Para Said, Estado binacional na Palestina era única solução possível
Intelectual disse em 2002 que um dos desafios era tornar a narrativa do conflito mais complexa e não resumi-la a uma oposição entre dois lados que estavam destinados a se destruir.Além de conhecido por ser o pioneiro no que seria denominado estudos pós-coloniais, Said ganhou fama por ser um dos principais ativistas na causa palestina. A família de Said – tios e primos - foi expulsa da Palestina em 1948 quando ele vivia com os pais no Egito. Ele lembrava da terra natal como um lugar de diversão, em que passava as temporadas de férias. De 1948 a 1967, a Palestina para ele era uma questão humanitária, uma tragédia de um povo que se resumia a um infortúnio. Ele pouco sabia sobre as causas do sofrimento do povo palestino refugiado. Na época pré-1967, visitava alguns campos de refugiados no Egito com uma tia que fazia trabalho voluntário. Said só se aprofundou na questão quando estava nos Estados Unidos e pôde olhar para a situação de um ponto de vista exterior. Milton Hatoum, escritor e um dos autores do livro “Edward Said: trabalho intelectual e crítica social”, a ser lançado no dia 13 de dezembro pelo Instituto da Cultura Árabe, destaca que Said foi um intelectual privilegiado, pois soube dialogar com e criticar tanto o Oriente quanto Ocidente. “Ele era um filho do exílio, falava a língua árabe e teve uma trajetória que contemplava tanto a cultura do árabe quanto a do ocidental”. Hatoum também destaca que, por ter nascido na Palestina e portar cidadania estadunidense, pôde observar o problema do pós-colonialismo pelos dois pontos de vista, o árabe e dos Estados Unidos. DEPOIS DE 1967, COMEÇA SUA VIDA POLÍTICA A partir de 67, com a invasão dos territórios ocupados, Said entra de cabeça na política e vira de fato um ativista pelo fim da ocupação. Em 77, entra para o Conselho Nacional Palestino. Para Ali El-Khatib, brasileiro filho de libaneses, diretor do Instituto Jerusalém e um dos principais ativistas da causa palestina no Brasil, “Said deu ao mundo e levou ao mundo a necessidade de justiça, provocou a discussão sob um olhar diferenciado sobre a discriminação, o preconceito e o racismo que o Ocidente pratica com o povo palestino”. Ali destaca em Said a sua capacidade de formular e reforçar um sentimento que na verdade já estava presente em grande parte dos imigrantes árabes. “Meu pai ensinava para a gente, contava não só histórias do Líbano, mas também da Palestina. Ele dizia que para você entender e conhecer o que era a identidade palestina, você tinha que entender o sofrimento do povo palestino”. Para Said, que estudou durante grande parte de sua vida como a construção da representação do outro é um importante passo para a dominação desse outro, a percepção que os dois povos têm de si é essencial no conflito entre palestinos e israelenses, e em 2002, para Said, essa percepção era excludente. Ao documentário “Selves and Others: a portrait of Edward Said”, de 2002, ele falou que existia uma narrativa sendo construída em ambos os lados do conflito. “Do lado palestino, os israelenses são fonte de destruição e para os árabes é difícil vê-los como vítimas de perseguição (no caso, o holocausto). Do lado israelense, os palestinos são inferiores, ‘negros’”. Para Said, as diferentes narrativas, de um lado a naqba (tragédia) e do outro a independência de Israel - mas ao "custo da total destruição do povo palestino", ressaltava ele - impediam a resolução do conflito. “O que eu queria fazer como intelectual era tornar a narrativa mais complexa para ambos os lados, e não aceitar que o problema pode ser visto através de uma linha e que no fim está a exterminação de um dos lados”. No caminho de desmistificar o discurso construído de ambos os lados, Said quase sempre se viu isolado. Ferrenho crítico das políticas de Israel e, principalmente, do apoio sionista que vinha dos Estados Unidos, ele foi atacado pela extrema-direita norte-americana. Said também não poupava o lado palestino e era um grande crítico da atitude da Autoridade Palestina e de Yasser Arafat na negociação de paz. Após a assinatura do acordo de Oslo, Said rompeu com a AP e Arafat, pois para o intelectual, o crime do líder político não foi assinar Oslo, mas fazê-lo sem consultar seu povo e lhe dar uma escolha. “Oslo provou ser um fracasso, não falava de assentamentos, do fim da ocupação, de soberania, da questão das águas, pois a maioria da água de Israel sai da Cisjordânia. Para mim, ali se provou que um Estado palestino autônomo é uma impossibilidade geográfica. O Estado binacional é a única solução”. O problema para Said era montar um discurso libertador para os palestinos, mas que incluísse os israelenses. Para ele, dois povos que já estavam tão entrecruzados não podiam mais ser separados, cultural ou territorialmente. O PAPEL DO INTELECTUAL É ATACAR O PODER No caminho de desmontar os consensos de ambos os lados, Said demonstrava aquilo que acreditava ser o papel do intelectual. Para ele, um pensador jamais deve legitimar o poder. “O papel do intelectual é questionar, incomodar pessoas, provocar pensamento”, disse no documentário de 2002. “Said teve uma grande competência intelectual. Hoje sua influência vai do Brasil até a China. Influencia mesmo a juventude israelense, que mesmo sem concordar, lê a obra de Edward Said”, diz Ali El-Khatib. Já Hatoum acredita que ele foi uma “espécie de humanista, raros na segunda metade do século XX”. E a partir de 67, com sua militância na causa palestina, “procurou construir uma perspectiva de paz que contemplasse os dois lados”.