A influência da cultura árabe no folclore gaúcho
Sobre a origem da chula, o tradicionalista e renomado pesquisador do folclore gaúcho Paixão Cortes relata em seu livro “Manual de Danças Gaúchas” a primeira vez que viu a manifestação do estilo, em 1951, interpretado pelo gaiteiro Agustinho Manoel Serafin, em Vacaria. Paixão deixa claro que nunca havia ouvido falar desta dança, nem mesmo em suas tantas pesquisas bibliográficas até então. Tempos depois da apresentação de Serafin, Paixão encontra, juntamente com Barbosa Lessa, um dos livros mais importantes referentes ao estado gaúcho: “Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul”, publicado em 1839 por Nicolau Dreys, e então cita o seguinte texto:
“Por isso pouco trabalha o gaúcho, enquanto tem dinheiro. O tempo passa-se em jogar, tocar ou escutar uma guitarra nalguma pulperia ou as vezes, com raridade dançar uma espécie de chula grave, que vimos praticar por alguns deles.”
Paixão conta que eles foram os responsáveis por levar esta dança para o CTG 35 (Centro de Tradição Gaúcha), o mais tradicional de Porto Alegre. Segundo os autores, as danças gaúchas foram por muito tempo esquecidas, há muitos hiatos de tempo e dúvidas quanto às suas origens. Seus livros e estudos são subsídio de pesquisa e parâmetro para jurados em concursos folclóricos até os dias de hoje.
A chula é executada exclusivamente por homens e é apresentada em desafio. Os bailarinos colocam um bastão longo no chão e cada um percorre a extensão do objeto com sapateados e mudanças de nível. Sua ênfase, portanto, está nos pés. Sobre a origem da chula, o autor Dante Laytano defende que:
“O folclore europeu que chegou ao Brasil foi todo através do português, bem como a cultura não africana e indígena, nos tempos da formação nacional, ela se origina então da gente lusitana. Impossível, pois, delimitar em termos de folclore gaúcho a influência portuguesa que foi brutal e avassaladora. Começando nas danças gaúchas, por exemplo, como a “chula” – dança gaúcha que procede do Minho e do Douro.”
Em observação a uma dança típica árabe realizada em um casamento nos dias de hoje, a antropóloga Roberta Peters, da UFRGS descreve sobre o dabke:
“ É uma dança tida como típica dos árabes... Basicamente, no salão, a dança é uma coreografia simples, realizada coletivamente. Dois círculos independentes ou que se entrelaçam. Um círculo masculino e outro feminino em que as pessoas que participam dão as mãos levantando ao mesmo tempo a perna direita e, posteriormente, completam dois passos laterais com a perna esquerda na frente. Para que haja um ritmo e sincronicidade na dança das mulheres, um homem mais velho pode puxar o passo inicial e ordenar a roda chamando outras mulheres a se integrar ao círculo, mesmo que seja para aprender a coreografia.”
O dabke, portanto, pode ser dançado sem pretensões competitivas ou artísticas, apenas por divertimento. Mantém sua característica de sapateado, mas com passos mais simples, que podem ser seguidos mesmo por pessoas que não conhecem a dança. Existe também, por outro lado, um forte teor de competição e demonstração de habilidade de sapateado e força quando a dança é realizada com um caráter mais profissional. É nesta situação que ela se parece e muito com a chula.
Apalavra “debka”ou “debki”significa passo, caminhada, pisada, bater os pés no chão. Estas pisadas são as que determinam o estilo desta dança árabe baseada unicamente nos movimentos de pés.
Grande particularidade das danças árabes, as mais antigas e populares, passadas de geração em geração, são os saltos e sapateios. O dabke originou-se no Líbano, na época em que os telhados das casas eram de barro e, após as chuvas, ao se danificarem, os amigos e familiares pisavam a socarem o barro no chão consertando o telhado ao som de música e cantoria.
Além do dabke, também a dança egípcia tahtib, originária de El Said, no Egito, utiliza pequenos saltos e sapateios. Esta dança provém de pastores, onde homens com um grande cajado dançam em movimentos semelhantes aos da dança gaúcha dos facões, onde simulam uma luta. Esta dança pode ser praticada em desafio entre dois homens ou por um sozinho que demonstra sua habilidade com o cajado em meio
aos sapateios.
