Latuff: “Para Israel, opinião diversa de suas políticas precisa ser silenciada"
continuação de: Latuff: Cartunista vira alvo da direita de Israel Leia mais trechos da conversa do Icarabe com o cartunista Carlos Latuff
Icarabe: Conte mais, como foi sua visita à Palestina em 1999? Carlos Latuff: Entrei por Israel. Passei por Tel Aviv, Jerusalém, Ramallah, Nablus e Hebron. Tive a oportunidade de conversar com pessoas comuns, ver manifestantes, pacifistas, tanto palestinos quanto israelenses. Tive uma boa idéia de como vivem as pessoas na Palestina sob ocupação israelense. Icarabe: Você foi acusado de ser um inimigo de Israel e dos judeus. Como os israelenses que você conheceu em Israel encaram esse tipo de estratégia da direita, que liga anti-sionismo a anti-semitismo? Latuff: Antes de ir para a Palestina, eu já colaborava com um grupo israelense chamado Gush Shalom. Na viagem, tive a oportunidade de me encontrar com eles. Eles também são vítimas dessa estratégia da direita. O judeu crítico às políticas de Estado de Israel não é chamado de anti-semita, mas de ‘self-hating jew’ (algo como ‘judeu que se odeia’). Até há termos piores, como chamar o judeu de esquerda de ‘kapos’, que eram os guardas judeus de campos de concentração, os prisioneiros que eram escolhidos para serem guardas. Eles serviram dentro dos campos para ter um tratamento melhor, eram traidores. Chamar alguém de ‘kapo’ é uma coisa muito pesada. Então, esses judeus que querem uma solução pacífica, também são perseguidos. E olha que o Gush Shalom não é nenhuma organização radical, é anti-sionista, mas não é radical. Existem grupos anarquistas que são bem mais radicais. Mas mesmo assim são perseguidos. O líder é Uri Avnery e sofre vários tipos de acusações. Não sei como essa gente não sofreu atentado. Icarabe: Você começou a se dedicar com mais força à causa palestina em 1999. Desde então, até hoje, já tinha sofrido o tipo de ameaça que veio do Likud? Latuff: Ameaças não são incomuns, mas são feitas por indivíduos em páginas da internet, em páginas pessoais, fóruns de discussão. Vindo de uma página diretamente associada a um partido político de direita é a primeira vez. Essa página não é oficial do Likud, mas associada ao partido, feita por membros do Likud, ou seja, que reproduz seu pensamento. Algumas pessoas tentam reverter a questão, virar o jogo. Falam que o site não é oficial do Likud. Mas é como uma organização para-partidária. Por exemplo, tem o PFL e a juventude do PFL. A juventude do PFL pode não representar oficialmente o partido, mas ela é fruto, um reflexo desse partido. O pensamento dela é um reflexo do partido, não existe diferença. Icarabe: Na imprensa brasileira, que tipo de cobertura você enxerga? Latuff: O que você não consegue ver são opiniões equilibradas sobre este assunto. Geralmente na mídia brasileira, não há ninguém que faça um contraponto aos argumentos de que Israel estava se defendendo, de que a culpa é sempre dos árabes, dos palestinos, do Hizbollah. Até porque as pessoas ficam amedrontadas, pois existe um patrulhamento ideológico de judeus de direita que é um negócio inacreditável. Você não pode falar um ‘ai’ contra o Estado de Israel, pois existe uma patrulha para te chamar de anti-semita, te chamar de nazista. Isso é aqui no Brasil e em todo o Ocidente. Na América Latina, quem tem culhão para falar o que acontece são Chávez e Castro. Mesmo o governo brasileiro, quando houve a morte de brasileiros vítimas de bombardeios israelenses no Líbano, soltou uma nota através do Itamaraty culpando o Hizbollah. Agora, eu pergunto: foi bomba do Hizbollah que matou aquela família? Não, foi bomba de Israel. Israel usa a mesma desculpa do estuprador. O cara estupra a mulher, chega à delegacia e diz, ‘olha, doutor, é o seguinte, ela estava usando uma sainha curta, ela pediu para ser violentada’. Então, não tem jeito, a culpa é da vítima. Israel matou mais de mil pessoas e a culpa é do Hizbollah, é sempre assim. E o Brasil, seu Itamaraty, não teve culhão para fazer um ataque veemente. O Itamaraty não tem essa coragem, é provável que chamem o Lula de anti-semita. Icarabe: Qual a magnitude dessas reações? Sua amiga em Israel falou alguma coisa e deu idéia do que significa ser alvo de um site como o Likudnik? Latuff: Não a surpreendeu. Ela disse ‘se você estivesse aqui e visse as notas que saem nos jornais, na televisão e no rádio, as pessoas falam disso para baixo, querem que Israel jogue uma bomba nuclear no Irã’. As vozes mais reacionárias são as que se levantam e que se fazem presente nesses fóruns. Falou, inclusive, que ela, como militante, foi presa algumas vezes por participar de manifestações. Em uma ocasião ela foi levada para uma delegacia e o policial chegou e disse: ‘olha o trabalho que vocês me dão’, e mostrou os papéis na mesa dele. ‘Sou obrigado a preencher um monte de papéis por sua causa. Fique sabendo você que estivéssemos em outros países, a gente já teria resolvido isso com um tiro na