"O que vamos exibir é uma pequena mas significativa amostra"
Curadoras da Imagens do Oriente (IMO) 2010 contam como se deu a escolha do tema e dos filmes.
Falam ainda da realidade da indústria cinematográfica egípcia no período abarcado pelas produções que serão exibidas e da importância do Instituto da Cultura Árabe na realização do projeto.
ICArabe – Como surgiu essa parceria de vocês duas para a organização da IMO 2010?
Arlene - Eu já era membro e colaboradora do ICArabe quando, a partir de uma viagem ao Irã em 2006, surgiu a ideia de Imagens do Oriente (IMO), com uma seleção de filmes iranianos e árabes e o apoio de realizadores daquele país, principalmente Massoud Bakhshi, e do Centro de Cinema Documentário e Experimental (DEFC, Irã). Marcia Camargos, antes de se juntar à IMO, já tinha publicado um romance situado no Irã (Travessia do Albatroz, Ediouro). Acho que foi nosso interesse em comum pelo Irã e países árabes que nos aproximou, tornando-nos parceiras na organização e curadoria de IMO a partir de 2009. Foi também no Irã que fiz amizade com a brasileira Iara Lee, hoje mundialmente conhecida por sua atuação na Flotilha da Liberdade, e que desde 2007 é uma grande apoiadora e colaboradora de IMO. Foi fundamental o apoio que o ICArabe deu ao projeto desde o seu nascimento, criando as condições para realizá-lo. Buscamos parcerias, primeiro com a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, e, a partir de 2009 com o CineSESC. Parcerias estas, sem a quais dificilmente teríamos continuado a organizar IMO devido à dimensão e ao trabalho que um projeto como esse necessariamente implica.
ICArabe - Por que escolheram o cinema egípcio e por que clássicos? Como se deu a escolha dos filmes?
Arlene - Os quatro anos percorridos por Imagens do Oriente, trazendo filmes recentes de países árabes, iraniano, turco e islâmicos em geral, foram tempo suficiente para despertar o desejo de conhecer melhor a história do cinema árabe, em grande medida inacessível nesta parte do mundo. O primeiro passo foi justamente buscar os clássicos do cinema egípcio, já que desde o nascimento do cinema árabe por volta de 1925, até a década de 1960, o único país com uma indústria cinematográfica era o Egito. Mas como o Egito não possui uma cinemateca (existe o projeto e existe um local, mas faltaram condições para que a cinemateca fosse completada), e dado que a produção da década de 1960 era toda estatal, decidimos procurar o Ministério da Cultura do Egito. No Cairo, em janeiro desse ano, fui extremamente bem recebida pelo Secretário de Estado para relações culturais externas, Hossam Nassar, quem colocou o acervo do Ministério da Cultura à disposição, mostrando-se muito interessado e disposto a viabilizar a realização desse projeto. Uma vez no Brasil, a participação do Consulado do Egito no Rio de Janeiro foi vital, a Consul Amany El Etr empenhou-se pessoalmente para que os filmes chegassem e transcorresse bem toda a comunicação com o Egito, sendo que a Embaixada do Egito também deu seu importantíssimo apoio para a realização da mostra. Portanto, o objetivo da mostra nesse ano é exibir alguns clássicos do cinema egípcio, principalmente da década de 1960. Não seria possível abranger toda a diversidade daquele cinema. Muitos filmes importantes, inclusive das décadas de 1950 e 1960, ficaram de fora. O que vamos exibir é uma pequena mas significativa amostra, extraída de um momento importante do cinema árabe, quando os principais diretores se distanciam da influência externa, buscando temas sociais locais, e uma estética própria.
ICArabe - Qual é o contato que o mundo árabe tem com esses filmes que serão exibidos na Mostra?
Arlene e Marcia - Os filmes que apresentamos fazem parte do patrimônio cultural árabe. São filmes que praticamente todos conhecem, já assistiram uma ou mais vezes, e reconhecem como sendo alguns dos grandes filmes da região. Para além das diferenças de gosto ou preferência por um ou outro filme da seleção, eles constituem marcos essenciais da filmografia árabe. Sendo que é interessante constatar a influência regional desses clássicos, ao ver, por exemplo, que há cenas de Algodão Doce reproduzidas, isto é, citadas, no filme iraniano Teerã não tem mais romãs, de Massoud Bakhshi. De fato, no Oriente Médio, o Egito e o Irã são tidos como os dois países com maior tradição cinematográfica. No caso do Egito, com sua indústria relativamente antiga (1925), muitos centros produtores, grande capacidade de produção - cerca de 60 ao ano a partir de 1945, número este que tendeu a cair com a nacionalização da década de 1960 e voltou a subir a partir de 1971 - o país sempre assegurou uma continuidade na produção. Era nesse sentido que o diretor de A Segunda Esposa, Salah Abou Seif, dizia que “ir aos studios é, no Egito, um parâmetro da vida intelectual”.
ICArabe - Imagino que a indústria cinematográfica europeia e estadunidense também tenha impactado os países árabes na época do lançamento desses filmes que estão na mostra. A indústria cinematográfica egípcia conseguiu enfrentar a influência estrangeira naquele período? Como é hoje?