O ritmo característico desta dança é o Said, com quatro tempos, divisão rítmica que também pode ser utilizada no dabke. Entretanto, é mais comum encontrar neste último o ritmo jabalee (da montanha), uma variação do Said (alegre). Os instrumentos definidores destas músicas são os de sopro e percussão. O bumbo utilizado para marcar o ritmo é o mesmo usado nas danças gaúchas.
Quanto à dança gaúcha dos facões o autor Moacir Sepé questiona:
Outras (danças) e são as de maior número (de dançarinos), já a espanhola, umas vezes fazendo o paloteado outras saindo com pequenas bandeiras, movimentando-se ao modo militar, com variedade de escaramuças, e outras com espadas, representando esgrimas e escaramuças, fazendo segundo instrumento com elas, com seus golpes de dentro do compasso, já ao turqueso, já ao asiático... De onde teria então vindo a Dança dos Facões do folclore riograndense? Contribuição árabe argelina? Originária da Espanha ou Portugal.
O termo gaúcho nem sempre referiu-se ao homem nascido no Rio Grande do Sul. Por muito tempo, o homem nômade, livre de compromissos tanto afetivos quanto profissionais, com seu jeito rude e selvagem de viver, era chamado de gaúcho. Este modo de vida inspirou Manoelito de Ornelas a compará-lo ao de um beduíno. Para o autor, em seu livro “ Gaúchos e Beduínos”, as semelhanças entre a cultura gaúcha e a cultura árabe não ficam só no título:
“ Se um século de colonização pôde dar ao povo riograndense do litoral a fisionomia típica do ilhéu português, que herança não teriam deixado, na Península Ibérica, os mouros em 900 anos de domínio com repetidas invasões que atingiram a vários milhões de indivíduos? Se o Brasil em quatro séculos e meio e o Rio Grande do Sul, particularmente em dois séculos, puderam sedimentar as tradições lusas, não teriam sofrido os povos ibéricos em nove séculos a infiltração de sangue mouro e a absorção de sua cultura?
Para o autor, os colonizadores Espanhóis e Portugueses que aqui estiveram, traziam consigo uma carga genética e cultural muito influenciada pela miscigenação árabe. Por consequência da colonização, os gaúchos também herdaram características que remetem à este passado.
O autor Shokry Mohamed, professor de danças árabes da Espanha, aponta uma nova prova desta miscigenação quando refere-se à chegada da dança oriental na Europa:
“Según outra teoria, esta danza llegó a Europa a través de España, y sus difusores fueron los fenícios que se establecieron em El sur de La Península y alli dejaron sus huellas culturales, presentes em algunas manifestaciones artísticas como el fandango.”
Esta informação reforça a ideia de que ambos os colonizadores possuem uma origem étnica comum. O estilo do fandango gaúcho, dança praticada aos pares em salão, tem origem nas danças que chegaram ao Brasil juntamente com a corte de Portugal, quando eles aqui se estabeleceram. Antes das danças da corte, a dança na Europa era praticada somente por homens, como ocorre em muitas danças antigas árabes. Manoelito de Ornelas, também cita o fandango como um produto desta influência:
‘’E fácil descobrir-se no fandango do Ribatejo, na tirana da Beira Baixa e nos corridinhos do Algarve reminiscências da influência moura na Península. A tirana atravessou os mares para conquistar toda a América do Sul e o fandango também se fez brasileiro e platino.
Sobre este assunto, Paixão Cortes esclarece:
“O primeiro fandango riograndense foi formado pelo hibridismo dos lundus, que desciam das Capitanias brasileiras com o fandango que a Espanha enviava às cidades sulamericanas. Daí resultou uma série de sapateados entremeados de cantigas brasileiras, ... Os sapateados, por sua vez, tiveram origem na Península Ibérica, mas naturalmente haviam se adaptado ao Brasil, no ritmo brasileiro.”
