O discurso dúbio dos EUA sobre cessar-fogo em Gaza e a proposta indecente e irresponsável de Netanyahu
Após quase 50 anos de jornalismo, alguns assuntos ainda me causam preocupação. Entre os temas que têm dominado o pensamento, a sempre tensa situação no Oriente Médio é o que mais pulsa.
Desde 7 de outubro de 2023, o genocídio que avança de forma deliberada na Faixa de Gaza tem merecido atenção extra. Isso porque, lamentavelmente, veículos de imprensa existem à sombra de ávida busca por manchetes, novidades em termos de informação.
Passados mais 400 dias da resposta israelense aos ataques perpetrados por integrantes do Hamas, o extermínio que tem lugar no enclave palestino tende a cair no esquecimento, a exemplo do que aconteceu com a invasão russa à Ucrânia. Enquanto rendia audiência e lucros aos veículos de comunicação, a tragédia ucraniana tinha espaço garantido na imprensa. A catástrofe em Gaza trilha o mesmo caminho.
A cada 24 horas, o volume de informações na rede mundial de computadores quadruplica, ou seja, internautas querem novidades em termos de notícias, mesmo que rasas e fúteis. Em outras palavras, o genocídio em Gaza já não desperta o interesse da opinião pública global, como acontecia nos primeiros meses do conflito. É mandatório defender a causa palestina permanentemente, sob pena de sermos cúmplices de um crime escancarado, que conta com o endosso e o silêncio quase obsequioso de vários países.
O extermínio dos palestinos em Gaza começa a entrar no limbo das discussões internacionais, com líderes globais se manifestando de forma protocolar e automática, como se não existisse massa pensante no planeta. Dar as costas aos palestinos é um crime tão grave quanto o que Benjamin Netanyahu e seus facínoras de plantão insistem em levar adiante.
Em setembro de 2024, no seu último pronunciamento na Assembleia Geral da ONU como presidente dos Estados Unidos, Joe Biden foi aplaudido ao dizer que “algumas coisas são mais importantes do que se manter no poder”. Esse não é o pensamento de Netanyahu, que usa a matança indiscriminada em Gaza para manter-se no poder e evitar uma prisão dada como inevitável.
Na ONU, Biden afirmou estar trabalhando por um cessar-fogo para a guerra de mais de um ano na Faixa de Gaza, onde mais de 40 mil palestinos (70% mulheres e crianças) foram mortos pelas forças israelenses. Na ocasião, o democrata declarou que Tel Aviv e Hamas deveriam finalizar os “termos e trazer os reféns para casa, aliviarem o sofrimento em Gaza e acabar com essa guerra”.
Biden foi além em seu discurso e afirmou ser importante garantir que as forças que mantêm a humanidade unida “sejam mais fortes do que aquelas que nos separam", destacando que as escolhas feitas hoje “determinarão nosso futuro nas próximas décadas.”
Entre o discurso e a prática há uma colossal distância. Se diante de câmeras e microfones o presidente americano defende um cessar-fogo no Oriente Médio, nos bastidores autoriza o envio de algumas dezenas de milhões de dólares em armamentos para Israel, sob o argumento tosco e questionável de que os israelenses têm o direito de se defender. Alto lá! Israelenses têm direito à defesa, mas os palestinos não? Que democracia é essa que Biden diz representar?
Há dias, na Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, o documento final do encontro dos representantes das vinte maiores economias do planeta condenou os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza, mas poupou Rússia e Israel de reprimendas. Resumindo, colocaram no cadafalso ambos os crimes de guerra, mas ignoraram os criminosos, conhecidos de todos. A desculpa de que foi uma saída diplomática não convence, principalmente quando temos mais de 40 mil inocentes mortos em Gaza.
Como sempre acontece em solenidades oficiais e discursos preparados no vácuo de variadas recomendações e cuidados excessivos, Biden recorreu ao politicamente correto e citou o sul-africano Nelson Mandela, que certa feita disse: “Não há nada além de nossa capacidade quando trabalhamos juntos”.
