Mostra Mundo Árabe de Cinema: documentário retrata ligações entre palestinos no Brasil e em território ocupado
Marcado pela diversidade étnica e cultural, o Rio Grande do Sul abriga hoje milhares de imigrantes palestinos e seus descendentes. As comunidades nascidas da nakba - palavra árabe cujo significado é catástrofe ou desastre - buscam, na diáspora, a integração plena e uma nova cidadania no Brasil. Hoje, tratam de sobreviver, crescer e conquistar o reconhecimento por sua contribuição econômica, social e cultural.
Com cenas filmadas no sul do Brasil e no Oriente Médio, o documentário "A Palestina Brasileira", de Omar L. de Barros Filho, será uma das atrações da 13ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, que será promovida de 8 a 27 de agosto, no Cinesesc e no Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, com realização do Instituto da Cultura Árabe, em parceria com Sesc e Centro Cultural Banco do Brasil e copatrocínio da Câmara de Comércio Árabe Brasileira.
“A Palestina Brasileira” revela as raízes, o grau de integração e a sensação de pertencimento de seis famílias alcançadas pelos preconceitos, perseguições e guerras. Questiona sua atual condição e mostra como homens, mulheres e jovens se situam frente aos seus direitos e aos valores éticos e religiosos de sua cultura tradicional.
“A presença de ‘A Palestina Brasileira’ no evento promovido pelo ICArabe é um passaporte livre para os melhores sonhos, uma janela cultural aberta a essa constelação familiar palestina que, agora, rompe o silêncio e, sem sombras e sussurros, revela sua memória em pungentes e afetivos relatos”, celebra. Em entrevista ao Portal ICArabe, Omar relata sua experiência na realização do documentário, que entrou em cartaz no Canal Curta este ano (saiba mais aqui) e assista aos vídeos promocionais (video 1) e (vídeo 2).
Portal ICArabe – Qual o significado, para seu filme, de participar da Mostra Mundo Árabe de Cinema em 2018?
Omar de Barros Filho - Foi com alegria que recebi a notícia de que A Palestina Brasileira está entre os filmes que participarão da Mostra Mundo Árabe de Cinema, em São Paulo. A iniciativa do ICArabe Brasil abre uma valiosa oportunidade para aprofundar os diálogos que venho mantendo com as comunidades árabo-palestinas em Porto Alegre e em outras cidades gaúchas, como Santana do Livramento, Quaraí e Bagé, na fronteira com o Uruguai, nas quais é marcante a presença das famílias de origem palestina. Nessas ocasiões, manifesto sempre minha gratidão por sua hospitalidade aqui e lá na Palestina, elemento determinante na realização do documentário.
Tais sessões especiais mostram todo o potencial de comunicação do filme com uma discreta comunidade de imigrantes que, ao mesmo tempo, busca o reconhecimento social no Brasil e o direito de retornar, liberdade que lhe é negada por Israel.
Em outro patamar, a presença de “A Palestina Brasileira” no evento promovido pelo ICArabe é um passaporte livre para os melhores sonhos, uma janela cultural aberta a essa constelação familiar palestina que, agora, rompe o silêncio e, sem sombras e sussurros, revela sua memória em pungentes e afetivos relatos.
Portal ICArabe - Você retrata as conexões entre palestinos na Palestina e no Brasil. Quantas histórias você ouviu e como foi escolher as que fariam parte do filme? Houve uma história que mais tenha te marcado?
Omar de Barros Filho - Os personagens do documentário foram selecionados de acordo com o roteiro original, cuja proposta determinava a aproximação com famílias que ainda hoje mantêm vivas, no Rio Grande do Sul, suas relações afetivas, culturais e políticas com a Palestina, seus parentes e amigos. Outras personalidades, entretanto, ganharam destaque no próprio terreno, fora do roteiro, durante as filmagens. Deixei uma margem para a improvisação e para a surpresa, o que enriqueceu o documentário.
Um exemplo marcante é a trajetória de um casal de refugiados palestinos que agora reside na região metropolitana de Porto Alegre.
