Corrupção atrapalha aplicação da lei que protege mulheres marroquinas
por Ana Cláudia Konichi (de Madri, do OperaMundi)
Esta é a pedra fundamental da Moudawana, código civil marroquino que sofreu uma profunda mudança que, neste mês, completou cinco anos. Até fevereiro de 2004, a população do Marrocos vivia sob uma Constituição baseada numa lei religiosa que determinava direitos e obrigações distintas para homens e mulheres. Mas só a religião não é desculpa para a desigualdade de gênero, mesmo num país onde 99% da população é muçulmana. Para muitos especialistas em cultura árabe e islâmica, a origem da idéia de superioridade masculina nos países muçulmanos vem das interpretações equivocadas, intencionais ou não, dos fundamentos do Alcorão por parte dos homens, que sempre exerceram o poder e ditaram as regras nessas sociedades.
Com o novo Código da Família, como também é chamada a Moudawana, a situação das mulheres marroquinas mudou perante os homens e a Justiça. Elas ganharam direitos, como a responsabilidade conjunta da família, a não-obrigatoriedade de um tutor para casar e o fim do voto de obediência ao marido. A lei também dificulta a existência da poligamia e o repúdio da mulher pelo marido. Mas talvez mais relevantes sejam outras conquistas, como o aumento de 15 para 18 anos na idade mínima para a mulher casar e a permissão para que a esposa possa pedir divórcio por consentimento recíproco ou discórdia, recurso anteriormente só autorizado ao homem, sem necessidade de consultar a opinião da mulher.
Segundo os últimos dados divulgados pelo Ministério da Justiça do Marrocos, o número de divórcios por discórdia não para de subir. Foram 10.313 em 2006 e 18.562 em 2007, um aumento de 80%. Mais de 40% foram pedidos por mulheres.
“O número de divórcios aumentou muito. Muitas mulheres hoje estão pedindo, coisa que não era permitida antes”, conta Sophia Slimati, 23 anos, marroquina que trabalha em Madri, mas notou a mudança em seu país.
O problema é que nem sempre a lei é cumprida. Em entrevista ao Opera Mundi, a arabista e especialista em questão de gênero Alicia del Olmo diz que a reforma é muito importante, mas, na prática, ainda não funciona direito. “Muitos recursos necessários para o funcionamento da lei não foram aplicados, como a criação de 60 juizados de família. Outro fator é que os juízes não conhecem bem a lei e, se a conhecem, às vezes têm uma mentalidade tão conservadora que continuam aplicando-a com os princípios anteriores, porque ela é ambígua e dá margem a diversas interpretações”, explica.
Um exemplo está no artigo 81 do Código, que determina que o juiz deve tentar reconciliar o casal antes de autorizar o divórcio. Muitas vezes, a mulher que pede separação continua com o marido porque o juiz não a concede.
Outra dificuldade
Alicia del Olmo conta que outra dificuldade é causada pela corrupção. Para ela, a prática é responsável pelo aumento de 16% no número de casamentos ilegais com mulheres menores de 18 anos de 2006 para 2007, como revelam dados do Ministério da Justiça. Apesar de proibido, esse tipo de união representa 10% do total de casamentos realizados em 2007.
“Existe certa corrupção entre os juízes, principalmente no meio rural. Eles continuam autorizando os casamentos com meninas de 13, 14 anos. E não existem mecanismos de controle interno [na Justiça] para evitar esses casos”, afirma a arabista.
Segundo o último Índice de Percepções da Corrupção divulgado pela organização Transparência Internacional, em 2008, o Marrocos recebeu 3,5 pontos em uma escala que vai de 0 (livre de corrupção) a 10 (muito corrupto) – mesma pontuação do Brasil. A instituição considerada mais corrupta foi o Judiciário.
Para estudante de medicina marroquina Nihal Hadouti, de 19 anos, a corrupção faz parte do cotidiano do país. Antes da reforma da Moudawana, sua prima queria se separar do marido e não podia, o que a fazia sofrer muito. Logo veio a nova lei e, em seguida, o divórcio. Mas não sem que a prima tivesse que “molhar a mão” de quem deveria assinar a papelada. “No julgamento, te dizem: ‘Quer se divorciar? Então, me dê dinheiro’. No Marrocos, tudo é corrupção. Esqueça a lei. Ela existe, mas não é aplicada”, conta Nihal.
Mentalidade dos juízes marroquinos precisa mudar, diz arabista
A situação das mulheres marroquinas tem melhorado, mas o nível econômico do país e a existência de bolsões de pobreza dificultam a aplicação da Moudawana, lei que reduziu a diferença entre direitos e deveres de homens e mulheres, segundo a arabista e especialista em questão de gênero Alicia del Olmo.
Ela considera natural que as mudanças sejam lentas num país onde 60% da população feminina é analfabeta, mas acredita que, mais do que a mentalidade e educação do povo marroquino, é necessário mudar a mentalidade dos juízes.
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Alicia acha que a lei é muito positiva, principalmente quando se leva em conta que outros países muçulmanos ainda não fizeram nenhuma reforma do gênero por temer uma reação dos fundamentalistas islâmicos, como Argélia e Jordânia.
No Marrocos, ela ocorreu porque o rei Mohammed VI, autoridade máxima religiosa, aproveitou um momento de debilidade do fundamentalismo, após os atentados de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos, e publicou a reforma, elaborada pelo Parlamento.
A Moudawana na Espanha
Na Espanha, onde vivem aproximadamente 650 mil marroquinos, a lei também não tem sido respeitada. Segundo a marroquina Mariam Bejouki, integrante da junta diretiva da Atime (Associação de Trabalhadores e Imigrantes Marroquinos na Espanha), apesar da existência de acordos de divórcio entre os governos marroquino e espanhol, imigrantes tentam se separar e não conseguem.
“Muitas marroquinas que vivem aqui necessitam pedir um divórcio, reclamar suas pensões, mas a Embaixada e os consulados não aplicam a lei. As experiências que tivemos demonstram que muitas vezes, os funcionários não a cumprem porque não a conhecem. Reivindicamos que a lei seja aplicada e que os funcionários desses órgãos sejam treinados e reciclados”, afirmou Bejouki ao Opera Mundi.