País vive contradição entre moderno e tradição
Mesmo sob um regime autoritário há 26 anos e com a vontade por parte dos iranianos por maior abertura, governo islâmico ainda é aceito e uma mudança por meio de uma democracia no modelo ocidental é descartada. No entanto, avanços ainda são pequenos e poder político e econômico permanece nas mãos da elite religiosa, enquanto país continua com péssima distribuição de rendapor Roberto Cattani No primeiro dia em Teerã, Aline, minha mulher, e eu pegamos um ônibus, ainda bem apreensivos, tentando fazer tudo certo, como sempre acontece quando se chega a países desconhecidos e exóticos. Subimos juntos, pela porta da frente, para pagar a passagem para o motorista/cobrador. E levamos uma bronca (incompreensível, mas clara), porque Aline deveria ter subido pela porta de trás, já que nos ônibus iranianos vigora um rigoroso apartheid de gêneros. Até aí, tudo bem, estávamos preparados para este tipo de dificuldades iniciais num regime autoritário. O que realmente nos surpreendeu foi que descendo do ônibus, apanhamos uma lotação (que chamam de savari, táxi compartilhado), um carro normal, do tamanho (e da época) do Chevette, e nele ficamos empilhados, homens e mulheres, num aperto que beirava a promiscuidade, sem qualquer problema ou discriminação. Há muitas contradições no Irã atual, depois de 26 anos de Revolução Islâmica. Nesse caso, há a impossibilidade de estender ao transporte coletivo particular, tão arraigado aos costumes do Oriente Médio, as proibições aplicadas ao transporte público — e a completa insignificância, na mentalidade popular, das restrições exageradas aplicadas pelo regime. Mas há contradições em todos os níveis de realidade da República Islâmica do Irã hoje: entre modernidade e história, entre tradição e inovação, entre secularismo e religião, entre teocracia e democracia, entre economia assistencial e capitalismo mercantil. Muitas delas claramente perceptíveis, mesmo pelo viajante desprevenido, outras mais complexas e perigosas, disfarçadas pelo próprio regime. Para falar do Irã e de suas contradições, vamos começar por um aparente paradoxo: apesar da imagem ditatorial que ganhou o regime dos aiatolás, podemos considerar o processo eleitoral iraniano o mais democrático em vigor no Oriente Médio, com a exceção talvez do Líbano. Há votações democráticas, que elegeram como Presidente durante duas eleições seguidas (1997 e 2001) um candidato extremamente popular por representar a oposição ao regime, há partidos de direita e esquerda (islâmica), há um Parlamento eleito, há debate político e reformas políticas vindas do próprio regime. Até o regime teocrático dos aiatolás, embora desgastado depois de 25 anos no poder e cada vez mais contestado, ainda goza do consenso da grande maioria dos iranianos, que sem dúvida gostariam de uma maior abertura e tolerância, mas não trocariam o sistema atual por outro (uma democracia no estilo ocidental, por exemplo). Ficou bem claro, em minhas conversas com iranianos, jovens e adultos, que a fé predomina sem ser debilitada pela opressão religiosa. Por outro lado, trata-se de um regime autoritário e brutal, que reprime duramente qualquer oposição mais extremista ou esclarecida, que aboliu muitos direitos, inclusive a liberdade de expressão e de imprensa, que controla e vigia os cidadãos, e que impõe restrições políticas, sociais e morais à população nem sempre condizentes com o Corão e a Shari’a (a lei tradicional islâmica). Khomeini autorizou explicitamente a violação da lei islâmica nos casos em que a prioridade era a preservação do regime e da República Islâmica, revelando o pragmatismo dos líderes da revolução. O famoso xador preto imposto à força às mulheres depois da Revolução é, aliás, mais um exemplo: não é de forma alguma uma prescrição do Corão ou da Shari’a (que só prescrevem um lenço para cobrir o cabelo e certo pudor de comportamento), mas é antes uma reação extremada à permissividade excessiva (aos olhos dos clérigos xiitas) do mundo moderno, e à modernização forçada imposta pelo xá Mohammed Reza Pahlavi. É a mesma reação excessiva que motiva os fundamentalistas islâmicos, sejam egípcios ou filipinos, embora não haja de fato nenhuma simpatia entre os aiatolás iranianos e os fanáticos barbudos no resto do mundo islâmico, que são sunitas. É importante salientar que a Revolução Islâmica iraniana eclodiu exatamente no mesmo ano — 1979 — em que nascia no Paquistão o fundamentalismo armado e militante (o chamado Takfirismo salafita) que venceu os soviéticos no Afeganistão e se alastrou em seguida pelo mundo com Osama bin Laden, seus seguidores e imitadores. Há duas interpretações do Islã no Irã e no mundo — afirmou já no final de seu mandato o último presidente iraniano, o progressista Mohammad Khatami. “Uma corrente apóia a democracia e o desenvolvimento dentro da lei religiosa, e outra, arraigada nas camadas sociais mais obsoletas, nega os direitos dos cidadãos, favorece o atraso e acaba criando terroristas”. Khatami comparou as posições de alguns dos aiatolás mais conservadores àquelas dos Talebãs e de al-Qaeda, cujos excessos “forneceram aos países prepotentes e belicistas o pretexto para atacar o mundo muçulmano”. O regime iraniano, apesar do anti-americanismo, nada fez para ajudar os Talebãs nem durante o período em que dominavam o Afeganistão, nem durante a invasão norte-americana. E tampouco podemos acreditar na propaganda do governo Bush quando fala de ligações entre os aiatolás e a al-Qaeda, que já foi definida como “inimigo” pelo também ex-presidente Rafsanjani. “O que estão fazendo aqui?”, nos perguntavam às vezes os iranianos. Não acreditam que somos o Eixo do Mal, como afirma Bush?”. Parece haver muita mágoa em relação à propaganda negativa que caracteriza há anos o Irã e os iranianos. Um povo geralmente civilizado e gentil, na nossa experiência, que não pode e não quer ser identificado com o extremismo do regime que o oprime. E também muito consciente do grande passado e da grande civilização que herdou. Em nenhum momento, durante um mês de estadia, nós sentimos hostilizados, ameaçados ou intimidados, nem mesmo pela polícia, ou percebemos qualquer risco. * O Irã não faz parte do conjunto de países que forma o mundo árabe. Mas, apesar de a origem desse povo ser principalmente persa, as culturas iraniana e árabe se cruzam em muitos pontos, já que o Irã foi responsável por importantes interações políticas, religiosas e de costumes com países vizinhos, como o Iraque. Interações estas que acabaram por colaborar na forma tomada pela cultura conhecida como árabe. Os assuntos levantados nas discussões culturais iranianas, portanto, têm forte relação com aspectos e costumes do mundo árabe.