É uma tragédia que dura 70 anos. No início, a família abandona a Palestina como consequência da criação do Estado de Israel, em 1948. Passa a viver em Bagdá, lá reconstrói sua vida. Anos depois, a família vê tudo desmoronar, quando é novamente expulsa pela guerra após a invasão do Iraque pelas tropas dos EUA. O casal foge, então, para o campo de Al Rweished, em uma região desértica na fronteira da Jordânia.
Depois de sobreviver durante anos no campo, os dois são trazidos pela ONU para o Rio Grande do Sul, onde encontram novo abrigo. Os filhos ficaram para trás. Um vive na Indonésia, a filha está em Bagdá.
No filme, o contraponto e o imprevisto nos foram dados por personagens que resistem há décadas no campo Al Fawwar, próximo a Hebron, onde ainda agora são refugiados dentro da própria Palestina. São pessoas que nunca recuperaram seus bens, propriedades urbanas ou terras tomadas por Israel. Não estavam no roteiro.
Portal ICArabe - Quais foram os desafios para filmar na Palestina?
Omar - Em minha primeira viagem a Jerusalém, durante a década de 1990, sofri uma série de constrangimentos ainda no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, antes do embarque. Um verdadeiro absurdo porque me encontrava em território alemão.
Com a experiência ainda viva em minha memória, tratei, antes do retornar, de informar ao governo israelense a presença e a movimentação de minha equipe de filmagem exclusivamente em território palestino. Foi uma maneira de responsabilizar as autoridades de Israel por nossa segurança.
Apesar das precauções, em uma madrugada, o hotel onde a equipe estava hospedada em Ramallah foi invadido e ocupado por tropas militares de combate e elementos civis durante cerca de três horas. Nossos apartamentos foram arrombados, as bagagens reviradas, fomos identificados e fotografados juntamente com os funcionários do estabelecimento. O hotel foi violentamente depredado com a utilização de motosserras e marretas pesadas.
Horas antes, a equipe foi detida por um longo tempo em um checkpoint israelense no interior do histórico mercado de Jerusalém. Primeiro, nosso guia palestino-brasileiro foi expulso do local. Após, fui levado a um prédio onde funciona um centro de controle policial da área onde fica o conhecido Muro das Lamentações. Lá, recebi a proibição por escrito de não realizar entrevistas nem utilizar equipamento de som e luz. Quando tentamos entrar na mesquita de Al Aqsa, onde éramos aguardados, fomos outra vez bloqueados por policiais de Israel. Dias depois, quando tratávamos de deixar o aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv, uma de nossas duas câmeras foi confiscada e nunca devolvida.
Portal ICArabe - Você é jornalista e já foi correspondente internacional. Como compara a situação dos palestinos a outras vivenciadas em suas coberturas?
Omar - De fato, tenho uma longa experiência de trabalho na América Latina, justamente no período em que as ditaduras militares eram comuns no continente. No tempo da chamada Guerra Fria, era perigoso trabalhar em países como El Salvador, Guatemala ou Bolívia, por exemplo. Lá, minha vida esteve sob risco em diferentes ocasiões.
No entanto, apesar de toda a repressão e arbitrariedade típicas dos regimes daquela época, nunca vi nada parecido com o sistema de vigilância imposto por Israel aos palestinos. É onipresente, e objetiva dificultar, até mesmo impossibilitar, a sobrevivência, o dia a dia dos cidadãos palestinos. O apartheid alcança homens, mulheres e crianças indistintamente.
Israel não constrói apenas muros de concreto. Ao mesmo tempo em que coloniza ilegalmente novas áreas, cria muralhas de preconceito, barreiras tecnológicas e proíbe o necessário desenvolvimento da população da Palestina. Trata de dominar os céus, os mares, os rios e as águas subterrâneas. Controla a circulação da moeda e do conhecimento. Israel diz o que é o certo e tem a palavra final sobre o que é o errado.
Portal ICArabe- Como você vê a cobertura da mídia em relação à questão palestina? Considera que há uma cobertura equilibrada?
