A beleza e a riqueza do cinema árabe
Temos o prazer de apresentar a Mostra Mundo Árabe de Cinema, em sua 4ª edição. Após quatro anos de pesquisas e experiências inusitadas, em 2009, a mostra ganha nova dimensão e maior abrangência.
Inovamos e ampliamos as parcerias, pois, além do Departamento de Cinema do IMA (Institut du Monde Arabe) de Paris, agregamos a inestimável colaboração da Casa Árabe de Madri-Espanha, que nos oferece uma seleção especialíssima de filmes intitulada “Relatos do Iraque”. Nessa coletânea, serão mostrados cinco longas-metragens e quatro curtas, produções que abordam a temática da ocupação e da guerra, porém do ponto de vista dos que vivem essa situação, dos que têm que sobreviver a ela, mesmo diante das angústias e incertezas.
Além de “Relatos do Iraque”, a 4ª Mostra apresentará produções de origem libanesa, tunisiana e egípcia. O público se surpreenderá e se emocionará com a maneira como os conflitos e as questões referentes à ocupação serão apresentadas.
Também constatará como o sofrido povo árabe se sobrepõe aos fatos que distorcem suas vidas. Em diferentes lugares ou formas, esse demonstra como lida de maneira corajosa com as interferências externas, relativas aos interesses geopolíticos na região, alheios aos seus próprios ou ao seu cotidiano. Ao mesmo tempo, também deixa evidente sua humanidade a um mundo que insiste em categorizá-lo de “não-povo”. Escancara os anseios por uma reconstrução e por uma vida normal e digna, como ser humano que busca oportunidade, independentemente do local onde tenha nascido.
Na primeira parte da mostra, destacamos outra seleção, feita por nós e especialmente pensada para o público brasileiro. Esse mesmo público que nos anos anteriores apreciou e valorizou as produções do mundo árabe – ou sobre ele. Para além das questões geopolíticas, e como em outras mostras do ICArabe do gênero, verificamos o cinema de excelente qualidade em diversificadas produções do mundo árabe. Nessa mostra em particular, fica patente e fortemente apresentada a arte de talentosOs diretores, ícones aclamados da cinematografia, reconhecidos em diferentes locais do chamado Ocidente e que trazemos ao público brasileiro. Essa seleção torna-se ainda mais interessante ao considerarmos que Os diretores vêm de distintas formações, gerações e partes do mundo árabe, o que mais uma vez caracteriza a riqueza dessa magnífica miscelânea que forma a cultura árabe. Cada um dOs diretores traz consigo um universo de diversidade e de visões de mundo. Além de representações da herança e do vigor cultural dos quais são originários.
O mais interessante, no entanto, é que a escolha desses filmes não tenha se dado no contexto dos nomes aclamados, mas sim no da qualidade das produções. Ao final da seleção, constatamos que havíamos reunido grandes obras, produzidas por diretores de enorme expressão e personalidade.
Iniciamos a mostra com a obra de Nacer Khemir, diretor tunisiano, autor de excelentes produções, embora não numerosas. Nacer Khemir é um intelectual intenso e completo, com sólida formação. Além de cineasta, atua como artista plástico, calígrafo e ator. Não obstante tenha vivido parte de sua vida na França, onde recebeu boa parte de sua educação formal, Khemir é um arabista, que estuda a literatura e a poesia árabes e tem enorme apreço por sua identidade cultural e por sua origem. Utilizando diferentes formas de expressão, deixa clara sua profundidade e a exuberância de sua herança cultural, consciente do poder que ela é capaz de exercer no imaginário. Sua obra merece ser vista e conhecida do público brasileiro, que até o momento não teve esse contato, apesar de seus primeiros trabalhos terem sido realizados na década de 80. Um de seus filmes mais premiados, Andarilhos do deserto, e que exibimos na presente mostra, foi realizado em 1984. Faz parte do que posteriormente se batizou de trilogia do deserto, sendo o primeiro da série, no qual Khemir tocou fundo em toda a influência que recebeu da literatura árabe, da arte de contar estórias e de um mundo de fábulas.
Andarilhos do deserto foi pioneiro e inovador em seu momento de lançamento, e até hoje continua surpreendente e candente. O segundo filme da trilogia, O colar perdido da pomba, tem o mesmo ritmo, mostrando a enorme influência da arte, da arquitetura e, principalmente, da caligrafia. Fala do amor e o apresenta de maneira poética e delicada.
