A história do Marrocos em uma sala de exposição de artes
A exposição “Marrocos”, promoção do Museu de Arte da FAAP e dos governos do Brasil e do Marrocos, foi inaugurada no dia 30 de março e vai até o dia 6 de junho. Ali, no salão de exposições, a oportunidade de conhecer um pouco mais da história de Al Maghrib Al Aqsa, o Extremo Ocidente, um lugar que, como outros que pertencem ao que chamamos de Mundo Árabe, conheceu as mais diversas ocupações e recebeu as mais diversas influências por ser um ponto de passagem estratégico entre África e Europa, as duas margens do Mediterrâneo. Na mensagem oficial da ministra da Cultura do país africano para “Marrocos”, ela diz que a “exposição mostra, através de obras de museus, toda essa história marroquina, tanto em seus detalhes locais quanto em seu alcance humano”. Ela tem razão. Para além da arte, está ali um bom retrato, resumido e selecionado, do que passou aquela região através de longos e tumultuados milênios. “Há vários anos fazemos isso dentro de uma política de exposições. Procuramos abordar uma cultura através da arte para abranger o máximo de pessoas, um público mais vasto. E o Marrocos sempre chamou a atenção das pessoas”, explica Maria Izabel Ribeiro, diretora do Museu da FAAP, que teve a idéia inicial em colocar de pé a exposição. “Marrocos” foi dividida em quatro pontos temáticos. O primeiro deles é o da História, e abrange o longo período que começa com os primeiros sinais de vida no neolítico, como vasos, passa pela Idade do Bronze, pela ocupação romana e dá um pulo até o início do período de chegada de levas muçulmanas, no século VIII. Todas essas passagens deixaram traços que ainda fazem parte da identidade marroquina, os berberes, os primeiros povoadores, fenícios, cartagineses, romanos e judeus. Quando os muçulmanos chegam ao Magreb, deixam ali uma marcante presença árabe. Em fases coloniais mais recentes, portugueses e franceses. Como aponta um dos textos da mostra, há ali, na cultura que se cria dentro daquele território, um “reflexo de sua geografia, uma convivência de opostos, abrangendo as Montanhas do Atlas até paisagens litorâneas”. Ali convivem o nômade e o sedentário, o rural e o citadino. A informação que a exposição nos dá é de uma longa história. De 400 mil anos atrás, vemos os mais antigos fósseis humanos na região do norte africano. Por volta de 700 A.C., houve um grande salto de uma cidade na área, a famosa Cartago, e a aparição dos primeiros entrepostos púnicos ao longo das costas marroquinas. Apenas alguns séculos depois, em 146 A.C, ela seria destruída na luta que envolveu a disputa de poder com Roma. Um pulo adiante nos mostra como em 670, os primeiros árabes e muçulmanos conduzidos por Oqba Ibn Naif chegam ao Magreb. Antes e depois da chegada dos árabes, a história do Marrocos não pode ser contada de forma separada do sul europeu, da península Ibérica. Roma e Cartago, Andaluzes e almorávides e almôadas, disputas que desafiavam a pequena distância que a geografia imputava a esses dois territórios. Isso até chegarmos ao domínio colonial que irá ganhar forma a partir do século XIX. Isso, sem colocarmos na mesa o movimento migratório não bem visto por autoridades espanholas do Marrocos para a Espanha nos dias de hoje. O séculos XIX e XX veriam intensificar-se a entrada dos europeus. Em 1912, seria oficializado o Protetorado francês no Marrocos, que acabaria apenas em 1956, quando se oficializa sua independência. No entanto, a vida deste reino continuaria a se dar diante dos vizinhos europeus. O segundo módulo da exposição é o das Artes Tradicionais, objetos que são manifestações da ciência e do conhecimento – astrolábios, textos, tecidos, bordados, armas, móveis, jóias – e que contam aos olhos o que conhecemos por textos. Em um dos corredores, um rolo da Torá Sifer Thora, pergaminho e madeira com incrustações em prata. Ao lado, um manuscrito de Partes do Alcorão. Em seguida, um vaso do século III A.C.. Mais a frente outro vaso de cerâmica modelada de 3800 A.C, colhido em uma necrópole, em um campo de Skhirat do período neolítico. Em meio a todos esses objetos, vestidos berberes, vestidos típicos das comunidades judaicas, armas, pratos da época da ocupação romana, milênios de manifestação cultural no Marrocos, há