Para os autores Luiz Alberto Grijó, Fábio Khun, César Guazzeli, Eduardo Neumann,
“Os primeiros migrantes, como vimos, foram os diversos grupos indígenas estabelecidos antes da chegada dos brancos. A essa população nativa se sobrepuseram os colonizadores portugueses que trouxeram consigo os escravos africanos, eles próprios migrantes forçados pelo tráfico transatlântico. Foi essa a base original do povoamento do Rio Grande do Sul, aliás, comum ao restante do Brasil”
A partir deste encontro, entre nativos e colonizadores, deu-se o choque cultural, onde o colonizador procurou impor seus preceitos religiosos e culturais. Uma forte influência, certamente trazida junto à bagagem cultural dos jesuítas, eram das danças mouriscas, danças dramáticas que protagonizavam a luta entre mouros e cristãos na Península. Talvez então tenhamos a resposta de o porquê tantas danças que simulem lutas e desafios.
“Os índios orientados pelos jesuítas estavam submetidos a um forte dirigismo e os padres selecionavam nas reduções os mais aptos, aproveitando-os para o ‘bem comum’. Através do ensino ministrado nas escolas de ‘ler-escrever de música e dança os jesuítas acompanhavam o desempenho dos guaranis iniciados nas artes y ofícios.”
No livro Danças e Andanças da Tradição Gaúcha, os autores Paixão Cortes e Barbosa Lessa discorrem sobre as danças praticadas por jesuítas no Brasil colonial:
“Havia também danças específicas para o culto dos portugueses ao santo deles, São Gonçalo do Amarante, ou para o culto dos negros católicos aquele que se tornara, por empréstimo, um santo deles: o mouro São Benedito.
Mais adiante, transcorre uma descrição das danças praticadas aqui:
“E em trechos de outro cronista missioneiro, Padre Cardiel, encontram-se alusões a marujos dançando à luz de archotes e árabes armados de alfanges marchando ao compasso de clarins, num claro depoimento de que, aonde ia a Igreja, iam as marujadas, cheganças e demais lutas coreográficas entre mouros e cristãos.”
Manoelito aponta esta forte influência árabe, predominante no Rio Grande do Sul ao fato de que as primeiras famílias chegadas ao estado provenientes da Península Ibérica, eram do Algarve e da Madeira e que estes o eram mouros, em sua maioria, ou utilizavam, como força de trabalho, o mouro que era “mais trabalhador do que o escravo de Guiné e da Mina’.
Analisando a dança enquanto teatralidade, encontramos outra semelhança. Tanto a dança masculina árabe quanto a dança masculina gaúcha reforçam sua masculinidade e rudeza. Fica aparente a semelhança do significado das duas palavras: gaúcho e beduíno, o livre, o nômade e valente. Ambas as danças deixam claro o brio masculino em atitudes graves, ou como nas palavras de Saint Hilaire descrevendo as danças gaúchas: “Seus movimentos têm mais vivacidade e há menos afabilidade em suas maneiras. Em uma palavra: são mais homens!”
“Diremos então que as características principais das danças gaúchas, no que se refere ao homem, visto que a mulher desempenha, geralmente, um papel secundário, são a teatralidade e o respeito a mulher.”
“Assim, chegamos à principal característica dos bailes e das danças gaúchas: a teatralidade o campeiro. Dentro do máximo respeito, ele procura sobressair, mostrar que é o melhor sapateador, procura recitar os versos mais pitorescos e enfeitar seus passos com variações mais difíceis.”
Quanto aos trajes típicos gaúchos, encontramos também indiscutíveis semelhanças Não fosse o chapéu, o gaúcho com sua bombacha, botas, cintos largos e camisa de manga longa bem poderia passar-se por um árabe. Analisando estas semelhanças, busquei novamente nos estudos de Paixão Cortes algum vestígio de origem comum à vestimenta:
“Chiripá – pano que os gaúchos riograndenses, à imitação dos orientais, passam por entre as pernas e sobre as ceroulas, indo prender na cintura. É só usado pela gente baixa, peões de estância.”
