O “Coração das Trevas”: de Tel Aviv a Hebron

Sex, 14/03/2014 - 12:20
Como parte das manifestações pelos 20 anos do massacre da Mesquita de Abraão (a Cova dos Patriarcas), no fim de fevereiro, ativistas israelenses pregaram ordens de fechamento em lojas de Tel Aviv. Queriam rememorar o cerco realizado no centro de Hebron após o massacre de 29 palestinos levando ele simbolicamente à “Bolha”. Era um aspecto de uma das facetas mais cruéis da ocupação na cidade secular, orgulho do projeto sionista.

Certa vez, estava em Palestina/Israel e conversava com um ativista israelense que estava morando fora, na Inglaterra. Perguntou onde eu estava. “Hebron”, eu disse. “Ow, the heart of darkness…”, retrucou.

“Coração das Trevas” (Heart of Darkness), livro de Joseph Conrad, conta a jornada narrativa pela selva africana de Marlow em busca do brilhante agente imperial Kurtz, um negociante de marfim. É uma viagem ao centro da loucura da empresa imperial inglesa. Mais tarde, o texto inspiraria o retrato da loucura da guerra dos EUA no Vietnã, em Apocalipse Now, de Francis Ford Copolla.

Hebron descrevi em um post interior. Ali, estão as vozes dos palestinos e algo sobre a parte ocupada pelos israelenses, palco de um cotidiano surreal inacreditável de opressão e controle. Algumas dezenas de postos de controle monitoram o movimento onde vivem cerca de 10 mil palestinos, permeados por cerca de 600 colonos e 1500 soldados alocados para esta parte da ocupação.

Marlow, o narrador de “Coração..”, começa história para o grupo de senhores que o acompanham em um iate no Tâmisa: “A conquista da terra, que na maioria das vezes significa tomá-la daqueles que têm uma compleição diferente ou narizes levemente mais achatados do que nós, não é algo bonito quando se analisa a fundo. O que redime é a ideia apenas. Uma ideia que a apoia; não é um fingimento sentimental, mas uma ideia; e uma crença altruísta na ideia – algo que você pode construir, diante da qual dobrar-se, e a qual oferecer um sacrifício…” (trechos são tradução livre deste link).

A “ideia” pode ser vista no Território. Em 6 de janeiro, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, falou sobre as negociações com os palestinos e citou Hebron: “’Nós não concederemos lugares que outros concederam no passado’, disse (…) citando Hebron e Bet El como exemplos de lugares fora dos blocos de assentamentos, mas que de qualquer forma são importantes para o povo judeu”, publicou o Haaretz.

Para comparação, declarações semelhantes foram dadas em 2010, quando estava na pauta a lei de deportação de crianças filhas de migrantes trabalhadores em Israel. “’O tema toca em duas coisas’, disse Netanyahu (…). “Uma é a humanidade, a outra é o Estado judeu e sionista”. E completou: “’Nós temos pequenas crianças que cresceram aqui e que foram à escola aqui. Eles são parte de nós. Nós estamos procurando formas de absorvê-los e tomá-los em nosso corações. No entanto, nós não queremos criar um incentivo. Nós queremos preservar a maioria demográfica judaica que permita manter um Estado judeu democrático’, declarou Netanyahu”. Nos 16 meses seguintes a março de 2011, 90 famílias foram deportadas.

No romance de Conrad, o lugar das trevas está ali, exótico, perigoso, excitante, corrupto, porque assim o fez o europeu. A jornada de Conrad, do mistério ao redor de Kurtz, dos primeiros relatos de que ele estaria doente, depois a suspeita de que esteja morto, até o encontro, é uma descrição da natureza e da dinâmica imperial. Edward Said vai mais longe. Ainda que crítico e menos apologista que outros autores de sua geração (talvez por sua origem polonesa), Conrad constrói a perspectiva de que o europeu tem a proeminência do poder e da narrativa, e elimina em ambos os campos o nativo.