cabeça’. A coisa é nesse nível. Icarabe: E essa ameaça o surpreendeu? Latuff: A mim não me surpreende. É surpreendente porque está registrado em um site associado a um partido, mas esse pensamento belicista, de confronto, essa coisa de tentar eliminar a voz dissidente não me surpreende vindo de Israel. O Estado de Israel em si não precisa se preocupar com isso, pois existe um patrulhamento feito por judeus de direita em todos os países do Ocidente que cumpre esse papel. Ele não precisa cuidar disso. O governo de Israel dificilmente vai emitir uma nota pública com o mesmo teor do site. Isso seria uma queimação de filme. Existe uma diferença entre Israel e o Irã. O presidente do Irã fala muito, fala pelos cotovelos. Israel não é assim, é mais ‘low-profile’. Trabalha em silêncio, nos bastidores. Você não vai ouvir o (Ehud) Olmert dizer ‘devemos varrer o Irã do mapa’. O sonho dele é esse, mas ele não vai dizer porque ele não é bobo, ele sabe como trabalha a mídia, então ele fica na dele. Icarabe: Você acredita que ganhou certa notoriedade com a direita de Israel depois de participar do concurso de cartuns do Irã sobre o holocausto? Latuff: Os desenhos que mandei para o concurso no Irã não são negações do holocausto. Não estou interessado em fazer discussões se o holocausto existiu ou não existiu. Para mim, não é difícil acreditar que os nazistas tenham massacrado pessoas, pois ao longo da história houve incontáveis massacres, de hutus e tutsis, de chineses, de armênios. Mas criou-se uma áurea de massacre especial. O holocausto é uma coisa que não tem comparação. Ainda que durante a Segunda Guerra, além de judeus, tenham matado outros segmentos, como russos, Testemunhas de Jeová, gays, deficientes mentais, eslavos, matou muita gente, mas há a idéia de que o holocausto judeu foi uma coisa especial. É um tabu, você não pode falar nada sobre isso. Você pode fazer cartuns e piadas sobre o islã, que tem dogmas religiosos, mas você não pode fazer sobre o holocausto, que é um evento histórico. O Norman Finkelstein escreveu sobre isso no seu livro “A indústria do Holocausto”. Tive dois objetivos: primeiro, questionar os dois pesos e duas medidas do Ocidente em se tratando das charges do holocausto e as charges do islã. Aos olhos do Ocidente, não há problema algum você esculhambar profetas muçulmanos, tudo bem, é aceitável, liberdade de expressão, tá tranqüilo. Agora, se você usar o mesmo princípio para fazer charges sobre o holocausto, você é um fascista, um nazista. Achei uma boa oportunidade para questionar isso. E também, em segundo, para tratar de holocaustos modernos, como o palestino, porque, mesmo que não haja câmaras de gás na Cisjordânia, existem outras maneiras de se matar pessoas sistematicamente que não aquelas usadas pelos nazistas. A minha participação nesse concurso foi visando esses dois aspectos. Mas, evidente, é mais uma desculpa para que essas pessoas possam tentar me atacar. Mas esse pessoal da direita me conhece há muito tempo. Um tempo atrás, fiz uma caricatura que era o Ariel Sharon beijando o Hitler na boca. Publiquei esse desenho no CMI de Israel e houve uma série de problemas por causa dessa publicação. O dono da empresa que hospedava o CMI recebeu um telefonema pessoal de gente ameaçando ele de morte caso não tirasse o site do ar. O site foi tirado do ar. O editor do site, o Brian Atinsky, teve a polícia entrando na sua casa enquanto estava dormindo, o tiraram de pijama, levaram o computador e depois o levaram à delegacia para prestar depoimento, com todo tipo de intimidação que você pode imaginar. Ele respondeu processo de incitamento. Icarabe: E que significado você vê em seu trabalho ser um “perigo” à segurança de Israel? Latuff: Se eu estivesse em Israel, provavelmente eu já teria sido preso. Não sei se eu sou um caso de segurança nacional para Israel. Acho que Israel não tem com o que se preocupar, porque tem uma das maiores potências militares do planeta, a maior como guarda-costas, não tem que temer absolutamente nada. Tem armas nucleares. O problema não é uma ameaça à segurança pública, é uma ameaça à idéia que se construiu de que Israel é sempre a vítima. É por isso que se construiu esse texto, pois eles sabem que essas charges e cartuns têm um alcance muito grande, uma amplitude muito grande e chegam a audiências no mundo todo. Elas revelam o que não é mostrado pelo mainstream mundo afora, mostram um outro lado da moeda. Isso é muito incômodo, porque isso é um contraponto ao argumento de Israel. Não pode haver contrapontos aos argumentos de Israel, isso não é possível. Só pode haver uma opinião a respeito de Israel e essa opinião tem que vir de Israel. Qualquer pessoa que tenha uma opinião contrária e diversa das políticas israelenses precisa ser desmoralizada, precisa ser silenciada e até morta, mas de alguma forma precisa ser neutralizada. Ou através de campanhas de difamação, de censuras e processos judiciais, ou você simplesmente liquida a pessoa.