Personagens árabes na literatura brasileira

Ter, 04/05/2010 - 15:28
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A civilização islâmico – árabe não deixou marcas unicamente no seu passado histórico. Sua influência ainda se espraia por todo o mundo contemporâneo, uma presença rediviva em quase todas as atividades do homem. Já se tornou redundante a afirmação de que sem os algarismos arábicos, ou sem o símbolo zero, também projeto pelos árabes, não existiria a matemática moderna e, consequentemente, as chamadas ciências exatas.

Foi sua absoluta confiança na verdade da teoria árabe, de que o mundo era redondo, que Cristóvão Colombo zarpou para o Ocidente. E os portugueses, entretanto problemas técnicos de cosmografia, convocaram mestres árabes para auxiliá-los. Os sábios árabes, atraídos a Sagres, colaboraram não só na solução de aspectos da navegação, mas também contribuíram na solução de inquietações de ordem sociológica, problemas de compensação ou recuperação da população. Bem como na solução de questões levantadas pelos contatos da cultura portuguesa com a dos povos estranhos.

Valeram-se, assim, dos exemplos que lhes ofereciam os árabes com sua experiência e conhecimento de espaços extra-europeus. O aumento das populações nos trópicos deu-se sob a égide do costume árabe de considerar o filho mestiço detentor de todos os direitos. E Vasco da Gama, que teve como piloto Ahmad Ibn-Madjij, nascido na cidade de Djulgar, em Omã, de antepassados beduínos da Arábia,  aprendeu com os árabes de Moçambique a técnica de construção de tanques de madeira para reservatório de água no fundo das embarcações. Com os mesmos árabes de Moçambique, aprenderam a construção de barcos com velas tecidas de palmas. Também o valor antiescorbútico das frutas cítricas foi decididamente transmitido aos portugueses por um chefe árabe.

Assim, guerreiros e sábios de Alá se espalharam do Crescente Fértil, acima da Península Arábica, para o Ocidente. Para a França. Sicília. Espanha. E ainda para o Oriente – China e Índia, deixando vínculos na filosofia, nas artes, arquitetura, metalurgia etc. Não deixa, pois, a História Árabe de ser um dos capítulos mais importantes da própria História da Humanidade.

Os historiadores reconhecem que os eruditos árabes estavam mergulhados em Aristóteles quando Carlos Magno e seus nobres ainda aprendiam a rabiscar seus nomes. Diz um historiador americano, contemporâneo, que em Córdova, com suas dezessete enormes bibliotecas, uma só das quais possuía 400 mil volumes, “cientistas se deliciavam com banhos luxuriosos numa época em que, na Universidade de Oxford, se considerava lavar o corpo um costume perigoso. 

 

Língua da cultura

O árabe, como é sabido e consabido, foi, por muitos séculos, a língua da cultura e do pensamento progressivo por todo o mundo civilizado – vale dizer a língua do próprio conhecimento, através da qual se expressavam cientistas, filósofos e matemáticos. Trabalhos de natureza religiosa, astronômica e geográfica foram produzidos mais no árabe do que em qualquer outra língua. E seu alfabeto, depois do latino, ainda é o mais usado em todo o mundo.

E agora será oportuno repetir as palavras de Philip R. Hitti, para que se tenha uma ideia menos confusa do que vem a ser “árabe” e “semita”, e sobretudo para que não se percam as raízes históricas do Islamismo e do Semitismo: “Dos dois povos sobreviventes que representam a etnia semita, foi o árabe que preservou os traços físicos e mentais característicos desta família. Sua língua, apesar de ser a mais jovem do grupo semítico, do ponto de vista da literatura, conservou um número maior das peculiaridades da língua materna, inclusive a flexão.

O Islamismo, do mesmo modo, é, na sua forma original, a perfeição lógica da religião semita. Na europa e na América, deram à palavra “semita” o significado de judeu, mas os “traços semitas”, que incluem o nariz proeminente, não são absolutamente semíticos. Estes característicos diferenciam o tipo judeu do semita e representam, evidentemente, uma aquisição resultante de antigo cruzamento entre hititas-hurrianos e os hebreus”.

E mais adiante: “Foi na Arábia que os antepassados dos povos semitas, os babilônios, assírios, caldeus, amoritas, arameus, fenícios, hebreus, árabes e abissínios tiveram sua origem. Aí viveram, numa época remota, como um só povo”. Quanto à presença dos elementos árabes em nossa cultura, é preciso poupar palavras, como em sua marcha o beduíno poupa água, para apertar em poucas páginas apenas um quadro reduzido dessa imensa presença, que principia com os moçárabes – cristãos arabizados da Península Ibérica que, no próprio século do Descobrimento, vieram com os colonizadores.

Esses e seus descendentes – e é bom que se diga, desde já que, para fazer descendência, o inflamado sangue árabe fervia tanto quanto o lusitano, por antiga tradição e até por gosto, na verdade, sempre ambos competindo…E nunca, alguém de fora influiu tanto na nacionalidade e no nacionalismo português, desde a invasão da mouraria com seu convívio, e dos confrontos na Índia, com gentes do Gama, de Cabral, e sucessores.

Já no Brasil, as suas culturas continuaram a unir o sangue e seu suor – tendo o sangue nos dado o termo adjetivo – morena – a da cor moura, e o suor, este verbo prestigioso: mourejar. E ainda melenizar, ou melenização, que vem a ser o bronzeamento da pele, praticada em quase todas as praias brasileiras, revelação de Gilberto Freire, para mostrar que nossos antepassados portugueses desejavam parecer tão pardos quanto os irmãos nativos das terras quentes.

As influências sociais e econômicas não caberiam nesse espaço, mas em compêndios. Das influências espirituais, basta algumas sejam relembradas para se avaliar sua presença. Nem precisamos mencionar a picota, a cegonha, que retirou água nos primeiros poços nordestinos. Nem a azenha ou o moinho d’água, ou a irrigação por canais, trazida dos Omíadas do sétimo século. O café. A cana. O algodão. A laranja. O bicho-da-seda. A pólvora. O papel. O rol é quase interminável.

Apenas um ou outro exemplo do criador mourismo de valores artísticos e intelectuais revela essa presença, a qual, mesmo diluída no tempo, é bem visível no que ficou do espírito árabe na arquitetura cotidiana – no gosto pelo azulejo, no mosaico. E desde os nossos tempos ancestrais, a janela de rótula. Os balcões de fachada. Os portões e gradis ornamentais. Os espaços adôbes.

Os vitrais coloridos. Os caprichosos chafarizes. A telha mourisca e, embaixo delas, as crianças em classe cantando a tabuada, e no pátio a roda da cirandinha. As mulheres de mantilha. O costume das pessoas anunciarem sua visita. A cozinha rica em especiarias. A profusão de doces. E eis que surge um nome: Abd-al-Rahman. Numa festa de paz, em seu palácio, compõe versos líricos para a palmeira solitária, em seu jardim.

Este artigo foi publicado na Carta Informativa nº 137 – Página 40.