Cenas da 3ª Mostra Mundo Árabe de Cinema do ICArabe
A vida de cinco mulheres no Líbano, “o romance sobre a questão Palestina” nas telas e uma reflexão enriquecedora sobre o preconceito construído em torno do árabe pelo cinema de Hollywood. A produção cinematográfica trazida pela MMAC lotou salas no Cine Sesc e Centro Cultural São Paulo e deu possibilidade, nos debates, a novas cenas. A seguir, algumas delas.Francisco Miraglia, diretor do Instituto da Cultura Árabe (ICArabe), fez-me a seguinte observação no evento de abertura da 3ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, no dia 8 de setembro, ocorrida no Cine Sesc: a maioria do público ali presente, pouco mais de 100 pessoas, era composta por pessoas que pouco tinham ligação com a comunidade árabe no Brasil. Eram cinéfilos que costumam freqüentar Mostras ou pessoas instigadas a prestigiar a abertura. Na noite, cafés, tabules, homus, pão sírio, música - com Sami Bourdokan, William Bourdokan e Cláudio Kairouz - e Caramel. A observação de Miraglia ganhará novos contornos. Talvez os brasileiros não soubessem, mas veriam a si mesmos naquelas telas. Cena 1: conversa de mãe e filha, que se casa no dia seguinte: ‘Eu tenho algo a lhe dizer, para que você saiba o que esperar. Você não é mais criança. Eu criei você muito bem, mas esta é sua última noite aqui em casa. Esta separação parte meu coração. Amanhã, será a sua noite... Estará passando para outra fase de sua vida... Todas as mulheres passam por isso. Eu também passei. Você não deve ter vergonha. Ele é o seu marido, o seu príncipe. Na alegria e na tristeza. No começo, vai ser difícil, mas depois você vai se acostumar. Você vai conhecê-lo aos poucos. É a vida... É como um melão. É preciso cortá-lo para saber se está bom. Deus abençoe você. Você sempre será a minha garotinha’. ‘Chega, mãe, vai me fazer chorar’. ‘Não se esqueça, minha querida...’. ‘Não chore’. ‘Você é minha vida. A nossa casa sempre estará aberta para você’. ‘Vamos, não quero ver você chorando’. ‘Tudo bem’. Não dá, a mãe chora. O filme Caramel acaba. Na tela preta, a homenagem, Para Minha Beirute. As pessoas aplaudem a obra da diretora Nadine Labaki. Na saída, o diretor Otávio Cury, que teria seu Cosmópolis como uma das atrações exibidas, diz: “o filme é incrível”. No café pós-filme, à saída da sala de cinema, olhos vermelhos. A 3ª Mostra Mundo Árabe de Cinema faz parte de umas das tradições que o ICArabe consagrou nos seus 4 anos de existência, trabalhar com o cinema. Desde 2005, com o primeiro Ciclo de Debates, montado no Centro Cultural São Paulo, e também um dos realizadores da Mostra deste ano, e depois com a 2ª Mostra de Cinema de 2006, a primeira em parceria com o Institut du Monde Arabe (IMA), e duas edições do Imagens do Oriente, parceria com o Centro de Cinema Documentário e Experimental(Defc) do Irã. Na edição de 2008, que terminou no dia 14, a Mostra apresentou dez filmes, sete deles selecionados entre os exibidos pela 8ª Bienal de Cinema do IMA de 2006, sendo cinco ficções e dois documentários. Outros três filmes foram selecionados de forma independente e foram complementados por mesas de debate. Um dos filmes trazidos fora do circuito do IMA foi Porta do Sol, baseado no livro homônimo do escritor libanês Elias Khoury. Um retrato contundente. “É um filme de importância histórica enorme porque conta de uma forma ficcional como ocorreu a ocupação da Palestina”, disse Soraya Smaili, presidente do ICArabe e curadora da Mostra no Brasil. No debate que se seguiu ao filme, José Farhat, cientista político e membro do Conselho de Imprensa do ICArabe, contou um experiência que o aproximava do relato de Khoury. Cena 2: “nasci à beira do Rio Acre e com 11 anos fui ao Líbano. Cheguei à aldeia de meus antepassados. Em Chatila, fiquei até a 2ª Guerra Mundial, e esse era o caminho para a escola. Passávamos em frente à vila. Fica a cerca de cinco quilômetros de Beirute. Era bucólica, com 4 mil habitantes, não chegava a cinco. Todo mundo vivia em sua pequena propriedade, cultivavam a terra e vendiam os excedentes em Beirute”. Safa Jubran, libanesa e tradutora da obra do árabe ao português, compara o livro de Khoury e o filme baseado nele às Mil e uma Noites. “Uma história nasce da outra, e da outra, e da outra... Em Porta..., Khalil é Sharazade. Mas nas Mil e Uma Noites, ela desvela suas histórias para escapar da morte a cada amanhecer. Khalil conta histórias para trazer à vida Younis, o herói, o pai, que ele não quer ver morrer. A morte do herói seria o fim da crença, o fim da causa”. Ela aponta um momento do livro que faltou no filme e que seria essencial para a história. Cena 3: Umm-Hassan, a mãe de todos no campo de Chatila, estava morta. Nas reminiscências de Khalil, conclui que uma possibilidade que levou a ela foi a segunda e última visita que fez ao irmão Fawzi, que morava na Galiléia, era palestino de 1948. Lá, pediu que a levasse a sua antiga vila, para a casa onde morava. Ele reluta: ‘está habitada por judeus’. A senhora insiste. Bateram. Apareceu uma mulher. Fawzi fala em hebraico. ‘Por que falam em hebraico comigo? Falem em árabe’, disse a israelense com sotaque libanês. ‘Ela sabe árabe’, disse Umm-Hassan enquanto entrava. Conversaram. Depois rodaram pela casa. Umm-Hassan sentou-se na sala e chorou. A israelense perguntou: ‘De onde você é, irmã?’