Artigo: Raduan Nassar, para além da estante
“[…] não eram duendes aqueles troncos todos ao meu redor, velando em
silêncio e cheios de paciência meu sono adolescente?” (Raduan Nassar)[1]
Para os brasileiros, 2016 foi um ano de consideráveis turbulências nas esferas geopolítica, socioeconômica e cultural. No entanto, em meio a calorosas divergências, os leitores de nossa melhor literatura depararam com um livro em conteúdo e forma de alento. Trata-se da Obra Completa de Raduan Nassar[2], em edição cuidadosamente preparada pela Companhia das Letras, que conquistou, com todo o mérito, o último Prêmio Camões.
Lá estão Lavoura arcaica (de 1975) e Um copo de cólera (de 1978) – romances consagrados perante crítica e público. Porém, a maior surpresa fica por conta dos textos que correspondem à segunda metade do volume, forrado por contos, ensaios e traduções. Trata-se de poderoso convite à leitura (supondo a existência daqueles que não tiveram acesso à obra do escritor) e, simultaneamente, de um corpus que favorece a análise de estudiosos e a reflexão dos curiosos em geral.
A reunião das obras de Raduan Nassar num mesmo volume acontece em momento bastante oportuno, para se repensar as estruturas de poder vigentes por aqui. Basta lembrar que em Lavoura arcaica, o narrador em primeira pessoa descreve sua relação conturbada com o pai e considera as razões para o seu afastamento em relação à família, por diferença de personalidade, comportamento e afinidades.
Dir-se-ia que o romance dramatiza nossa tradição latifundiária, patriarcal e classista, sob os aspectos mais severos. Ela está representada pela dicção hesitante, mas incisiva, do protagonista, cujo discurso mapeia a conturbada relação do narrador com seu pai: legítimo representante do pater famílias – figura encontrada na Roma antiga e que deitou raízes canhestras entre nós, desde os tempos de nossa colonização monopolista e escravocrata.
A voz que narra tem nome sugestivo. Em seu relato, André (“homem valente”, segundo os gregos) descreve os familiares e também o ambiente, de modo a alternar excursos sobre sua intimidade, mas também digressões em torno da vida na fazenda: a palavra emperrada pelo pai, os modos silenciosos da mãe, a postura dos irmãos etc. Meio-termo entre o quarto e o latifúndio, entre si mesmo e os outros, era “lá do bosque que” ele “escapava aos olhos apreensivos da família”.
Violência como traço cultural, mas também como legado. O pai de André tinha por hábito emitir longos sermões e surrar os filhos periodicamente. Talvez reproduzisse, em parte, o modo de ser e conceber do avô, “esse velho esguio talhado com a madeira dos móveis da família”. As largas terras e os objetos da propriedade ilustravam o caráter mandão e tirânico dos que chegaram antes, a reforçar a imagem do pai “à cabeceira, o relógio de parede às suas costas, cada palavra sua ponderada pelo pêndulo”.
Se Lavoura arcaica retrata as angústias de um jovem frente ao patriarcado na fazenda, em Um copo de cólera é a paixão que assume o protagonismo. Escrito em ritmo a simular a sofreguidão e entrega dos amantes, o romance deixa o campo da hierarquia patronal, onde o autoritarismo e a coerção prevalecem. Porém, a mesma pujança embalada por Eros encontra substituto nas violentas discussões do casal.
Os sete capítulos do romance sugerem um movimento contínuo. Na forma como foi estruturado pelo autor, o enredo se concentra e desdobra nas cinco seções intermediárias. Após descrever a ordem dos afetos que ele e a jornalista compartilham, o narrador escancara a desordem da razão. Entre as duas chegadas, a narrativa enfatiza os motivos que provocaram as discussões do casal: “[…] ‘não é pra tanto, mocinho que sua a razão’, e eu confesso que essa me pegou em cheio na canela, aquele ‘mocinho’ foi de lascar, inda mais do jeito que foi dito”.
Assim, o que era desejo, ímpeto e locupletação cede lugar à sanha de disputar palavras, decretar a sentença derradeira, vencer o embate verbal. Em lugar da harmonia dos corpos afoitos, a ponderação (quinhão inútil da racionalidade), até que, num intervalo de menor juízo, as paixões se diluam e, híbridas, deem margem a um novo ciclo de desejo, entrega e repulsa. É sugestivo que a narradora assume o relato, em determinado momento. Em acordo com a lógica do desejo, não faz sentido que apenas um responda pelo uso da energia disponível. O ciclo dos amantes recomeça, então, sob nova perspectiva: “quando cheguei na casa dele lá no 27, estranhei que o portão estivesse ainda aberto”.
Há que se preservar algum fôlego para tirar máximo proveito da leitura. Não bastasse a qualidade dos romances, a terceira sessão de Obra Completa traz Menina a caminho (1972) e outros contos, que se caracteriza(m) pela alternância de pontos de vista e múltiplas formas de perceber o cotidiano, por exemplo, em posição e movimento de solidariedade: “Acocorada ainda ao lado do cavalo, a menina desvia os olhos da janela e alcança, bem afastados, os três meninos arrastando os sacos de palha pelo chão de terra, como se fossem três pequenos arados […]”.
Sensibilidade e coragem embasam a existência das criaturas que habitam o universo de Raduan. Em sua trajetória, quase sempre oscilante, encontram-se muitos modos de ver, seja na voz solitária, mas vigorosa, de um adolescente contra o regime totalitário que vigora no latifúndio; seja no velho hábito de ter razão, a despeito das vantagens aportadas pela união do casal; seja no testemunho da filha que encontra nos jogos de criança substituto para a crise enfrentada pelos pais.
Feito notável, Raduan Nassar elevou ao máximo a potência dos seres supostamente pequenos. No universo paternalista, em que a fala alheia está sob as rédeas de fazendeiros megapoderosos, é a voz do adolescente que prevalece; na casa modesta, em que a decisão está a cargo da gente simples e grande, é a ótica da criança que restabelece a harmonia humana possível. Somente uma obra literária desse patamar poderia evidenciar que homens e mulheres alternam afetos e razões, para além do maniqueísmo, da hierarquia e das distinções de classe, corpo, etnia e gênero.
Eis um feito nada desprezível, tendo em conta as velhas distinções que ainda assombram os homens do lado de cá – onde persiste “a estrutura de costume”, responsável pelo fato de boa parte dos brasileiros “ter os olhos submissos sempre voltados para matriz”. Percepção de um homem que desempenha, com o mesmo talento e lucidez do romancista, o seu valioso papel de ensaísta.
[1] Raduan Nassar. Lavoura arcaica. In: Obra Completa. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, pp. 15-16.
[2] O escritor nasceu em Pindorama (SP) em 1935. Formou-se em Direito e Filosofia na Universidade de São Paulo. Em 2014, concretizadas a doação e transferência de sua fazenda, inaugurou-se o novo campus da UFSCar.
Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e Literatura Brasileira da Escola de Comunicações e Artes da USP - foto: Marcos Santos/USP Imagens)
Artigo publicado originalmente em: http://jornal.usp.br/artigos/raduan-nassar-para-alem-da-estante/