Manoelito de Ornelas descreve uma pesquisa realizada em uma viagem sua:
No Alentejo, conheci inúmeros teares verticais para confecção exclusiva de chinchas árabes. Vi os chalecos vermelhos e as camisas rendadas que foram habituais aos maragatos do Norte da Espanha e as espora com bico-de –papagaio; o pala dobrado ao ombro, como o nosso poncho, o chapéu de abas largas, os safões – qua são autênticos tiradores de couro, com cintos no modelo da guaiaca sul-americana, com faixas coloridas por baixo; os escabelos no tipo dos cepos dos galpões americanos, os alforges no tipo dos pessuelos gaúchos, os chifres decorados para o uso da água e aguardene, tudo a estabelecer um paralelo indisfarçável com o berbere do Norte espanhol e o gaúcho das terras estremenhas da América.”
Sobre nossas lendas consta a lenda da Salamanca do Jarau que constitui-se de uma princesa moura aprisionada em um corpo de serpente:
“Quando nos referimos à lenda da Salamanca do jarau afirmamos que nenhuma versão nos parecia tão caracteristicamente oriental como a do Rio Grande do Sul.
Mais adiante,
A Salamanca do Jarau, nossa lenda colhida e preservada por Simões Lopes Neto, poderá guardar na sua delicada tessitura fantasmagórica, a lembrança de todos os povos que lastrearam a formação Étnica da península. Suas raízes poderão acusar a contribuição de todas as raças que invadiram a Ibéria. Mas a lenda, na América, na Espanha como em Portugal, em nenhuma parte foi mais característicamente levantina, mais oriental, que na versão riograndense.”
Este mito pode ser encontrado sob a forma dos jins, gênios que são capazes de assumir formas diversas e realizar os desejos de seu amo na literatura árabe.
Teriam, as danças gaúchas, alguma procedência árabe? E por que no Rio Grande do Sul estas semelhanças seriam, então, mais marcantes do que no resto do país? Quais seriam as danças possíveis de serem produto desta miscigenação de que fala Manoelito de Ornelas em seu Gaúchos e Beduínos?
Estas respostas poderiam aproximar povos distantes e tornar nossa visão do gaúcho herói errante em um beduíno do pampa. Alteraria, talvez, o sentimento do imigrante árabe recente, fazendo-o sentir com uma nova pátria e o gaúcho, por sua vez, conhecedor de uma nova origem histórica, anterior aos portugueses e espanhóis.
Reforçar a tese de Manoelito, no que se refere às danças gaúchas, poderia ajudar-nos a compreender melhor nossa história, já que o folclore é a história e costumes de um povo, passados de geração em geração. Estudar o folclore é manter viva esta história e evitar distorções e perdas provenientes do tempo.
Através deste estudo, encontramos semelhanças na vestimenta, no gesto, nos movimentos sapateados. Encontramos também elementos que podem explicar o porquê destas semelhanças. Um estudo mais profundo, estipulando um paralelo entre um estilo gaúcho e um estilo árabe, pesquisando passos, músicas e cantigas, poderia explicar com mais clareza tais semelhanças.
As danças folclóricas são tema de extrema importância, tanto para acadêmicos quanto para alunos de ensino fundamental. O primeiro precisa estudá-lo para dominá-lo e aperfeiçoar-se para que então possa informar e preparar o aprendizado do segundo. Só assim, com maior seriedade por parte de toda a classe de professores, a dança folclórica poderá ter o lugar que merece: uma disciplina tão importante quanto a história e que, aliada a ela, serviria para manter nossa tradição e costumes vivos além do tempo e dos livros.
Provar a existência de uma predominância de costumes árabes na tradição gaúcha não seria com interesse de provar a distinção deste estado, mais uma vez, em relação ao restante do país. Mas uma necessidade sempre atual de entender nossas origens para entender a nós mesmos, “conhecer o passado para construir o futuro”.
Após lermos tais considerações não parece simplista a ideia de que somos apenas oriundos de Portugueses e Espanhóis? O fato de termos um outro entendimento sobre a bombacha do gaúcho não elucidaria ainda mais nosso passado valente e encantador?
Que mais estudos sobre danças folclóricas gaúchas surjam. Que ela alcance o seu merecido lugar junto à educação e que torne-se matéria indispensável para qualquer escola de ensino fundamental. E que sirvam nossas façanhas de modelo à toda terra!
BIBLIOGRAFIA
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