Iraque - 4 anos sob ocupação - parte 3
População vive sem governo e estrutura social
População vive sob o terror e sem referência que regule o poder. Disputas são resultado do vácuo de poder. Veja matéria com as opiniões do sociólogo Lejeune Mato Grosso e o iraquiano Khalid Tailche.Os iraquianos, desde 20 de março de 2003, vivem uma das épocas mais desestruturadas de sua história recente. Livres de Saddam Hussein, nenhum arauto de popularidade entre os iraquianos, sob o domínio dos Estados Unidos a população local viu subirem os níveis de morte, o que não surpreende em um país em guerra civil. Dados da iraqbodycount, uma iniciativa independente e que mantém relatórios sobre mortes de civis no Iraque, dá conta que 65 mil civis iraquianos morreram no período dos quatro anos da ocupação. No entanto, um outro estudo traz números mais dramáticos, registrando uma estimativa de 655 mil mortos no Iraque ocupado(seja conseqüência dos conflitos ou de doenças). O estudo foi feito por médicos iraquianos, sob observação de epidemiologistas do Hospital John Hopkins. Foi publicada no jornal médico britânico “Lancet”. Os números da pesquisa abrangem o tempo da ocupação até junho de 2006. Neste ano, a taxa de mortalidade no Iraque ocupado era quatro vezes maior do que um ano antes do início da invasão. (http://www.washingtonpost.com/wp-dyn/content/article/2006/10/10/AR2006101001442_pf.html) Com o vácuo de justiça e de referências criado pelos Estados Unidos, a população iraquiana, estimada, em 2006, em cerca de 26 milhões de pessoas, vive, de fato, sob o terror. Khalid Tailche, um iraquiano de Mossul que graduou-se em Literatura na Universidade de Bagdá, vive no Brasil já há quase duas décadas. Ele fala semanalmente por telefone com parentes e amigos que vivem no Iraque. “Um amigo diz para mim: ‘não adianta explicar para você a situação pela qual estamos passando. Não adianta, pois não se sabe o que está acontecendo’”. A confusão para os iraquianos é que a invasão não calculou o pós-guerra, pelo menos no âmbito social. Os mecanismos de controle do petróleo que se seguiriam à queda de Saddam Hussein já estavam planejados. No entanto, o pós-invasão para a sociedade só trouxe violência e disputa pelo poder. Khalid completa o relato de seu amigo: “Ele disse: ‘Você anda nas ruas e ali estão as forças armadas. Mas quem são eles? São milícias, é o governo, são ladrões, são americanos. Aqui, não sabemos quem é quem’”. Para Lejeune Mato Grosso, sociólogo e membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabes de Lisboa, a estrutura social do Iraque, e o conseqüente conflito entre as milícias, foi resultado de uma sucessão de erros dos Estados Unidos. O primeiro deles foi desmantelar completamente o Estado iraquiano e suas forças armadas e de segurança. “O Estado foi desmontado, o exército foi dissolvido. Hoje, o que existe são milícias leais a correntes religiosas e partidos políticos, e não a um comando centralizado”. Khalid concorda, esse desmonte foi um erro fatal. “Acredito que eles deveriam ter encontrado uma outra forma de lidar com isso. Desmanchou-se a força da polícia e o país ficou aberto. Além disso, imagine você ser um oficial do exército. Aí, entra uma força invasora e diz o seguinte: ‘a partir de amanhã vocês não têm mais trabalho aqui’. Ali do lado, existe uma milícia que precisa de gente para se constituir e diz para esse militar: ‘eu pago cinco vezes mais do que você recebia no exército. Quer trabalhar para nós?’. Foi isso que aconteceu”. Percebido o erro, mais recentemente, o governo iraquiano e a administração estadunidense tentou restabelecer militares ou fazer acordo de pagamento de pensões. (ver matéria “Estupro e execuções”, na seção Reportagens) Uma miríade de milícias e forças políticas buscam, através das armas, um espaço de poder dentro do Iraque. “Os grupos sunitas lideram a resistência, mas há agrupamentos xiitas que também participam. Há ali dentro também o grupo que eles chamam de Al Qaeda, que, insisto em dizer, é uma organização terrorista internacional. No entanto, há um número diverso de organizações que resistem. Hoje, são cerca de 30 organizações guerrilheiras que ainda não atuam sob o mesmo comando centralizado, exatamente pelas divisões que existem ao norte, ao centro e ao sul”. Aqui, Lejeune faz uma ressalva: apesar de não haver unidade entre as milícias de resistência, isso não quer dizer que haja campo para a cantonização do país. Isso porque não há uma posição universal das correntes religiosas e elas não agem de um impulso exclusivamente dogmático. Para muitas delas, acredita o sociólogo, o motor de suas ações é a realidade caótica do país, a falta de emprego (números aproximados indicam um terço da população desempregada), saúde e segurança. A instabilidade é tanta que 1.2 milhão de iraquianos se refugiaram na Síria. Outros 700 mil foram para Jordânia. (ver “Surge uma crise de refugiados iraquianos”, http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/derspiegel/2007/03/16/ult2682u392.jhtm) Uma análise dos conflitos no Oriente Médio pode ajudar a entender a realidade política da região. No Líbano, os xiitas resistem a Israel e ao governo pró-americano. No Iraque, a corrente xiita aceitou colaborar com a invasão. “Não há como você investir nessa cantonização, criar bantustões, dividir o país em três, isso é um absurdo, até porque há centenas de milhares de famílias que casam entre as correntes. A mulher é xiita e o marido é sunita. Não tem como fazer o que se tentou fazer na Albânia, em Kosovo ou nos Balcãs. Dividir o Iraque em três nunca dará certo”. Na resistência, há ainda grupos seculares, de partidos políticos. O sociólogo explica que, como aconteceu no mundo em geral, no Iraque eles também se dividiram em dois: um mais ligado à União Soviética, outro mais à esquerda e crítico das ações do antigo Império. “Quando a União Soviética acabou, a tendência no mundo é que eles se unificassem, ou que um deles perdesse sua função. No Iraque, entretanto, permanecem os dois. Um deles apóia a ocupação, o outro está na resistência”. Para Khalid, o que o Iraque precisaria agora é de um governo forte que pudesse centralizar ações e ter legitimidade para sentar e negociar com as milícias. “Deve-se escutar o que essas milícias querem e resolver as questões políticas internas. E também devem ser separadas as milícias iraquianas de ladrões e grupos que vêm de fora. Estes devem ser expulsos”. O governo atual está longe de ter essa legitimidade. Lejeune aponta, talvez, o que seja o principal problema para a administração Maliki-Talabani: a relação próxima com um exército de ocupação, que fere por princípio a soberania do país. “Não vejo legitimidade neste governo. Ele só existe por causa da ocupação de 160 mil homens. Acompanhei de perto todas as eleições, elas foram em boa parte do país fraudadas, a população não participou, urnas não chegaram ao local de votação. O que houve é um pacto de parte das elites do país com as tropas de ocupação e o imperialismo dos Estados Unidos no sentido de promover uma revanche de um passado político, vista no assassinato do então presidente Saddam Hussein. Uma parte da elite decidiu fazer um acordo e aceitar a ocupação, pois viu nesta atitude a única forma de chegar ao poder”.