Depoimentos de intelectual desafiam o poder no Ocidente e Oriente
Documentário traz conversa com Edward Said que aborda sua doença, suas teorias e sua posição na causa palestinaO filme “Selves and Others: a portrait of Edward Said”, exibido na primeira noite do Ciclo de cinema “Cultura Árabe em debate”, começa com Said na direção de um carro. Ali, com a cidade de Nova York ao fundo, ele fala como aprendeu a conviver com a leucemia, diagnosticada alguns anos antes. Impressiona a coragem de alguém que fala com tanta naturalidade de uma doença que ainda não tem uma cura definitiva. Mas na trajetória de vida do intelectual, as soluções para os problemas que seus escritos levantavam, ou para as causas que defendia, também não se ofereciam em um horizonte mais próximo. Paulo Farah, professor de literatura árabe da USP, no debate que se seguiu ao filme, que ainda teve a presença do sociólogo Emir Sader e do secretário municipal da Cultura Carlos Calil, contou que logo que Said descobriu o diagnóstico, pensou em se mudar de Nova York para um lugar mais calmo. “Ele logo desistiu, exatamente por causa desse caráter multifacetado dessa cidade. Essa descrição que ele faz do enraizamento, da pertence, da nacionalidade como algo profundamente antitético para aquilo que ele sente, é fundamental para a gente entender a obra dele”. Said viveu um constante exílio. Nasceu na Palestina, em Jerusalém, único garoto entre quatro irmãos. Sua mãe era libanesa cristã e seu pai tinha passaporte dos Estados Unidos. Estudou no Cairo, no Victoria College, instituição inglesa. Ali, diz Said, “via a história inglesa como a única história”. Era um árabe com passaporte norte-americano em meio a estudantes dos Estados Unidos e da Inglaterra. Depois foi aos Estados Unidos, onde terminou seus estudos básicos, completou a graduação e fez o doutorado. A trajetória da vida de Said foi um constante processo de negociar sua identidade. Com toda sua família expulsa da Palestina ocupada por Israel, ele afirmava que não pertencia a nenhuma coletividade. Paulo Farah revelou um dos trechos da entrevista que fez com o intelectual, em que Said diz que “quando estava no Egito não era egípcio, quando estava no Líbano não era libanês, e tudo isso se juntou para a sensação implacável de que eu não pertenço a este lugar”. Emir Sader manteve contato com Said na época em que o intelectual acabara de descobrir que tinha a doença. Ele conta que Said sempre teve o desejo de vir a Porto Alegre e participar do Fórum Social Mundial. Mas como o próprio intelectual palestino conta no decorre do filme, a doença fazia com que desmarcasse grande parte de seus compromissos. Ela lhe tomava mais da metade de seu tempo. “Por ter nascido na Palestina, mas por ter vivido e incorporado a cultura e a vivência dos dois maiores impérios do mundo moderno, com a cultura inglesa e depois viver em Nova York, isso lhe deu a possibilidade fundamental, universal, de poder pensar os grandes dramas da humanidade, da periferia, mas vivendo uma ótica do centro”, explica Sader. A grande obra de Said é “Orientalismo”. Ali, ele mostra como o Oriente é uma construção teórica reducionista do Ocidente. Ela é composta por estereótipos e imagens que retratam o árabe como sensual, vicioso, tirânico, retrógrado e preguiçoso. Desse modo, se constrói uma cultura homogênea ocidental e essa tentativa de representação de imagem tem um objetivo de dominação. Para Emir Sader, “Said deu uma contribuição fundamental para entender a hegemonia do imperialismo contemporâneo, impossível de compreender sem a imagem do árabe”. LUTA PELA PALESTINA – O filme também destaca que além de intelectual e teórico, Said também lutava pela criação de um Estado para os palestinos. Na verdade, defendia um Estado bi-nacional, mesmo com as resistências emocionais e as tentativas de provar a impossibilidade da coexistência integrada com direitos iguais. Para ele, a existência de dois Estados era inviável. “Ele sempre enfatizava que o verdadeiro combate dos palestinos é a reivindicação de possuir a sua história coletiva. Há uma tentativa sistemática de destruir a memória palestina. E esse era o desafio”, diz Farah. Hoje, são cerca de 4 milhões de refugiados palestinos. Paulo diz que nas conversas que tiveram, o intelectual demonstrava uma frustração com relação à questão. Isso porque, depois de mais de cinco décadas da expulsão dos palestinos, a situação piorou consideravelmente. Farah cita um trecho de entrevista: “Os refugiados ainda são refugiados, quer dizer, os campos de refugiados que deveriam ser provisórios existem há mais de cinqüenta anos. Ninguém tem como sina ser refugiado em um exército de ocupação. É preciso abusar menos da retórica do diálogo e falar em autodeterminação e igualdade. Vamos aos atos”. Feroz crítico do Ocidente, Said não se furtava a criticar o Oriente. No filme, ele detalha suas críticas a governos autoritários do Mundo árabe e a movimentos que usam violência. Ele não faz concessões. Como um palestino que teve sua família expulsa do próprio país, que viu até o último de seus dias, em 24 de setembro de 2003, Israel subjugar com violência os cidadãos palestinos confinados a dois pedaços de território ocupados, Said se volta contra qualquer forma de poder.