"A guerra me trouxe liberdade”
Texto escrito pela voluntária Priscilla Arroyo e fotos da voluntária Fernanda Nishimoto, para o projeto Comunicadores Atados
“Quando não temos nada, não temos nada a perder”. A famosa frase de Bob Dylan ajuda a resumir o difícil argumento defendido por Mohamed Alsaheb, que deixou casa, empresa e família para trás ao fugir da guerra na Síria, e depois de enfrentar o maior desafio da sua vida até aqui, sente que conquistou a liberdade. Ao partir de seu país, se viu compelido a reinventar o próprio ser em um lugar onde não conhecia nem a cultura, nem uma palavra do idioma — o Brasil.
O processo de adaptação manifestou o seu mais profundo instinto de sobrevivência, além de revelar pormenores desconhecidos de sua personalidade. Como consequência, se viu radicalmente transformado quando percebeu a mudança na maneira como lida com o mundo e também no jeito como se relaciona com as pessoas. Por isso, defende: “a guerra me trouxe a liberdade de ser quem sou. Não deixo mais nada e nem ninguém guiar minha vida”, diz entre sorrisos.
As largas risadas que acompanham sua fala dão destaque às salientes bochechas e ao mesmo tempo deixam seus olhos claros apertadinhos, quase fechados. Assim, o jovem de 36 anos e quase dois metros de altura, parece um menino ao contar que foi preciso perder as conquistas materiais e o lugar social forjado pela sua profissão para conquistar a liberdade.
“Abandonei casa, carro e meu estúdio de animação por conta da guerra. Minha única família — mãe e irmã — já tinha ido para o Egito. Foi só depois de perder tudo isso que passei a dar valor ao que carregava dentro de mim. Nunca pensei ser capaz de fazer tudo o que fiz, me reinventar no mundo, ter outra profissão. Hoje minhas relações valem muito mais do que coisas materiais. Também perdi o medo do futuro, o que é libertador. Não sei o que será, mas estou feliz vivendo cada dia”, conta.
“Já ouviu a palavra árabe Maktub? Significa que já estava escrito.”
Ao colocar os pés em São Paulo carregando uma única mochila com três camisetas, toalha, notebook e dois mil dólares, sua intenção era pegar um voo de volta para o Líbano com escala em Paris (França), onde pretendia desembarcar e tentar uma nova vida. A passagem pelo Brasil se resumia a uma estratégia alternativa para entrar na Europa. Sem sucesso na empreitada, sentiu um chamado do destino para ficar por aqui.
“Já ouviu a palavra árabe Maktub? Significa que já estava escrito. Saí do hotel onde estava em Guarulhos, ao lado do aeroporto, e fui buscar um lugar mais barato para ficar”, conta. Depois de algumas tentativas malsucedidas, encontrou uma pensão acolhedora na Vila Mariana, onde morou durante um ano dividindo o quarto com mais três pessoas.
Foi na busca por aprender o idioma, que sua trajetória se entrelaçou com o Instituto Base Gênesis, Organização Não Governamental (ONG) voltada para o desenvolvimento humano, onde descobriria a sua nova profissão. Seguindo indicações de uma breve pesquisa na internet, chegou tímido até a sede da ONG, localizada no coração de São Paulo, na Praça da Sé, em busca das aulas de português. “Conversei bastante em inglês com a Sheila, principal coordenadora do lugar, que além de me encaixar na turma para aprender português, me propôs ministrar aulas de inglês para brasileiros. Fiquei surpreso com a ideia, pois nunca tinha pensado em ser professor, mas topei o desafio. Era uma oportunidade de me integrar com a comunidade brasileira”, lembra.
E assim passou a frequentar o lugar algumas vezes por semana. À medida que aprendia as primeiras palavras em português, melhorava as suas aulas, pois conquistava mais pontos de conexão com os alunos.
O Instituto Base Gênesis é um projeto piloto financiado pela igreja Adventista, que tem como objetivo primordial estimular o trabalho voluntário para oferecer cursos aos refugiados que chegam em São Paulo, ao mesmo tempo que oferta também aulas aos brasileiros.
Inaugurado em abril de 2015, momento no qual muitos sírios desembarcavam no país após fugirem da guerra, o local acabou firmando estreitos laços com a comunidade árabe. As voluntárias provenientes do Oriente Médio que ensinam maquiagem árabe às brasileiras, aprendem com as mesmas parceiras a cozinhar usando ingredientes típicos do país, como fubá ou tapioca.
E foi nesse ambiente de troca contínua de experiências que Mohamed se forjou como professor. Hoje a ONG tem cerca de 400 voluntários cadastrados e apoia cerca de 250 famílias árabes. Além de oferecer capacitação, a entidade promove também feiras de saúde e administra, em parceria com a Prefeitura, um centro de acolhimento de refugiados no bairro do Canindé, Zona Norte da cidade.
“Depois de alguns meses dando aulas no Gênesis, percebi o retorno positivo dos alunos, que diziam gostar muito da maneira como ensino. Além de inglês, passei a instruir também árabe em outras ONGs — então já como profissional, recebendo pagamento. Fui amadurecendo a ideia de ser professor, e apoiado nessa experiência inicial, firmei o importante passo de alugar um lugar onde pudesse morar e ao mesmo tempo ministrar cursos particulares”.
