Artigo Mostra Mundo Árabe de Cinema “Ventre Materno”: “Por que é complicado?”

Seg, 04/09/2023 - 13:05
Publicado em:

Por Cristiane Jatene, psicóloga no Brasil e em Portugal, terapeuta de casal, família e comunidade e historiadora.

A Mostra Mundo Árabe de Cinema, em sua décima oitava edição, inaugurada em 31 de agosto de 2023, voltou a ser inteiramente presencial, em São Paulo. A sala de cinema do Cinesesc, com capacidade para quase 300 pessoas, estava repleta de um público que já integrou a Mostra ao calendário cultural paulistano. 

Este ano, a Mostra celebra a vida e obra de Edward Said, um dos principais intelectuais do século XX, cujo pensamento é incontornável para quem se debruça sobre a História do Conhecimento. 

Faz vinte anos que Said nos deixou, sendo substituído na sua cadeira na Universidade de Columbia por Rashid Khalidi, que escreveu a importante obra “Palestina: cem anos de colonialismo e resistência”*. O pensamento de Said, mesmo para quem o desconhe, é a base para todos os discursos  pós-coloniais e decoloniais, de todas as espécies. 

Said foi quem primeiro disse que um discurso único e  dominante pode ser capaz de desqualificar um povo, uma cultura, uma religião, um território e pode ser abraçado por aqueles que nunca conheceram tal povo, tal cultura, tão religião, tal território. Essas pessoas conheceriam tal povo, cultura, religião e território apenas através do discurso desqualificador e que pode ser base para preconceitos e discriminações que, não raras vezes, descambam para a violência no lugar da diplomacia. Sua obra clássica “Orientalismo” teve sua primeira edição em 1978.

O conceito usado por Said para se referir a como o Ocidente pintou o Oriente pode ser aplicado para compreendermos o discurso de homens sobre mulheres, de norte-americanos sobre sul-americanos, enfim, pode ser aplicado para compreendermos todo discurso de opressor que tenta desqualificar o oprimido para justificar sua ação violenta. (Sugiro a obra do sociólogo Jessé Souza “A guerra contra o Brasil - Como os EUA se uniram a uma organização criminosa para destruir o sonho brasiliero). 
  
Na Mostra de 2020, ocorrida online, foi exibido o belíssimo documentário autobiográfico de Said. Falamos a respeito no texto daquele ano, que pode ser lido aqui https://icarabe.org/node/3912

O filme de estreia de 2023,  “Ventre Materno”, dirigido pelo libanês Carlos Chahine, radicado na França, é um filme de temática universal, que transcorre naquele território tão específico, Líbano, e, dentro desse território, num outro lugar peculiar, nas montanhas, no vale de Qadisha, de uma beleza natural exuberante e impressionante, que o filme explora de forma contundente. É uma forma de mostrar a grandiosidade e a força da natureza do Líbano.

Destaco duas cenas, que acontecem no início do filme, que de forma poética e direta, resumem os temas que virão a seguir e que rondam a humanidade até hoje. Seja ali, seja no Ocidente, seja no Sul Global, enfim, onde quer que existam humanos.

Na primeira cena que destaco, a protagonista, Layla, procura sua própria visão do lugar onde vive, retrata as montanhas inúmeras vezes em desenhos feitos em cadernos que estão sempre por perto. Ela mostra sua necessidade de ser autora do seu lugar. De construir suas próprias montanhas. 

O filme se passa em 1958, quando a região estava em conflito, e, no mundo todo, essa data representa uma bifurcação para a vida das mulheres. Iriam continuar ou iriam romper?

A segunda cena que merece destaque é quando o filho de Layla, um ator mirim excepcional, lhe pergunta o que está havendo, por que Cristãos, Islâmicos e Drusos estão brigando? Ela responde: “É complicado”. Ele pergunta: “Por que é complicado?” Todos nós queremos saber. Até hoje. 

Essa indagação da criança e a cena da mesa entre amigos, onde um muçulmano questiona um cristão, me lembraram o indispensável livro de Amin Maloouf para quem quer compreender o mundo atual. “O naufrágio das civilizações - Um olhar profundo sobre o nosso tempo para entender três feridas do mundo moderno: os CONFLITOS IDENTITÁRIOS, o ISLAMISMO RADICAL e o ULTRALIBERALISMO”.

Amin é outro libanês radicado na França, jornalista e membro da Academia Francesa de Letras. Concordo com Maloouf sobre o fato de que, em podendo optar pela união, a humanidade ter optado pela desunião e o sectarismo, inclusive no Oriente Médio, tem nos trazido muitos problemas, ainda por serem solucionados.

