A lenda do príncipe errante*
Nos tempos pré-islâmicos, ao chegar em Meca, era possível encontrar poemas “pendurados” pela cidade. Entre sombra e luz perpassam versos, a poética da gente aguerrida do deserto das arábias. Os feitos de um desses poetas, al-Qays, foram contados num Dîwân por Alberto Mussa. Enquanto aguardamos a edição dos “Poemas Suspensos” traduzidos por ele, avancem a fronteira dessa história, ainda que longínqua. A poética se confunde com a respiração, com o poente, um dia após o outro e o desafio de cada momento. (Lelia Maria Romero)por Alberto Mussa * Nasceu Imru al-Qays no clã de Ákil al-Murar, o comedor de erva-amarga, soberano da poderosa tribo de Kinda, que dominava um vasto território na Arábia central. Era o filho mais novo do príncipe Hujr, e neto do xeque al-Hárith. Quis o destino que seu avô, al-Hárith, conquistasse para sempre o ódio de um outro grande xeque – Mundhir, da tribo de Lakhm, aliada dos reis da Pérsia. Porque al-Hárith atacou Mundhir e lhe tomou as terras. Mas foi por pouco tempo. Mundhir reorganizou seus guerreiros e revidou, recuperando o que era seu e matando al-Hárith. A tribo de Kinda saiu enfraquecida; e o amplo reino foi repartido entre os príncipes, filhos de al-Hárith. A Hujr, pai de Imru al-Qays, coube a soberania sobre os territórios por onde vagavam as tribos de Assad e Ghatafan. Enquanto isso, Imru al-Qays crescia. Começou a fazer versos. Começou a se envolver com mulheres. Começou a fazer escândalo. E se apaixonou perdidamente por sua prima Unaiza. Um dia, as moças do clã montaram suas camelas e se foram refrescar no belo oásis de Dara Juljul. Quando viram aquela água límpida e fresca, mergulharam, completamente despidas. Só não sabiam que tinham sido seguidas por Imru al-Qays. Sorrateiramente, o príncipe pegou as roupas todas e se escondeu detrás de um arbusto. Foi Unaiza quem primeiro quis sair e, quando notou o sumiço das roupas, deu o alarma. Imru al-Qays, então, apareceu: – Sua saia está aqui comigo, prima. Pode vir buscá-la. Unaiza ficou indignada. As outras moças também. Mas o tempo foi passando, Imru al-Qays não cedia, e elas resolveram sair, nas condições do príncipe. Uma de cada vez, iam elas, nuas, receber de Imru al-Qays as vestes que lhes pertenciam. Quando o cortejo terminou, o sol estava prestes a se pôr. Mas Imru al-Qays era um homem generoso, como um árabe sempre deve ser. Sem pensar duas vezes, cortou o jarrete de sua própria camela e a abateu para o banquete. As moças, agora alegres, puseram toda a carga de Imru al-Qays sobre suas próprias montarias e o ajudaram a preparar a carne, rindo e brincando. Só Unaiza se manteve aborrecida. Quando foi hora de voltarem, Imru al-Qays disse à prima: – Como você não ajudou a carregar as minhas coisas, carregará minha própria pessoa! E assim foram, ele e a prima, discutindo, dentro do mesmo palanquim. Não demorou muito, toda a tribo conhecia o incidente. Imru al-Qays teve a ousadia de compor versos sobre o assunto e envergonhou o pai. O ódio de Hujr foi tão grande que ordenou a um servo matasse Imru al-Qays e lhe trouxesse, como prova, os olhos da vítima. O servo manteve Imru al-Qays oculto e levou ao xeque os olhos de um bezerro selvagem – idênticos ao do jovem poeta. Quando Hujr se arrependeu, Imru al-Qays foi trazido a sua presença, vivo. O pai o perdoou, mas o proibiu de fazer poemas. Em vão. Não se pode proibir um poeta árabe de compor. Imru al-Qays continuou a fazer versos e a provocar escândalos. Assim, foi definitivamente banido da tribo de Kinda. Nos dias de exílio, errou pelo deserto, buscando a hospitalidade das tribos, uma após a outra, acompanhado de outros degredados. Jogou, bebeu, amou, cantou poemas. Foi dissipando os bens que lhe restavam. Até que um dia se achou no povoado de Dammun, no Iêmen, e foi encontrado por um mensageiro de Kinda. As notícias não eram boas. A tribo de Assad tinha se rebelado contra os cobradores de impostos e Hujr enviara uma expedição punitiva. Capturou um punhado de homens e lhes impôs um castigo humilhante, surrando a todos com um pedaço de pau. Por fim, expulsou os Assad para as terras mais áridas do interior da Arábia. No entanto, um dos poetas da tribo exilada, o grande Abid, filho de al-Abras, compareceu ante Hujr e recitou um poema em sua honra. Hujr, que condenara a poesia do filho, redimiu Assad na pessoa de seu poeta e permitiu que voltassem. Assad voltava. Quando já estavam acampados perto das tendas de Hujr, no intuito de agradecê-lo, o kahin – adivinho da tribo – vaticinou que o xeque seria o primeiro homem a ser atacado na manhã seguinte. O destino dava o objeto e Assad assumiu o papel de sujeito. Logo ao raiar da aurora, a tribo de Assad assolou