Discriminação e opressão sem limites geográficos
O ICArabe fará nas próximas semanas um recorte da situação social e do direito civil das mulheres. Procurará fazer uma reflexão de gênero no Brasil e nas sociedades árabes e muçulmanas. Nesta semana, reportagem especial aponta que a discriminação e a opressão não são delimitadas geograficamente e que a luta pela igualdade de gênero – bandeira do 8 de março, Dia Internacional da Mulher – é universal. A todas, o instituto dedica esta edição.Por Soraya Misleh e Arturo Hartmann A discriminação e a opressão contra a mulher não são delimitadas geograficamente. No caso das árabes e muçulmanas, inclusive, histórias familiares mostram muitas vezes uma outra realidade. Contudo, a imagem que chega aos brasileiros reproduz estereótipos criados pelo dito ocidente em seu projeto civilizatório de domínio de toda uma região rica em recursos naturais. Assim, geralmente associa-se a elas a imposição do uso do véu – que não consta como obrigatório no Alcorão e é restrito a muçulmanas, que não necessariamente são árabes –, a condição submissa e, em especial às palestinas e iraquianas, agora mais uma caricatura: a de que são terroristas. Essa imagem distorcida tem refletido na vida de mulheres de origem árabe no Brasil. É o caso da palestino-brasileira Amyra El Khalili, que teve um perfil falso criado no orkut, o qual reproduzia todos esses estereótipos e mais alguns. A foto era de uma mulher coberta, da Arábia Saudita, que tinha vários homens entre seus “amigos” – o que dava a entender que o véu não seria mais que parte de um jogo de sedução – e cujas comunidades seriam, na visão deturpada do “ocidente”, de grupos terroristas. Aí começou a saga de El Khalili para retirar o perfil ofensivo à imagem da mulher árabe do ar. Essa economista, ambientalista e ativista fundadora do movimento Mulheres pela P@z denunciou a página, mas nada foi feito. Na justiça civil, descobriu por que: o google não via nada demais naquele perfil e poderia ser uma pessoa homônima, segundo a advogada do provedor do orkut. “O correto seria retirarem a página do ar e me darem o IP do autor, mas como essa caricatura era uma imagem que tinham como corriqueira, não fizeram isso.” Detalhe: durante o processo, uma estagiária do google admitiu diante da juíza que o perfil era falso, e a desimportância dada ao fato pelo provedor é exemplar e simbólica do preconceito contra as árabes e muçulmanas. Mulher de luta, El Khalili venceu um round dessa batalha, com sentença favorável em primeira instância, em que se reconheceu que a insistência em manter um perfil falso num site de relacionamentos consistia dano moral. Não à toa ela dedicou essa vitória às mulheres que vivem sob ocupação, em especial as que enfrentam o cerco na estreita faixa superpovoada recém-bombardeada. “A palestina é guerreira, é o esteio da resistência. Atacam-na porque quando se destrói a figura feminina enfraquece-se todo o grupo. Tenta-se, assim, destruir sua cultura e apagar o passado. Então, essa sentença é dedicada a Gaza para marcar posição de que nós, de origem palestina, não vamos ficar caladas e permitir que sua imagem seja aniquilada, destruída, ofendida e humilhada.” Ela faz questão de ressaltar o papel crucial das entidades árabes como Fearab-SP e Fearab América (federações das entidades árabes-brasileiras) nessa conquista. E que atuar também através da cultura, como ela tem feito há 30 anos, através de sua dança, e o ICArabe, desde sua fundação em 2004, é fundamental para derrubar estereótipos. O instituto, vale salientar, teve como presidente, durante seus quatro primeiros anos, uma mulher, a brasileira muçulmana, filha de libaneses, Soraya Smaili. Uma cientista e ativista. Burca ocidental Para El Khalili, não é possível fazer um recorte único das mulheres árabe e muçulmana. Ademais, a discriminação de gênero ocorre em todo o mundo. “Aqui, temos a burca ocidental. Temos que ter o corpo sempre perfeito, malhado, encarar cirurgia plástica, esticar os olhos, ser sempre jovens, não ter cabelos brancos. A opressão que vivemos aqui é pior do que a de lá. Elas não são massacradas o tempo todo pelo padrão ariano a ser seguido, da modelo esquelética.” A ditadura da beleza também é lembrada pela ativista, membro do Conselho da Condição Feminina do Estado de São Paulo e apresentadora da ALL TV Mulher, Muna Zeyn: “É um padrão a ser conquistado que violenta a mulher; meninas morrem em nome dele, mulheres acima de 50 anos estão sendo mutiladas e muitas vezes perdendo a vida para atender um modelo inatingível. E tem se lucrado em cima disso.” Ainda conforme sua ótica, no ocidente, tem-se o uso do corpo da mulher como objeto do mercado. “É a isca para o consumo.” Brasileira filha de árabes e muçulmanos, ela é enfática: “A discriminação não é privilégio de determinado território, etnia, religião, é sobre a condição de ser mulher. O Islã inclusive as enaltece, o respeito a elas é sagrado. E dizer que aquelas que vivem sob conflito armado, assim como as nordestinas, são submissas é desconhecer a realidade e reproduzir o preconceito.” E