Alguns estudiosos vêem influência islâmica em "A Divina Comédia"
Debate que começou com estudo do espanhol Asín-Palácios procura encontrar, ou rechaçar, a influência da narrativa islâmica da Viagem Noturna do Profeta em "A Divina Comédia"O que Dante Alighieri, o maior poeta da língua italiana, e o profeta Muhammad têm em comum? Uma viagem pelo céu e pelo inferno. Em “A Divina Comédia”, o personagem principal, o próprio Dante, viaja pelas profundezas da terra e do céu, passando também pelo purgatório, em busca de sua amada Beatriz. Quase sete séculos antes, segundo a crença islâmica, o profeta atravessou o céu e o inferno em apenas uma noite, a mesma em que visitou uma mesquita em Jerusalém. Teria Dante se inspirado no Islã para criar sua obra máxima? Há quem acredite que sim. Dante, um católico convicto, pode ter tirado da Viagem Noturna a idéia para sua obra poética. Diz a tradição islâmica que por volta do ano 620, o profeta realizou uma viagem miraculosa guiado pelo anjo Gabriel. Na primeira parte do trajeto, chamada de “Isra”, ele teria ido de Meca para uma mesquita longínqua. Os muçulmanos acreditam que ela seja a Masjid Al Aqsa, em Jerusalém. Na segunda parte, chamada de “Miraj”, Muhammad teria ascendido aos céus a partir da mesquita, onde falou com profetas como Abraão, Moisés e Jesus. Dante também teria realizado a viagem em uma mesma noite e, assim como no episódio de Muhammad, a cidade de Jerusalém é incluída. No livro, ele ainda encontra os mesmos profetas e tem a ajuda de um guia, o poeta romano Virgílio. As coincidências não podiam evitar suspeitas. Um historiador espanhol, Miguel Asín-Palácios (1871-1944), lançou em 1919 um livro em que defendia a tese de que Dante conhecia a Viagem Noturna da tradição islâmica. Em “La Escatologia Musulmana em la Divina Comedia”, o estudioso também mostra que “A Divina Comédia” tem características sufistas. Os orgulhosos italianos consideraram a idéia uma ofensa, principalmente por surgir nas vésperas da comemoração dos 650 anos de nascimento do poeta florentino. Afinal, a idéia de que o pai da língua moderna italiana foi influenciado por uma tradição tão, digamos, oriental, não é nada fácil de digerir. Asín-Palácios também foi atacado pela influente comunidade católica espanhola, que chegou a acusá-lo de, pasme, herege. O fato é que Asín-Palácios morreu antes de surgir uma descoberta que poderia corroborar sua tese. Em 1949, uma medievalista francesa, Marie-Therése d’Alverny, encontrou um manuscrito na Biblioteca L´Arsenal, em Paris, chamado “Collectio toletana”. Esse documento, uma tradução do árabe para o latim que trazia o episódio da “Miraj”, teria circulado na Europa na época de Dante. Portanto, o poeta pode ter tomado conhecimento da Viagem Noturna através de algum manuscrito semelhante. Como ainda é impossível saber se a Viagem Noturna de Muhammad foi ou não inspiração para a obra de Dante, resta-nos conjecturar. Afinal, temos apenas a certeza de que Dante tinha conhecimento do Islã e de seu profeta. Cristão fervoroso, o poeta florentino colocou Muhammad e seu genro Ali (quarto califa e espécie de pai do xiismo) no oitavo círculo do Inferno, local dos provocadores de cismas religiosos. Sem algum conhecimento sofisticado do Islã para a época, realmente, eles não seriam nem citados na obra.