Um trecho de quando Marlow começa a refletir sobre a trajetória de Kurtz mostra o que Said quer dizer com autor imperial: “… eu não estou tentando achar desculpas ou mesmo explicar – eu estou tentando explicar a mim mesmo sobre o – o – Sr. Kurtz – a sombra do Sr. Kurtz. Este fantasma iniciado vindo de Nenhum Lugar me honrou com sua confiança incrível antes de desaparecer totalmente. Isso porque ele podia falar inglês comigo. O Kurtz original foi educado parte na Inglaterra (…). Sua mãe era meio-inglesa, seu pai meio-francês. Toda a Europa contribuiu para o fazer de Kurtz”. (p. 102)

Said assim enxerga: “‘Coração das Trevas’ funciona tão efetivamente porque sua política e sua estética são, digamos assim, imperialistas (…) Porque se nós não podemos verdadeiramente compreender a experiência alheia e se devemos, portanto, depender da autoridade assertiva do tipo de poder que Kurtz transmite como o homem branco na selva ou que Marlow, como o outro homem branco, transmite como narrador, não há a necessidade de procurar alternativas, não-imperialistas. O sistema simplesmente as eliminou as fez impensáveis”. (p. 24, de Cultura e Imperialismo, edição de 1994 da Vintage Books).

A Ocupação de Hebron, o “Coração das Trevas” do Território, tem seus narradores críticos. Uma dessas fontes é o Breaking the Silence (BTS), ONG que reporta abusos cometidos pelo exército israelense nos Territórios Ocupados. Em 2011, entrevistei um dos fundadores e ativistas da organização, Yehuda Shaul, para o OperaMundi. Assim ele descreveu a missão do BTS: “Nossa sociedade deve ser confrontada com esses fatos. (…) A discussão oficial sempre foi: até que o conflito seja resolvido, a ocupação vai continuar. Nós combatemos essa ideia, pois acreditamos que é errado controlar uma população de 3,5 milhões de pessoas, mantida como refém, apenas para ter fichas de barganha nas negociações. A ocupação é um ato odioso feito por Israel e que precisa ser encerrado por Israel”.

A narrativa de Marlow, diz Said, quer ser redentora do projeto imperial, não destruí-lo. Yehuda admitiu que a premissa do BTS parte de que há uma visão otimista sobre a sociedade israelense. “As pessoas não sabem porque não são confrontadas com a realidade. Se fossem, agiriam diferente”.

Conrad faz o retrato vívido da derrocada de Kurtz: “…a selvageria achou ele logo cedo e o tomou em uma terrível vingança pela invasão fantástica. Eu acho que ela sussurrou a ele coisas sobre ele que ele não sabia, coisas que ele não tinha concepção até tomar conselho com sua grande reclusão – e o suspiro provou ser fascinantemente irresistível. Ecoou alto dentro dele porque ele estava oco por dentro…” (p. 120)

O BTS faz retratos sistemáticos de onde se perdem os israelenses. Aqui, reproduzo alguns da edição Testemunhos de Hebron 2008-2010, “anos nos quais a cidade tornou-se completamente absorvida no método de controle ao ponto de ser difícil perceber qualquer intenção de mudança em qualquer momento do futuro à vista”.

Testemunho nº 2, 2010, Ele foi em frente e fez o que fez:

Uma das crianças que não passavam pelo detector de metais?

Sim. E então ele (o comandante) foi em frente e fez o que fez.

O que foi isso?