quadros de pintores europeus que deixaram suas impressões em relação ao país, e ao mundo árabe em geral que começaram a visitar a partir do século XVIII, quando a colonização européia de todo o Oriente Médio se avoluma. “As pinturas nas paredes, lado a lado aos objetos, estão dessa forma já que muitos dos vestidos e objetos estão nas pinturas”, explica Maria Izabel. As pinturas desses europeus – de nomes como Eugène Delacroix, Jose Villegas y Cordero e Horace Vernet – constituem na verdade o terceiro eixo temático da exposição: a dos pintores orientalistas. Maria Izabel explica que “na segunda metade do século XIX, na esteira do romantismo, eles ficaram apaixonados pelo tema do Oriente, então fizeram várias viagens para buscar o outro, o distante, o diferente. Isso passou a ser um tema dessa pintura orientalista”. As obras desse eixo temático foram cedidas pelo Orientalism Museum, departamento que faz parte do Qatar Museums Authority (Autoridade de Museus do Catar), criado em 2005 para centralizar a política de administração de museus do Catar. O país do Golfo, banhado em recursos do petróleo, está bem servido de obras antigas e detém importantes obras-de-arte românticas e orientalistas, cerca de 700 no total. Segundo Ismael Azzam, diretor do Orientalism Museum, o critério da seleção para cessão à mostra da FAAP foi selecionar quadros que falassem do Marrocos, ou então se relacionassem, mais diretamente, ao Magreb africano. “Esses artistas vão até as regiões do mundo árabe. Às vezes seus retratos são exatamente aquilo que vêem. Às vezes são idealizações”. Mais do que um retrato do que os europeus encontraram em suas viagens, esses quadros são sinais de como os europeus encararam a sua experiência colonizadora. Jacques Majorelle, em “O Vale do Ounilla ao Marrocos”, traz um olhar que enxerga casas precárias, beduínos andando por ruas empoeiradas ou descansando em coberturas de tetos que podem desabar. No quadro de José Villegas y Codero, “O sonho”, um árabe que dorme e ali está em meio a um mundo oníríco, em que se sobressaem a preguiça e a sensualidade. Framentin, em seu “Ladrões da Noite no Saara argelino”, traz uma idéia da noite em meio ao deserto, homens nus, uma junção entre o homem e o animal que leva à idéia do selvagem. A brochura do Orientalism Museum explica que “como resultado (dos interesses coloniais europeus no norte da África e no Oriente Médio), muitos exploradores e pintores tiveram a oportunidade de descobrir o Oriente – suas cidades e seu modo de vida exótico”. Essa é uma forma de olhar. Outra está no “Orientalismo”, de Edward Said, para quem o olhar desses europeus não foi uma descoberta, mas uma construção do Oriente. Falando especificamente, numa passagem rápida, desses pintores do século XIX, ele diz: “Mais tarde, no século XIX, nas obras de Delacroix e de literalmente dezenas de outros pintores franceses e britânicos, o quadro de gênero oriental transformava a representação numa expressão e numa vida própria. A sensualidade, a promessa, o terror, o sublime, o prazer idílico, a energia intensa: o Oriente, como uma figura na imaginação orientalista pré-romântica e pré-técnica da Europa do final do século XVIII tinha realmente uma qualidade camaleônica chamada (adjetivamente) de ‘oriental’. Mas esse Oriente livre e sem controle seria severamente cerceado com o advento do Orientalismo acadêmico”*. No último módulo, os trabalhos de pintores contemporâneos marroquinos. Na seleção, trabalhos de Jilali Gharboui e Mohamed Kacimi. A Embaixadora do Marrocos no Brasil, Farida Jaidi, se sentia em casa. Atendia autoridades em um bonito vestido lilás, com brilhantes. Achou a mostra muito bonita, nas diz não ter ficado completamente satisfeita com o que viu. Para ela, a sala da FAAP não conseguiu englobar como um todo a complexidade dos temas que procurou retratar. “Tem um pouco de cada coisa, mas não exprime de forma satisfatória os costumes, nossas jóias, nossa realidade como um todo. Daria para fazer uma exposição só com as jóias do Marrocos”. Apesar disso, parabeniza a FAAP e diz que, de certa forma, o Marrocos está ali, “uma riqueza de países e dinastias, civilizações que passaram pelo Marrocos e deixaram sua marca”. * Orientalismo, Edward Said. Ed. Cia. Das Letras, 2006. P. 173