continua: “No Brasil, as mulheres conquistaram o direito ao voto há muito pouco tempo, 78 anos. É um país em que muito recentemente as mulheres começam a exercer sua cidadania plena. Mesmo assim, vamos presenciar um alto índice de violência doméstica (a cada oito minutos, uma nova vítima), desigualdade salarial (com elas ganhando cerca de 30% menos), abuso sexual, como da menina de nove anos pelo padrasto, cuja mãe, que deveria ser acolhida, foi excomungada por um bispo porque permitiu o aborto que colocaria em risco a vida da criança.” Zeyn lembra que até nos Estados Unidos foi preciso uma lei para coibir a discriminação salarial de gênero – assinada por Barack Obama, foi denominada Lilly Ledbetter, em homenagem a uma trabalhadora da multinacional Goodyear que ganhava menos que seu colega, em igual função, e recorreu à Corte Internacional perdendo por um voto. Naquele país, conforme divulgado pela Agência Reuters em fevereiro último, a diferença salarial entre homens e mulheres chegava a 23%. Luiza Nagib Eluf, procuradora do Ministério Público Estadual e autora de contundentes livros resultados de pesquisas suas – como “Crimes contra os costumes e assédio sexual” e “Matar ou morrer” – trabalha de longa data em favor dos direitos da mulher e conhece como ninguém os meandros e as formas que a opressão pode assumir. De aspectos mais violentos até formas mais “sofisticadas”, ou seja, disfarçadas de normalidade. Ela mesma sofreu, quando prestou concurso para entrar no MP, preconceito explícito. “Disseram-me: ‘Você não vai muito longe na carreira’. Ou então, por exemplo, a carreira de qualquer promotor começa em cidades do interior. Aí, o procurador virou e me perguntou: ‘Mas seu marido deixará você viajar?’. Respondi, educadamente e me segurando: ‘Sim, já perguntei’.” A experiência dessa filha de pai sírio e mãe de origem libanesa, no entanto, sequer se aproxima de casos que chegam à sua mesa, crimes hediondos. A violência contra a mulher, em uma sociedade como a brasileira, tem seu centro no fato de que alimentamos e reproduzimos, socialmente, estruturas patriarcais de poder. “O patriarcalismo é um gerador de injustiças, de gênero, mas também econômica. Você tira a mulher do mercado de trabalho e a torna dependente. Há, então, todo um gênero dominado, pois quem não tem autonomia financeira não tem nenhum outro tipo de autonomia. E ao mesmo tempo forma uma mão-de-obra barata que interessa ao capitalismo, um quadro de injustiças que justifica o acúmulo de bens ou em razão de gênero ou de classes sociais, mas justifica que alguns tenham muito mais que outros, impedindo acesso a essa riqueza.” De constrangimentos sociais e de costumes que consideramos inocentes e normais até situações muitíssimo mais pesadas, como estupro, lesões corporais e até assassinatos – um dos casos de repercussão mais recentes, o Eloá – são demonstrações e acontecem porque se está em uma sociedade que coloca a mulher como submissa. No fim, as mulheres têm a liberdade cerceada. “Há falta de liberdade e de autonomia sexual. E isso é importante falar, que elas têm direito ao sexo, que no fim é o direito ao seu corpo.” Para Eluf, a legislação brasileira para o direito das mulheres, desde a Constituinte de 1988, é boa. E houve avanços importantes desde então. O principal deles é a Lei Maria da Penha, que engloba um avançado conjunto de leis de proteção à mulher nas mais diversas amplidões em que ela possa sofrer violência. Mas a lei já enfrenta problemas. Em palestra no IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas), no dia 5 de março, a procuradora ouviu o caso de uma mulher que havia sido agredida, foi à justiça, mas recebeu o tratamento da “antiga lei”. A “Maria da Penha” ainda é desconhecida inclusive de juristas. Não vai conseguir destruir sozinha a própria estrutura que quer atacar. E não o faria em tão pouco tempo. O problema está ainda relacionado à mentalidade e estrutura sociais no Brasil. O fim do preconceito contra a mulher no Brasil envolverá outros esforços. A educação dentro da família, em grande medida, ainda reproduz a desigualdade de gênero. A mãe educa os filhos por esse filtro. “A mídia mesmo incita a violência com manifestações ditas culturais, como no caso do ‘tapinha’ que ‘não dói’. Entramos com uma representação contra essa música e, se repararem, faz um tempo que ela não toca.” Zeyn conclui: “O 8 de março é importante para todas as mulheres do planeta. Em qualquer parte do mundo, queremos que sejam respeitadas, assim como sua cultura. Queremos paridade, inclusive aqui no Brasil na divisão de afazeres domésticos (pesquisa aponta que 91% das brasileiras que trabalham fora cumprem dupla ou tripla jornada).” Ao dedicar a data às mulheres que vivem sob conflito armado e “perdem seus filhos em seus braços, vêem seus lares desfeitos”, sem desconsiderar as demais que também sofrem discriminação, Zeyn é categórica: “Nunca teremos paz e democracia no mundo se tivermos uma asa do avião sem ser equiparada. Por isso, essa é uma luta de homens e mulheres, para que todos tenham de fato cidadania plena.”