Omar - Os setores dominantes da mídia são contrários às justas reivindicações palestinas. Isso é demonstrado diariamente nos noticiários. É uma mídia parcial, que não esconde suas preferências. Mesmo quando relatam massacres como os que ocorrem em Gaza na atualidade, descrevem “confrontos” de palestinos desarmados contra tropas militares de Israel, que portam armamentos altamente sofisticados e letais. É um acinte à linguagem e à verdade. Com absoluta frieza, snipers israelenses praticam tiro ao alvo em pessoas, que são mortas ou passam a carregar deficiências físicas para o resto da vida. Em sua cumplicidade, essa parcela significativa da mídia não tem palavra crítica sobre o assunto. É lamentável, vergonhoso.
Portal ICArabe- Que papel o cinema pode representar para uma maior compreensão do mundo árabe e também da situação dos refugiados no Brasil e na América Latina, em um momento em que a xenofobia parece estar mais evidente?
Omar - Os ventos da guerra voltam a soprar com mais força no Oriente Médio, agora que Donald Trump afinou os instrumentos de sua orquestra militar com a banda israelense. Suas últimas medidas, como a de romper com o acordo nuclear com o Irã, a intervenção militar na Síria, a mudança da embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, são ações que apontam para novas e próximas guerras na região, confrontações que ameaçam a paz no mundo. Os resultados serão outros milhões de refugiados atravessando oceanos em busca de sobrevivência.
Nesse plano, o cinema, tanto o de ficção como o documental, ocupa um lugar na batalha contra a desinformação, a alienação e o preconceito. São tempos áridos os que vivemos e nos aguardam. Horas difíceis que resultarão de nações vitimadas por políticas militaristas, crises econômicas e ambientais.
Acredito, porém, que mesmo sob essas circunstâncias adversas, homens e mulheres saberão manter sua humanidade e seus valores mais profundos, independentemente de classe social, cor ou religião. A solidariedade ativa, o adequado acolhimento dessas massas deslocadas de seus países, é mais do que uma necessidade, é uma obrigação.
Sobre o diretor
Omar L. de Barros Filho é diretor cinematográfico, roteirista e jornalista. Dirigiu, recentemente, o documentário de longa-metragem “A Palestina Brasileira”, filmado no Brasil e no Oriente Médio. A obra retrata famílias palestinas, expulsas de sua terra de origem por guerras e perseguições, e que encontraram no Rio Grande do Sul a chance de reconstruir suas vidas.
Dirigiu, também, “Adyós, General”, ficção ambientada na guerra civil em El Salvador, onde foi correspondente. Foi diretor do curta "Viva a Morte”, sobre um velho franquista espanhol que abre um motel no Brasil. Ambos os filmes foram premiados em festivais no Brasil, e integraram a corrente conhecida no país como “Cinema de Invenção”, defendida pelo crítico Jairo Ferreira e pelo cineasta Júlio Calasso.
Foi pioneiro na introdução do formato minissérie no país ao dirigir, para a RBSTV, “Atlântida e o Anjo” e “Atlântida e o Príncipe Submarino”, dirigida ao público adolescente na década de 80. Pela direção da série “Nove Talentos Gaúchos”, produzida para a RBS-TV, recebeu da Academia Brasileira de Letras o prêmio Jeca Tatu, por sua contribuição à cultura brasileira na TV. Criou e dirigiu dezenas de filmes publicitários e documentários institucionais.
Como jornalista, foi editor do jornal alternativo Versus, em São Paulo, na década de 1970, recebendo o Prêmio Vladimir Herzog dos Direitos Humanos, pela reportagem “Carta de Um Torturado ao Presidente Geisel”. Escreveu livros de reportagens sobre as crises políticas de El Salvador e da Bolívia, na década de 80. Integra, na atualidade, o grupo de colaboradores de Tlaxcala, site multilinguístico de tradutores.
Como personagem, participou ativamente da série televisiva e impressa “Resistir É Preciso – Os protagonistas desta História: A Imprensa Alternativa, Clandestina e no Exílio, no período 1964-1979 (do golpe à Anistia)”, produzida pelo Instituto Vladimir Herzog, de São Paulo.
Leia a seguir a entrevista: