Revista da USP aprofunda questões sobre culturas do Oriente Médio
Número dois da Revista Tiraz, da USP, traz artigos baseados em trabalhos de Pós-Graduação recebidos de todo o Brasil, que aprofundam e mostram uma cultura árabe muito mais próxima das problemáticas que afligem outras culturas.No próximo dia 23, a USP, a Casa das Rosas e o Instituto da Cultura Árabe promovem o lançamento da Revista Tiraz (com cerimônia oficial na Casa das Rosas). A publicação – parte do Programa de Pós-Gaduação em Língua, Literatura e Cultura Árabe da USP-, com cerca de 300 páginas, dá exposição a textos e trabalhos desenvolvidos por estudiosos de todo o Brasil, de alguma forma relacionados aos trabalhos desenvolvidos nas linhas de pesquisa da Universidade. No entanto, esclarece Michel Sleiman, diretor editorial da Tiraz, o objetivo da publicação não é ser uma revista étnica e nem está preocupada em falar apenas dos árabes, mas de problemas que se apresentam a todas as culturas. Exemplo disso é o artigo do lingüista Roman Jakobson, “Acerca da poesia tcheca particularmente em relação com a russa”, a primeira tradução integral para uma língua latina. A revista Tiraz trabalha com alguns eixos temáticos. Existe um braço da lingüística, outro dos estudos literários – que englobam crítica e teoria – e um terceiro que se refere à filosofia. Nesse último, as discussões giram em torno de amplos campos de estudo, como estruturas mentais, religião e suas formas de organização, como ela se liga à política, artes, em resumo, formas de pensamento. Michel explica que dentro da Pós-Graduação existe uma preocupação em trabalhar a literatura árabe em categorias semelhantes a outras literaturas, como a russa, a armênia ou a francesa. “Quais são essas preocupações? O que é um narrador. Em uma história contada, o que é verdade e ficção. O que é retrato social. O que é inquietação filosófica. Então, podemos ver essas preocupações tanto em um romance escrito por um sudanês como por um inglês, tanto por um brasileiro como por um sírio ou libanês. Não estamos desligados dos problemas de nossa cultura brasileira. É muito comum entre nossos alunos o estudo da relação das culturas do mundo árabe com o que chamamos de Ocidente”. O primeiro artigo, “Perambulações: presença árabe na literatura brasileira”, de Sabrina Seldmayer, procura investigar os traços que a cultura oriental deixa nas produções literárias de descendentes de imigrantes árabes. Logo no começo do artigo, Sabrina destaca que Waly Salomão, autor do vídeo “Nomadismos”, “...passara por Manaus, cidade de fronteiras líquidas, ilha flutuante da ficção de Milton Hatoum e talvez um dos lugares mais emblemáticos para falarmos de uma literatura brasileira imbricada de ressonâncias árabes. Se lá os rios Amazonas e Negro durante um longo curso não se misturam, na produção literária brasileira, uma constelação de escritores ‘anfíbios’ – expressão criada por José Paulo Paes para justamente descrever a ascendência de Raduan Nassar – faz-se presente e teima em colocar pertinentes questões tanto para os estudos literários como para os estudos culturais”. Do Brasil - dos árabes que não são turcos nem comerciantes e que não vivem amores lascivos, mas vivem um sentimento de exílio que passa pelas formas que se constroem os laços de família -, o artigo seguinte, de Gláucia Renate Gonçalves, “Espelho, espelho meu: a literatura árabe-norte americana”, discute a contribuição dos estudos culturais e do multiculturalismo para o estudo da literatura de imigrantes nos Estados Unidos. O ensaio também aborda questões como identidade, diferença e diversidade dentro das classificações que se faz da literatura de imigrantes no país. A revista segue por uma viagem que passa pelo Líbano e a literatura em francês feita por árabes, e pelo Marrocos, com os cadernos de Delacroix pela primeira vez publicados integralmente. Já Leon Kossovitch, em “Vertentes de figuras: o planalto iraniano”, analisa as formas de representação que se formam na região do Oriente Médio, mais especificamente entre os persas, influenciadas tanto pela figuração constantinopolitana, dos gregos, quanto por cortes locais dos persas. “A revista ela trabalha o mundo árabe e o mundo islâmico num amplo sentido, todo o Oriente Médio, o Alandalus, África, e mesmo aquele Oriente Médio mais a leste, a parte do Irã. E os temas acabam sendo isso, tudo que é ligado à língua, às literaturas que circulam nesse mundo geográfico e a questões mais antropológicas, sociais, de arte, da cultura no amplo sentido do termo cultura”, explica Sleiman. A passagem pelos textos da Tiraz assustam não pela distância ou pelo exótico das culturas ali analisadas, mas surpreendem pela proximidade dos problemas colocados com as culturas chamadas ocidentais. Uma complexidade de problemas e uma amplitude de conhecimento que geralmente a opinião pública do chamado Ocidente nem pensa existir. Os conflitos que hoje assolam a região, a ocupação da Palestina, a invasão do Iraque e a pressão que se exerce sobre países como o Irã e a Síria colocam o Oriente Médio no foco e atrai a atenção de todo o mundo. No entanto, para Michel, isso não significa uma vantagem para os estudos sobre a cultura dos povos da região. Pelo contrário, atrapalham. “Hoje, o que se veicula do mundo árabe é uma casca, problemas emergentes, do momento, que envolvem questões territoriais. Há o problema da Palestina, a insistência em dizer que existe um confronto entre Oriente e Ocidente, o que é um pouco forçado. Então, para alimentar isso, pegam episódios que exploram essa imagem. O cara que botou uma bomba, o cara que fez um protesto contra a charge. Fica uma imagem bélica, um espírito de luta e de guerra, e isso é um chavão, um preconceito, uma imagem pré-formada porque interessa a determinado setor”. O professor de Letras diz que o que atrapalha o cientista humanista, nesse casos, é o imediatismo provocado pela demanda de informações. Um problema como política no mundo árabe deve ser estudado rapidamente para oferecer respostas imediatas. Sleiman explica que a Tiraz tenta relativizar esse imediatismo, mas não há como evitar uma análise que evite completamente os conflitos e as guerras na região. “As pessoas olham para essa revista buscando isso, e a revista acaba causando um impacto porque tem muitas mais informações e aí há aquele estranhamento de puxa, o mundo árabe não é só bailarinas e xeiques vendendo petróleo (...) Meu horizonte é que as pessoas olhem para o mundo árabe com a inquietação que olham para o mundo europeu. Ninguém vai para a França para dizer ‘Oh, que maravilha esses queijos franceses’. Não queria que as pessoas olhassem para o mundo árabe e dissessem ‘que linda essa mesquita’ ou ‘que horrível essa burca cobrindo essa mulher’. Acho que o trabalho deve caminhar para isso”.