al Atlantidus*
Enquanto a terra firme flutua, o vento leva certezas e o horizonte mutante nos aponta possibilidades de estranhamento e revelação. A experiência da “Jangada de Pedra” resgatou histórias daquelas terras.
Contam que ao sul, o sul da península ibérica, entre os Pireneus e as costas banhadas pelo Mediterrâneo, num tempo de invasões e reinos dispersos, floreceu uma vida próspera, entre os amantes do vinho e do belo, poetas, matemáticos, gente de pensar instigante, os que olham as estrelas antes de dormir. O al Andaluz, as terras sonhadas do “al Atlantidus”, nutriam o imaginário dos que vinham do oriente. E vieram muitos atras desses cantares, fenícios, judeus, ciganos, bérberes, árabes, gente de barcos e trocas, de errância e fé. Naquelas terras secas, um mosaico de peças distantes e diversas foi se formando e crescendo, colorindo palácios e o cotidiano. Cristãos, judeus e muçulmanos cultivaram ali as sementes da diferença e colheram frutos por oito séculos.
Paz, “Shalom”, “Salam”, o al Andaluz dos hispano-árabes ou o Sefarad dos hispano-judeus, não viveu séculos tranquilos mas tempos de intensa troca de conhecimento e tolerância. Gente versada no culto das complexidades da existência, os omíadas de Damasco plantaram relações contraditórias, que frutificaram para além da península. Entrelaçada à arte, conhecimento e fé, a convivência se fortaleceu, incorporando ao longo do tempo, a expressão do sim e do não, como apontava Pedro Abelardo, teólogo polemico do século XII. Talvez por deixar-se ser, talvez meio inconsciente, a tolerância se manifestou na aceitação das contradições como positivas.
Conta-nos Maria Rosa Menocal que, “a essência mesma dessa concepção de cultura, como uma série de contrários encontra-se no Al andaluz, o que requer que reconfiguremos o mapa da Europa, colocando o Mediterrâneo no seu centro, e que comecemos a contar pelo menos essa parte da história de um ponto de vista andaluz. Foi lá que judeus profundamente ‘arabizados’ redescobriram e reinventaram o hebraico; foi lá que cristãos adotaram todas as características do estilo árabe – do estilo intelectual da filosofia aos estilos arquitetônicos das mesquitas – e isso não se deu apenas enquanto viviam sob domínio islâmico, mas especialmente depois de tomarem deles o controle político; foi lá que homens de fé inabalável como, Maimonides e Averrois, não viram contradição alguma na busca da verdade – fosse filosófica, científica ou religiosa – através dos caminhos da religião. Essa visão de uma cultura de tolerância reconhecia que as incongruências existentes entre indivíduos e entre culturas são enriquecedoras e fecundas”.
A cultura alandaluza viveu uma experiência impressionante de multiculturalidade. O al Andaluz exportou arte e conhecimento para a Europa medieval, e esta bagagem suscitou a curiosidade das cabeças pensantes, alimentou a cultura trovadoresca do sul da França e até, futuros artistas e pensadores do Renascimento. Viajantes que transpunham os Pireneus levavam informações e encantamento. As escolas de tradução de Toledo surpreendiam: não havia nada igual em outra parte da Europa. O árabe era o idioma dos eruditos e elegantes, o latim perdeu espaço e o castelhano se desenvolveu e se firmou como língua local.
Na Idade Média dourada desenhada de arabescos, nutrida de arte e saber, não havia Beethoven, mas a música de Ibn Báya aquecia o ambiente dos salões, em uma festa ou nos fins de tarde. Conhecedor de filosofia, das matemáticas, ciências naturais, medicina, astronomia, foi também um artista reconhecido na música e poesia; nasceu em Zaragoza (1070) e morreu em Fez (1138). Ministro algumas vezes, prisioneiro em outras, sua vida cheia de riscos e atribulações, foi marcada por um espírito profundo e um terrível destino: teria morrido envenenado. Sábio ilustre, sua personalidade dominou a vida musical no al Andaluz e no Magreb, numa época em que Córdoba (“Qurtuba”), Sevilha (“Isbília”) e Granada (“Garnata”) eram cidades que albergaram eruditos de áreas e nacionalidades diversas.
Ibn Báya, o político, o que diria sobre o que se desenrola no Brasil? Já o músico, gostaria de encontrar o maestro Barenboim, e quem sabe fariam um improviso juntos. O poeta apreciaria Calderon de la Barca; poderiam se cruzar num “callejon” do “Barrio de Santa Cruz” em Sevilha, para “una copa”, mas essa já é uma outra história.
*conto publicado originalmente no dia 30 de setembro de 2005, na edição nº da newsletter do Icarabe