Arlene - A influência europeia e norte-americana foi marcante, mas não absoluta, e precisamos estar atentos a tendências locais para não exagerar o papel da influência externa. Para se ter uma ideia, durante as primeiras décadas de produção cinematográfica no Egito, predominavam, por um lado, filmes influenciados pelo romantismo francês, por outro, pelo western norte-americano, como era o caso dos filmes dos irmãos Lama, de origem palestina-chilena, estabelecidos no Egito. No imediato pós-segunda guerra mundial, surgiram muitos musicais leves, realizados em grande medida para oferecer diversão a baixo custo às tropas estacionadas no Cairo e Alexandria após a precoce vitória Aliada na região, seguindo a batalha de El Alamein. Mas os principais diretores tentaram escapar às influências externas, criando estéticas próprias e focando temáticas locais, o que foi importante na origem da tendência realista que produziu alguns dos maiores filmes da história do cinema árabe, como A Terra, que exibimos em São Paulo pela primeira vez. Em alguns casos, tendências e estilos atribuídas ao cinema europeu na realidade surgiram simultaneamente em outras partes do mundo. Diferentemente do que se poderia pensar, o neorealismo no cinema egípcio não foi mero fruto da influência italiana do segundo pós- guerra, mas resultado, em grande medida, de uma tendência produzida a partir do filme de Kamal Selim, Determinação (al-‘Azîma), de 1939. Segundo Salah Abou Seif, diretor de A Segunda Esposa, o mesmo Kamal Selim teria vendido a um certo Stolof o projeto de roteiro que o diretor italiano De Sica transformaria no Ladrão de Bicicleta, de 1948. Sendo que a bicicleta de De Sica era uma vaca no caso da sinopse de Selim. Em todo caso, interessante é notar que as influências entre diretores nem sempre obedecem o critério da nacionalidade.
ICArabe - Qual é o conhecimento dos brasileiros em geral sobre esses filmes?
Arlene Marcia - São filmes desconhecidos no Brasil. Não estão nas locadoras, alguns sequer podem ser adquiridos fora do país em DVD. O próprio Ministério da Cultura do Egito não possui o DVD de todos os filmes da seleção. Alguns sites reproduzem gravações da televisão, em árabe e sem legenda alguma. A Múmia, deve-se dizer, é um filme cultuado por cinéfilos ao redor do mundo e foi recentemente restaurado pela Fundação do Cinema Mundial, de Martin Scorcese. Até onde pudemos nos informar, e segundo o próprio Ministério da Cultura do Egito, será sua primeira exibição em 35mm no Brasil.
ICArabe - Na avaliação de vocês, quais são as principais qualidades que esses filmes trazem e de que forma a exibição dessas produções impactam a cultura brasileira, mais especificamente a da cidade de São Paulo?
Arlene e Marcia - Assim como o cinema brasileiro do mesmo período, os filmes da mostra estão bastante relacionados a temas sociais. Existe ainda uma longa tradição do melodrama no cinema egípcio (assim como no teatro egípcio), com seu auge de 1940 a 1960, muitas vezes mesclado a tensões sociais, já que uma das preocupações do realismo desenvolvido após a derrubada da monarquia e a revolução dos Oficiais Livres, em 1952, foi retratar as mazelas da sociedade, de uma vasta parcela da população rural e miserável. A orientação realista incluiu um interesse crescente por questões de desenvolvimento egípcio, de poder e corrupção. Bem como o lugar da mulher na sociedade e seu direito de definir a si mesma. Existe de fato uma grande variedade de temas no cinema egípcio. Mais recentemente, podemos pensar em drogas nos anos 1980, os novos ricos nos anos 1990, e assim por diante, assim como no cinema local, tornando o conjunto muito variado, e sua repercussão, imprevisível.
ICArabe - Qual é o mérito do ICArabe ao realizar uma mostra como essa?
Arlene e Marcia - O papel do ICArabe é muito importante, trata-se de um âmbito fundamental de incentivo, promoção e divulgação da cultura árabe. A repercussão de cada atividade bem sucedida realizada pelo ICArabe tem sido dar oportunidade ao surgimento de outras, criando a possibilidade de proliferação de atividades culturais onde antes havia muito pouco. Principalmente, o ICArabe tem permitido a manutenção de uma constância, atividades que se repetem todo ano criando uma tradição e uma continuidade. Quando criamos IMO em 2006-7, foi na sequência de outras mostras já bem sucedidas realizadas pelo Instituto e aglutinadas sob o título de MMA (Mostra Mundo Árabe). IMO, por sua vez, tem características específicas, cada ano trazemos filmes de diferentes regiões, tanto árabes como não árabes, mas em geral de países ou populações islâmicas. O projeto é realizado em parceria com a Secretaria de Cultura do Município de São Paulo, o SESC SP, o Centro de Estudos Árabes da USP, e, esse ano, o Ministério da Cultura do Egito, a Embaixada do Egito no Brasil e o Consulado do Egito no Rio de Janeiro.
Arlene Clemesha
Professora de História e Cultura Árabe do Curso de Árabe da USP, onde também leciona o curso de pós-graduação sobre a história do Orientalismo. Atual diretora do Centro de Estudos Árabes da USP e Membro do ICArabe. Autora de vários livros e artigos sobre temas relacionados à história, cultura e cinema árabe e do Oriente Médio.
Márcia Camargos
Jornalista e escritora, pós-doutorada na área de história cultural pela USP. Esteve em Teerã em outubro de 2008 como convidada oficial do Festival Cine Verité. Com 19 livros publicados e vários prêmios literários, escreveu A travessia do albatroz, sobre um iraniano refugiado no Brasil, e O Irã sob o chador: duas brasileiras no país dos aiatolás, a ser lançado pela Editora Globo em agosto de 2010. Tem artigos sobre o Irã publicados em sites, revistas e jornais. É colaboradora do ICArabe.