Mostra promovida pelo Icarabe expôs sociedades árabes e seus dramas
A mostra, parceria do Icarabe com o Instituto do Mundo Árabe de Paris e o MIS, destacou a produção recente de diretores árabes; um dos destaques foi o debate sobre o filme "Beirute Ocidental"O pai faz a barba enquanto conversa com o filho. Lá fora, a guerra civil libanesa estava em seu começo. Para alguns, seria passageira. O filho, um adolescente que ainda não deixou completamente o terreno da infância, quer provocar o pai por provocar, discordar por discordar. De uma maneira inocente, irônica. O pai, apesar da violência que cresce, recusa-se a deixar o país. Quer ficar no Líbano, um território que havia sido criado nos estertores da Primeira guerra Mundial e ainda carecia de uma identidade. Em um momento da conversa, o pai diz ao filho que não deveria acreditar na divisão que separava facções libanesas, mas sim orgulhar-se de sua identidade árabe. O filho, irônico, responde: “Mas não sou árabe, sou fenício”. Este é apenas um dos temas abordados, de forma sutil, por Ziad Doueiri em seu “Beirute Ocidental”. E como no diálogo destes pai e filho de família muçulmana, durante uma semana, temas complexos da sociedade e política árabes foram expostos no Museu da Imagem e do Som, com as sete obras cinematográficas premiadas nas sete edições da Bienal internacional de cinema de Paris trazidas pelo ICarabe ao Brasil. “Tempo de Espera”, exibido na última quarta-feira, encerrou a Mostra. Angústias individuais, do amor, da relação com familiares, a vivência durante a guerra foram temas que se espalharam pelas telas durante a semana de exibição. O DEBATE “BEIRUTE OCIDENTAL” Na terça, como parte da mostra, o debate “Perspectivas do Cinema Árabe Contemporâneo” concentrou sua análise no filme “Beirute Ocidental”. As convidadas não puderam deixar de ignorar o quão tangível foi o retrato que Zaid Doueiri fez do início da guerra Civil libanesa, em 1975. Para árabes ou não, a proximidade com as angústias daqueles libaneses, que viam, de uma hora para outra, suas esperanças, sonhos e ilusões desvanecer sob um fogo cerrado e uma divisão que duraria os 15 anos seguintes, não passou incólume. As cineastas Rita Buzzar e Rachel Monteiro e a professora de literatura Safa Jubran compuseram a mesa. Rita abriu as falas. E destacou dois pontos de “Beirute Ocidental”. “Em primeiro, o assunto, a guerra civil libanesa, um problema que o país sofre a partir de 1975. Em parte também porque tenho origem libanesa e por causa dos recentes ataques ao Líbano. Uma segunda questão que chamou minha atenção foi a fotografia, o diretor faz um cinema de fotografia. Gostei muito do diretor”. Rita destaca que Ziad trabalhou na equipe de fotografia do diretor Quentin Tarantino e, nesse aspecto, “Beirute...” lembra a atmosfera dos anos 70 que vê-se nos filmes do estadunidense. “Em Tarantino, vemos uma violência estilizada, a violência de gangues e de marginais. A violência deste filme é uma violência real, mas com momentos de ternura. A ternura e a vida insistem em permanecer. Tudo acompanhado por cenas documentais que são colocadas de uma forma muito sutil, sempre acompanhas por uma música”. Rachel também dividiu sua análise em dois pólos. Por um lado, viu uma vitalidade que acompanha de alguma forma todos os personagens da história. Em um outro pólo, enxergou perseverança, principalmente no pai de Tarik, o adolescente que vive de forma inocente aquele início de conflito. “Ele é firme e coloca: ‘Eu quero ficar, aqui é meu lugar e é aqui que vou lutar’”. AQUI, ONDE? Riad, o pai, escolheu ficar no Líbano, acreditava que era coisa correta a fazer. Mas o filme trouxe dúvidas quanto ao que significa a identidade libanesa, o que era o Líbano e o que era ser árabe dentro do Líbano. Safa Jubran levou sua análise para longe de técnicas cinematográficas ou sequer para o lado literário. Falou dos dezenove anos que viveu no Líbano, onde, com a mesma idade dos personagens viveu as mesmas experiências dos personagens adolescentes que vivenciaram o início da guerra civil. “Eu tinha os mesmos anseios dessas pessoas, mas rapidamente tivemos que crescer”. Para Safa, a própria história do Líbano é complicada, “podemos até dizer que a identidade do Líbano é não ter identidade”. Mas ela faz uma ressalva. Até antes da guerra, as diversas identidades estavam diluídas na sociedade libanesa e os confrontos jamais indicaram que uma guerra civil se abateria sobre o país. “Com a guerra progredindo, as identidades, que, de certa forma, estavam diluídas no território foram se fortalecendo e encorpando. Quando estava lá, as mulheres muçulmanas não usavam véu. Nos 19 anos que vivi lá, não vi um véu. Quando mudei para o Brasil, vi uma mulher libanesa usando véu pela primeira vez em um noticiário de televisão sobre a guerra civil”. Safa acredita que, em certo momento, a falta de identidade do país levou à guerra civil, mas o fator preponderante não foi esse. O drama libanês é que, a partir de 1975 isso ficou claro, muitos países fizeram sua guerra naquele território, os palestinos, os israelenses, os sírios e os estadunidenses. “Lá, a guerra foi de outros. E um dos aspectos dessa guerra, e não seu principal, foi a diferença religiosa, que é sempre delicada. Mas essa divisão do Líbano acabou com a unidade libanesa com a qual muitos sonhavam”. E para a professora que viveu os primeiros 19 anos de sua vida em Beirute, a guerra por lá ainda não acabou. “Na época, todo mundo achava que ia ser um conflito passageiro, mas virou uma guerra que, eu acho, ainda não acabou. No filme, pudemos ver uma série de coisas que são faladas ainda hoje”. Os sete filmes da mostra procuraram discutir e expor através da linguagem cinematográfica o que é ser árabe. E como a guerra civil retratada em “Beirute Ocidental”, os outros filmes trouxeram dramas sociais dos países e sociedades árabes, um esforço para entender aquele que é pintado como o outro, mas na verdade está ao nosso lado, pois compartilhamos dramas semelhantes e não menos dolorosos. Como disse Rachel sobre os personagens de “Beirute Ocidental”, “o diretor pontua as coisas de uma forma que mostra que a força do indivíduo é maior que a catástrofe. Ali, ele coloca uma série de assuntos, como a descoberta da adolescência, a relação com a religião. O que cala fundo é a dignidade individual de cada um em meio a toda aquela devastação, e isso passa por ser árabe, uma cultura milenar”.