(…) ele encarou a criança, ela estava próxima a um muro, ele permaneceu encarando ele, olhou para ele por um segundo, e então sufocou… segurou ele com o cotovelo. (…) Sufocou ele contra o muro. Então a criança ficou histérica,  o comandante gritava com ela o tempo todo, gritando e gritando com ela em hebraico, não em árabe. Então ele soltou o garoto, que levantou suas mãos para enxugar suas lágrimas, e o comandante avançou de novo! Então o garoto abaixou as mãos para parar de esfregar os olhos. Ele os deixou soltos nas laterais do corpo. Então os tapas começaram. Slap, slap, slap, slap… Incessantes batidas e gritos constantes. Então o garoto começou a realmente gritar, soava pavoroso, então pessoas começaram a chegar e juntar-se ao redor do posto de controle (…) Ele (o comandante) saiu e disse a eles que tudo estava bem (…) encarou o garoto dizendo: “Eles têm que ser tratados dessa forma”.  “… Era uma coisa insana, (…) eu lembro de pensar:’ eu esperei por esta situação por três anos. Do momento em que me alistei, o fiz para parar tais coisas, e aqui estou não fazendo nada, escolhendo não fazer nada. Estou bem com isso?’. E eu lembrava de pensar: ‘Sim, estou bem com isso. Ele está batendo em uma árabe e eu não estou fazendo nada sobre isso’”.

Testemunho nº 27, 2010, Você para de pensar que há um inimigo:

Você se recorda de uma missão de prisão específica?

Eu lembro de tudo. Lembro especialmente de estar desapontado… Na sua primeira missão você tem certeza que é uma grande coisa, e então é só besteira. Você entra na vizinhança de Abu Sneina (…) prende três crianças. Depois de toda a preparação do ‘procedimento de combate’ (…) é tudo para separara mulheres e crianças. O exército leva isso tão a sério que você acaba com um monte de crianças. Você os venda e os algema e leva eles até o veículo na estação policial mais próxima. E é isso. Isso pode durar meses, você nunca… você para de pensar que há terroristas, para de pensar que há inimigos; é sempre a criança ou os meninos ou um doutor. Você nunca sabe o nome deles, nunca falou com eles e eles sempre choram e cagam nas calças”.

Marlow, em determinado momento, parece ter uma revelação, e parece compreender o que Kurtz havia visto. “Oh, eu não estava tocado. Eu estava fascinado. Era como se um véu tivesse sido rasgado. Eu vi nesta face de marfim a expressão de um orgulho assombrado, de um poder sem compaixão, de um terror covarde – de um intenso e desesperançado desespero. Ele vivia sua vida novamente em cada detalhe do desejo, tentação e rendição durante o supremo momento do conhecimento completo? Ele gritou em um suspiro a uma certa imagem, a uma certa visão – ele gritou novamente, um grito que não era mais do que uma respiração: O horror! O horror!”. (p. 145)

Para Said, “toda a questão do que Kurtz e Marlow discutem é de fato o domínio imperial, de brancos europeus sobre africanos negros e seu marfim, da civilização sobre o continente negro primitivo. Ao acentuar a discrepância entre a ‘ideia’ oficial do Império e a realidade marcadamente desorientadora da África, Marlow traz desconforto ao leitor não apenas sobre a própria ideia de império, mas sobre algo mais básico, a realidade em si. (…) O que parece estável e seguro – um policial na esquina, por exemplo -  é apenas um pouco mais seguro do que o homem branco na selva, e requer o mesmo triunfo contínuo (mas precário) sobre toda as trevas que permeiam tudo, que no fim da história é mostrado ser a mesma em Londres e na África”. (p. 29)

Quando olhamos o Mediterrâneo em Tel Aviv damos as costas para a ocupação, para o Território, mas ele está lá. E ela, a ocupação, está lá. Há uma ligação entre a vida moderna e pulsante de Tel Aviv com o fechamento e as partes fantasmas de Hebron. Ambas nascem de um mesmo projeto, de uma mesma “ideia”. A  mão que quer manter a ocupação em Hebron é a mesma que prende e deporta crianças do sul de Tel Aviv.

Enquanto Marlow conta o fim da história, já sob o por do sol londrino, o Coração das Trevas parece deitar sombrio no rio Tâmisa. Talvez, ao olharmos para o Mediterrâneo, vejamos o mesmo. As trevas… o horror, o horror…

 

Do blog O Território, um olhar sobre o que acontece na Palestina/Israel