Como também mostrado no filme “1982”, exibido na Mostra de  2020, estrelado pela diretora e atriz libanesa Nadine Labaki, as crianças que questionam serão a seguir herdeiras do mundo construído por adultos, que veem  no conflito a saída. E essas crianças, por sua vez, logo poderão ser  adultos em conflito ou exilados. 

A cena final de “Ventre materno” é lindíssima, sob o ponto de vista da fotografia, do cinema, e da luta das mulheres. Luta por espaços no mundo, para além das montanhas que lhes oferecem segurança e, ao mesmo tempo, as aprisiona, me fez lembrar o filme “As horas”, de 2002, dirigido por Stephen Daldry, baseado no livro homônimo, de Michael Cunninghan, livro ganhador do Prêmio Pulitzer, em 1999.

Mais uma vez, embora os brutos queiram negar, estamos todos ligados pelos mesmos dramas, dilemas e felicidades. Estejamos onde estivermos. Basta sermos humanos. E sempre que negarmos a alteridade e o respeito estaremos sendo reacionários e ignorantes. E o contrário também acontece, sempre que aceitarmos nos conhecer uns aos outros estaremos aprendendo mais e sendo mais progressistas rumo a um mundo mais pacífico e justo.

A cena mais emocionante do filme é das irmãs e da mãe na despedida de uma das irmãs, que deixa o Vale rumo a Beirute, tristes e alegres por causa da ruptura que anuncia uma nova possibilidade.  Novas possibilidades são sempre desconhecidas. Como diz Hannah Arendt, na sua obra “A condição humana”, embora o homem seja mortal ele nasceu para começar, é pela ação humana que os começos acontecem.

O desconhecido sempre nos causa medo, mesmo que intuitivamente, e até racionalmente, saibamos que precisamos seguir. Somos sempre inexperientes, a cada novo passo “nunca sabemos para onde vamos”, vivemos no “planeta da inexperiência”, como bem disse Milan Kundera em “A arte do Romance”. Kundera, escritor tcheo, também radicado na França , por exílio, falecido este ano. 

Dito de outro modo, cada passo individual e da humanidade carrega algum ineditismo, não há ensaio, não há conhecimento prévio das consequências, pelas quais teremos que responder.

O Oriente Médio e o Mundo Árabe ainda parecem desconhecidos nos países que herdaram uma única versão da História da Humanidade. O que Said apontou em sua obra é verdadeiro em diversos campos, sempre que há algum tipo de colonialismo, seja de território, culturas, etc.

É importante  pensarmos se essa separatividade, esse discurso único e equivocado não facilita toda a violência que existe no mundo. 

Fiz cinco anos de faculdade de História, bacharelado e licenciatura, antes de ser psicóloga. Não havia no programa, um bimestre ao menos sobre Oriente, Oriente Médio, África. Estudávamos apenas Europa e Américas. Como se o mundo se resumisse a esses dois territórios, apesar de o Brasil ser um país multicultural e multiétnico, por excelência. Isso foi na década de 1990 e não sei se essa realidade mudou. 

É preciso resistir e a arte é parte desse processo que não é apenas de reação, mas de ação. E, o mais difícil: ao resistirmos, não podemos nos tornarmos igual ao que e a quem resistimos. Não podemos usar as armas de quem nos agride.

É difícil resistir, é difícil lutar sem armas, por isso, as artes são tão fundamentais. Elas registram a resistência, elas registram a luta e elas dão voz e propiciam a escuta. Elas produzem documentos, documentos artísticos.

Essa ilha que representa a Mostra Mundo Árabe de Cinema, que acontece por uma semana, uma vez por ano, é importante para saberem que no Oriente Médio, além de conflito entre Drusos, Islâmicos e Cristãos, como mostrou o filme de estréia, há também arte!, de qualidade, e que as produções feitas junto com o Ocidente mostram que a arte é exemplo para a diplomacia.

“Por que é complicado?” Essa é a pergunta para todos os governantes e para cada um de nós. Por tempo indeterminado. Até que passe a ser simples. Até que nenhuma criança tenha que fazer essa pergunta.

*Esta obra ainda é inédita no Brasil. Há edição em Português, disponível em Portugal (esta edição que li) e edição em Espanhol, disponível na Espanha. Além da edição original em Inglês. 

*Cristiane Jatene é psicóloga no Brasil e em Portugal, Terapeuta de Casal, Família e Comunidade. 
Historiadora. Criadora das Oficinas Autobiográficas. Mestranda em “Sociedade, Risco e Saúde”, na Universidade de Lisboa.


Atualmente faz os atendimentos e supervisões clínicas online, tanto para Brasil quanto para Portugal.
Email: oficinasautobiograficas@gmail.com
Instagram: @cristiane.jatene

*Artigos assinados são de responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, a visão institucional do ICArabe.