Foi neste apartamento onde se instalou há pouco mais de dois anos — uma kitnet no centro da cidade — que Mohamed recebeu a repórter e a fotógrafa interessadas em produzir esta matéria.
Seu dom natural de anfitrião deixa todos à vontade no “seu lugar”.
Orgulhoso da relação que cultiva com os alunos, uma das primeiras coisas que mostrou às curiosas visitantes foi seu quadro com mais destaque na decoração, que abriga fotos da sua primeira turma de aprendizes de árabe — e também os primeiros amigos brasileiros.
Todos que visitam seu apartamento passam pelo mesmo ritual. Mohamed oferece o chá preto tradicional da Síria — como o café para nós — e emenda a pergunta: “com ou sem açúcar?”. Se a visita, desavisada, responder com um certeiro “sem, por favor”, ele devolve em tom jocoso: “esse fica muito melhor com açúcar”, e traz orgulhoso e risonho a bebida quente na medida ideal, que certamente fica perfeita adocicada. Depois escreve em seu quadro branco as palavras bem-vindo em árabe, e as traduz em seguida para o português. Seu dom natural de anfitrião deixa todos à vontade no “seu lugar”.
Fica fácil entender o porquê seus alunos gostam tanto das aulas. Durante a conversa, Mohamed não perde uma única oportunidade de introduzir algo da cultura árabe em sua fala. Nenhum, absolutamente nenhum visitante de seu apartamento, sai de lá sem um cartão com o nome escrito em grafia árabe.
“Sei que estou aqui com a missão de disseminar a cultura do meu país. Por isso, muito mais do que ensinar o idioma árabe, tento fazer com que todos se interessem também pelos nossos costumes. Mas tem uma coisa em relação aos brasileiros que é curiosa. Vocês são super abertos para fazer amizade, abraçam e estão quase sempre dispostos a conversar. Mas por outro lado têm imensa dificuldade de levar em consideração as ideias de alguém de fora. Sempre que tento opinar em algo, especialmente relacionado a trabalho, recebo o mesmo conselho: deixa pra lá, Mohamed, você não entende como as coisas funcionam no Brasil”, comenta.
Embora esteja hoje feliz como professor, Mohamed buscou os primeiros empregos no país visando a sua área de formação — publicidade. Chegou a trabalhar em uma empresa especializada em ensino à distância, mas se desanimou com o fato de sua voz não ser considerada.
“Quando tentava propor coisas novas, dar ideias, ouvia sempre o mesmo argumento dos gestores: que não conhecia o mercado brasileiro. Uma vez fui tentar um trabalho em uma empresa de mídia, e na primeira reunião me perguntaram o que sabia fazer. Contei sobre a experiência de 15 anos com publicidade e design, a especialidade em storyboards — sequência de desenhos que esboça como será feito um filme, uma animação ou uma propaganda. No meio da conversa, apenas comentei fazer tatuagens de henna como hobby. A partir do momento que ouviram isso, esqueceram todo o histórico profissional que tinha acabado de narrar e me contrataram para fazer desenhos de henna em um evento. Hoje a proprietária é minha amiga, dou aulas de árabe para ela”, conta.
“Temos muito a ensinar, assim como temos muito a aprender com vocês também”
Mohamed usa essa história como exemplo para embasar seu argumento de que, embora bem recebidos pelos brasileiros, os sírios enfrentam importantes limitações dentro da sociedade. “Percebo que podemos cozinhar — uma das principais alternativas dos árabes para garantir o sustento no país — podemos até ensinar nosso idioma, mas opinar sobre assuntos ligados à mídia é praticamente impossível. Acho que isso é um pouco reflexo do estereótipo que a imprensa brasileira cria em relação à figura do refugiado. Não somos criaturas frágeis que estão perdidas no mundo. Somos iguais a vocês, muitas vezes temos qualificações profissionais, e não é porque precisamos deixar nosso país que perdemos nossas competências. Temos muito a ensinar, assim como temos muito a aprender com vocês também”, argumenta.
Essa inquietação estimulou Mohamed a unir alguns antigos colegas de profissão de Damasco — capital da Síria, onde morava — para produzir um documentário sobre a vida dos refugiados no Brasil. “Mesmo com pouco acesso a equipamentos, conseguimos recolher um bom material durante sete dias de filmagem em São Paulo. Agora a ideia é organizar esse conteúdo e fazer um vídeo de apresentação para tentar conseguir patrocínio, pois o próximo passo é captar a realidade dos sírios também no Rio de Janeiro. Essa barreira invisível em relação às nossas ideias está dificultando um pouco o andamento do projeto. Sempre ouço que por ser refugiado, vai ser difícil conseguir financiamento para o projeto, mas sigo na tentativa”, diz.
As paredes de seu apartamento são permeadas de post-its com anotações sobre o roteiro do filme, impressões sobre o material já captado e planos de montagem. “Quero mostrar que somos todos iguais. A fronteira é uma invenção, e à medida que você abre a cabeça para trocar ideias, experiências e busca entender o outro, você estará mais perto da sua própria humanidade. Aprendi isso e queria que todos compartilhassem essa sensação de união”.
Conheça o Instituto Base Gênesis
Praça da Sé, 28
Sé — São Paulo (SP)
Contato: (11) 2129–2626
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Publicado originalmente aqui.