o acampamento de Hujr. Pegos de surpresa, os aliados do xeque ainda tentaram defendê-lo, mas Hujr, atingido no calcanhar pela lança de um certo Ilbá do clã de al-Kahil, acabou perecendo da ferida. Antes de morrer, porém, determinou a seus homens mais fiéis que recolhessem todos os bens salvos do saque – armas, cavalos, camelos, caldeirões – e os entregassem ao primeiro filho que não chorasse ao saber do seu fim. A este caberiam a herança e o dever de vingá-lo. Os filhos de Hujr, todavia, choravam sempre, jogando areia na cabeça. Quando o mensageiro começou a dar a triste nova a Imru al-Qays, o mais novo e o último a ser prevenido, o príncipe jogava gamão com um dos companheiros de farra e aventura. Não deu atenção ao mensageiro. Mandou, inclusive, que não atrapalhasse a vez do seu adversário, tirando-lhe a concentração. Só depois de concluída a jogada, Imru al-Qays se dispôs a ouvir, para dizer no fim: – Ele me rejeitou na juventude e agora me impõe esse dever, quando já sou adulto. Não ficarei sóbrio hoje. Nem bêbado amanhã. Vinho agora, trabalho depois! Após essa última frase, que se tornou proverbial, Imru al-Qays pronunciou seu juramento: – Daqui a sete dias, não tocarei em mulher, não beberei vinho, não comerei carne, não lavarei a cabeça e não me ungirei com óleo enquanto não matar cem homens de Assad e cortar o topete de outro tanto! Então, após sete dias de orgia, começa a jornada de Imru al-Qays, chamado por todos de al-malik al-dillil, o príncipe errante, em busca do preço do sangue de Hujr. Narrando suas desventuras, consegue a aliança das tribos de Bakr e Taghlib. Os aliados do príncipe chegam exaustos às cercanias das tendas de Assad, cujos homens e montarias estavam repousando. A batalha é sangrenta. Mesmo em desvantagem, depois de um dia inteiro de combates, Imru al-Qays faz muitas mortes e põe Assad em fuga. Considerando a vingança obtida, Bakr e Taghlib julgam exagerado o pedido do príncipe para continuarem. “Não matei ninguém no clã de al-Kahil”, afirma em desespero, sequioso de mais e mais vingança. Abandonado por Bakr e Taghlib, Imru al-Qays obtém dessa vez o apoio de tribos do Iêmen e parte em nova ofensiva. No caminho, passa pelo santuário do deus Dhu al-Khalassa e decide tirar um oráculo. Diante da divindade havia uma aljava com três flechas: “prosseguir”, “desistir” e “esperar”. Por três vezes seguidas, Imru al-Qays escolhe a segunda delas: “desistir”. Irritado, quebra as flechas contra o joelho e atira os pedaços no rosto do ídolo: – Vai lamber o clitóris da tua mãe! Se fosse o teu pai quem tivesse sido morto, não darias tal conselho! Imru al-Qays, então, prossegue. Todavia, prevenidos por informantes, Assad pede socorro ao xeque Mundhir, que tinha ódio ao clã de Ákil al-Murar. O príncipe errante é derrotado. Seus aliados fogem. Com alguns poucos parentes, continua errando no deserto, numa sede insaciável de vingança, assaltando os homens de Assad. Decide pedir auxílio ao imperador de Bizâncio, inimigo dos persas e do xeque Mundhir. Durante a viagem, pede hospedagem no castelo de Samawal – poeta, judeu e o mais leal dos árabes – deixando sob sua guarda os últimos bens que lhe restam: as cinco cotas de malha herdadas de Hujr, denominadas “Ampla”, “Abundante”, “Fortificada”, “Pródiga” e “Mãe dos Mantos de Longa Cauda”. Mas Samawal não sabia o que estava por vir. Logo após a partida de Imru al-Qays, Mundhir cerca o castelo e exige as cinco cotas de malha. Samawal, leal, não cede e o castelo é mantido sob sítio. Quando um dos filhos de Samawal tenta sair furtivamente da fortaleza, para obter víveres e socorro, é capturado por Mundhir, que propõe trocá-lo pelos bens de Imru al-Qays. Mas a honra de Samawal foi maior. Preferiu ver morto o filho a trair a palavra dada. Enfim, se aceitasse, o que lhe poderia deixar de herança? Imru al-Qays, já em Constantinopla, jamais iria saber do gesto extremo de Samawal. Embora tivesse obtido a aliança do César, alguém pareceu ter escutado passos noturnos pelos compridos corredores do palácio, próximos aos aposentos da filha do imperador. Alguém traduziu para o César versos que o príncipe árabe teria composto sobre ela e tivera a audácia de recitá-los entre beduínos. No dia do retorno, Imru al-Qays recebe do imperador uma riquíssima dádiva: – Este manto foi usado por mim. Espero honrá-lo quando tu mesmo o vestires. E Imru al-Qays vestiu o manto de César. Ainda estava na Anatólia quando as chagas lhe explodiram pelo corpo, provocadas pelo sutil veneno interposto entre as tramas do tecido. E assim morreu o príncipe errante. E assim findou a dinastia dos xeques de Kinda. *Publicado originalmente no dia 11 de novembro, na edição nº24 da newsletter do Icarabe