Quem ouviu Joe Biden parafraseando Mandela logo pensou que o caminho para um cessar-fogo entre Israel e o Hamas teve o caminho encurtado. Nada disso, pois nesta quarta-feira, 20 de novembro, menos de dois meses após o discurso oportunista de Biden, os Estados Unidos vetaram no Conselho de Segurança da ONU, pela quarta vez, resolução de cessar-fogo entre Israel e o Hamas – o documento teve 14 votos favoráveis. Onde fica a fala de Mandela sobre trabalho conjunto citado pelo presidente americano?
O veto dos EUA à proposta de trégua foi justificado pela ausência da exigência de libertação dos cerca de 100 reféns que continuam em poder do Hamas em Gaza, questão considerada preponderante pelos americanos. Em 7 de outubro de 2023, ao menos 250 israelenses foram feitos reféns.
As grandes potências apoiam o governo facinoroso de Tel Aviv e fornecem armamentos às tropas israelenses, mas Netanyahu, mesmo dizimando dezenas de milhares de palestinos, não conseguiu resgatar uma centena de reféns em poder do Hamas. Isso mostra que a investida militar israelense em Gaza começa a esfacelar. Aliás, há informações não confirmadas por Tel Aviv de que militares israelenses estão abandonando as frentes de combate, sendo que muitos cometeram suicídio em decorrência das atrocidades que foram obrigados a cometer contra palestinos inocentes.
O aludido fracasso da resposta militar israelense começa a ganhar contornos de veracidade. Sem ter como responder às manifestações de parte da população israelense, que cobra o resgate dos reféns em poder do Hamas, Netanyahu visitou o Corredor Netzarim, em Gaza, talvez para recobrar o ânimo dos soldados israelenses que estão na frente de batalha. O premiê israelense prometeu pagar US$ 5 milhões por cada refém israelense devolvido, além de passagem segura para quem aceitar a proposta.
“Para aqueles que querem deixar esse emaranhado, eu digo: quem nos trouxer um refém encontrará uma saída segura para si e sua família. Também daremos US$ 5 milhões para cada refém”, disse Netanyahu, ao lado do novo ministro da Defesa, Israel Katz. “Escolha, a escolha é sua, mas o resultado será o mesmo. Nós traremos todos de volta”, completou.
Descabida e irresponsável, a proposta sinaliza o desespero e a fragilidade política de Benjamin Netanyahu, que insiste em vestir a fantasia de xerife do Oriente Médio, sob as expensas dos contribuintes das grandes potências ocidentais, que continuam financiando o projeto genocida do cambaleante governo de Tel Aviv.
Considerado o fato de que Netanyahu afirmou que todos os reféns serão resgatados, não há motivo para disponibilizar US$ 500 milhões para uma barganha que pode produzir efeitos colaterais inesperados. Afinal, essa dinheirama acabará, cedo ou tarde, nas mãos do Hamas.
A soberba de Netanyahu não parou na oferta espúria para resgatar os reféns. O primeiro-ministro israelense afirmou que o Hamas não governará o enclave palestino após o fim da guerra. Ele alega ter destruído a capacidade militar do grupo radical palestino, que surgiu na esteira da subserviência de Mahmoud Abbas, chefe da Autoridade Nacional Palestina, a Tel Aviv. A decisão sobre quem governará a Faixa de Gaza é dos palestinos que lá vivem, não do responsável pelo Holocausto palestino.
É importante lembrar que Israel ocupou a Cisjordânia, onde palestinos são hostilizados e ameaçados constantemente por militares israelenses, que dão ordens no território que pertence à Palestina. Israel também se apropriou das Colinas de Golã, pertencentes à Síria, no apagar das luzes da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Durante o conflito, a maioria dos habitantes árabes fugiram da área. Foi estabelecida uma linha de armistício, mas a região ficou sob controle militar israelense.
Vade retro, Netanyahu!
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(*) Descendente de libaneses, Ucho Haddad é jornalista político e investigativo, analista e comentarista político, fotógrafo por devoção. Criador do site WWW.UCHO.INFO. @ucho.info e @ucho_haddad
Crédito das fotos: Ucho Haddad