de raças e religião. Por isso, e apesar da ocupação ininterrupta de séculos, os povos conquistados não adotaram a língua do vencedor. O conquistador, por sua vez, "não houve por bem ou por mal, pela imposição de sua língua, usar de seu direito de conquista", defende Nimer. Com a indiferença e o total desprezo dos ocupantes árabes, não houve assimilação. A presença árabe é por isso modesta no espanhol e no português. A difusão de vocábulos árabes nas línguas da Europa, adverte Nimer, não ocorreu devido à conquista dos muçulmanos, mas foi resultado da propagação e da vitalidade de toda uma civilização: a da cultura árabe, que é ainda uma fonte de mistérios para os falantes do português.