. ‘De Kweiket, esta é a minha casa, esta é a minha moringa e esta é a minha cama; as oliveiras, os cactos, o terreno, a fonte e tudo’. ‘Não, onde você vive agora?’. ‘Em Chatila’. ‘Onde é Chatila?’.‘No Líbano’. ‘Onde no Líbano?’. ‘Em Beirute, perto da cidade esportiva’. ‘De Beirute?! Escute irmã, eu também sou de Beirute, do Wadi Abu-Jmil, conhece o bairro judeu que fica no centro da cidade? Trouxeram-me aqui com 12 anos. Deixei Beirute e vim para esta terra abandonada. À direita da escola havia um prédio de três andares, um judeu de origem polonesa era o dono. Eu sou de lá’. ‘ Mas como?’. ‘Como como ? Eu é que não estou entendendo. Você mora em Beirute e vem chorar aqui, eu é que quero chorar. Levante, vá embora, vá embora, me devolva Beirute e tome toda esta terra distante’. O único filme produzido fora do mundo árabe foi Filmes Ruins, Árabes Malvados, da Media Education Foundation, dos Estados Unidos. O filme é baseado no livro “Reel Bad Arabs”, do crítico de cinema Jack Shaheen. O autor fez uma análise de cerca de 1000 filmes já produzidos em Hollywood que de alguma forma difamam a imagem do árabe. A conclusão é que o árabe foi a figura mais difamada pelos estúdios norte-americanos em toda a sua história. Perguntas abertas à platéia. Mesa composta por José Roberto Sadek, Otávio Cury, Isabelle Somma e José Arbex Jr. Aqui, destaque para duas intervenções. A primeira pergunta foi se, como o documentário mostra, produções cinematográficas teriam algum papel a jogar na guerra, fosse no ataque ou na resistência. A segunda merece uma cena. Cena 4: um senhor se levanta. Começa a falar. ‘Olha, o que eu vejo lá é a pura realidade, é a guerra de um libanês contra o outro. Aqui não acontece isso, todos se respeitam como irmãos. O que os Estados Unidos fazem e o que passam para nós é a realidade. Não existe respeito, nem amor. Sou brasileiro, 50 anos, nunca vi um brasileiro pegar uma arma e apontar para o outro, seja porque ele é muçulmano ou cristão. Primeiro tem que haver respeito entre eles para depois poder cobrar alguma coisa da sociedade ocidental’. As respostas a ambas foram dadas por José Arbex Jr., jornalista. À primeira, “não estou dizendo que guerra vai ser ganha pelo cinema. A guerra é ganha pelo povo e pela luta. Mas também não podemos desprezar o seguinte”: Cena 5: Rede Globo, Jornal Nacional, agosto de 2008. Repórter entrevista família de Nariman Chiah, mulher brasileira que estava presa no Líbano, impedida por seu marido de voltar ao Brasil. Apanhava dele. Dão entrevista, a mãe, a tia, a irmã, toda a família, mostram como estão todos sofrendo. Cena 6: Junho e agosto de 2006. Israel ataca o Líbano, cerca de mil pessoas são mortas no tempo de um mês, comprovadamente com armas proibidas por Convenções Internacionais. A Globo não entrevista ninguém e não se vê a angústia dos que estavam aqui. “Isso vai criando um conceito no povo, de que os libaneses são malvados, machistas, atrasados. E quem é tudo isso tem que morrer. O cinema não ganha guerra, mas forja mentalidades”. Cena 7: Arbex olha para o senhor que fez a última intervenção. ‘Companheiro, infelizmente o Brasil de amor e paz que o senhor descreveu não existe. Sabe quantas pessoas morrem em conflito armado no Brasil? 50 mil pessoas. São 50 mil pessoas que morrem baleadas, brasileiros atirando em brasileiros. As maiores vítimas são pobres e negros. O Brasil é um dos países mais violentos, mais racistas e mais segregacionistas do mundo’. Pronto, o Brasil está refletido, a reflexão sobre um leva a reflexão sobre o outro. Otávio Cury, no debate, disse que gostaria de ver mais filmes como Caramel para ter uma realidade com a qual possa se conectar. Está certo. Mas temos várias, mais próximas do que imaginamos. As pessoas que atenderam à Mostra, cerca de 1400, viram várias realidades e angústias. Talvez não destruam por completo a imagem que elas têm do mundo árabe, mas são passos na direção de um novo olhar sobre o outro. Fim