Bab`Aziz ou Baba Aziz, como preferimos traduzir para o português, é o último – e mais recente – filme da trilogia. Produzido em 2004, ou seja, 20 anos após o primeiro filme da série, marca um retorno do Khemir cineasta, após alguns anos de ausência, período em que o diretor se dedicou a outras atividades artísticas. Baba Aziz tem forte influência do formato narrativo das Mil e uma noites, no qual Khemir cultua e cultiva ainda mais profundamente a cultura árabe clássica. Ao mesmo tempo, permite-se uma transposição para o novo e estabelece uma porta para a compreensão – e para a falta dessa – em torno do árabe contemporâneo, essencialmente após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001.
Em diferentes entrevistas dadas por Khemir por ocasião do lançamento do filme, ele deixa claro o seu desejo de mostrar a beleza da cultura árabe, sua riqueza de características muito viva e presente. Além disso, salienta de forma sutil que a cultura árabe islâmica é uma cultura de paz e de encontro, podendo o sufismo ser um elo que une ainda outras culturas e línguas. Como bem descreveu o professor Michel Sleiman ao comentar o filme Baba Aziz, tal “inova no tratamento dos temas do sufismo, explorando de maneira fresca a relação mestre-discípulo, ao colocar um velho e uma menina criança, afirmando ser a menina ‘antiga de espírito’, embora tão nova na idade. Inova também por incluir o feminino na busca da sabedoria e da união com o divino, descerrando a cortina do machismo histórico”.
Embora tenha sido finalizado em 2004, Baba Aziz foi lançado somente em 2008, tendo atingido um número bastante elevado de exibições em diferentes salas de cidades dos EUA e da Europa, fato inédito para uma produção independente. Nesse sentido, há que se salientar o excelente trabalho do TypeCast, um distribuidor especial de filmes independentes que representam culturas que normalmente encontram pouca visibilidade e são pouco exploradas pelo cinema moderno. Com cenários exuberantes, cheios de cores e sabores, Baba Aziz traz a possibilidade da vida na morte e do renascimento em todos os momentos.
Aparentemente contrastante, mas apresentando uma circularidade que pode representar a superação, essa primeira parte da mostra apresenta o filme Sob as bombas (Under the Bombs), exibido em diversos festivais internacionais e ganhador de indicações e prêmios. As razões para essa aclamação ficam evidentes ao assisti-lo. Trata-se de um filme memorável e sensacional, cujo impacto não se deve apenas por seu conteúdo, mas também por sua importância histórica. Sob as bombas foi filmado durante a trágica guerra do Líbano de 2006 e provê a audiência com imagens que ninguém fora do país pôde ver antes. Saber desses fatos antes de assisti-lo influenciará grandemente a experiência de vê-lo, acrescentando uma camada extra de realidade a uma comovente história. Sob as bombas não é necessariamente um filme político, mas mostra de maneira aberta e ampla as consequências terríveis que uma guerra tem sobre homens, mulheres e crianças inocentes. O filme também mostra o amor de um povo por sua terra, o desejo de ficar mesmo sob as bombas e de viver livre e dignamente. Outros aspectos marcantes desse povo, suas enormes hospitalidade e solidariedade árabes, fazem-se presentes, mesmo em momentos de desespero e tristeza.
No decorrer do filme, o espectador também toma conhecimento das várias guerras vividas, o quanto isso faz parte de sua história, da infância, juventude e vida adulta. Mesmo em meio à destruição e ao desolamento, não deixa de impressionar a bela paisagem entre montanhas, as águas cristalinas e as construções de pedra. Além de mostrar um filme contundente, feito de maneira inédita e corajosa, o diretor libanês Philippe Aractingi se destaca como um dos grandes diretores árabes da atualidade, sensível, mas ao mesmo tempo vigoroso e pronto para dar respostas aos desafios contemporâneos.
Apesar de pouco divulgado entre nós antes das mostras do ICArabe, o cinema árabe tem uma história e tradição de várias décadas, especialmente marcadas pelas produções egípcias. O cinema egípcio produziu, de fato, um dos maiores, senão o maior ícone da cinematografia árabe, que foi Youssef Chahine. Um dos maiores diretores árabes, foi um pioneiro, mas simultaneamente um vanguardista. Sua biografia apresenta um número enorme de filmes, realizados em meio às mais variadas condições, ou, na maior parte das vezes, sem as condições necessárias. Chahine foi um exemplo de talento e inteligência, aliados a um enorme conhecimento das questões sociais e antropológicas da sociedade em que vivia. Certamente foi um homem muito à frente de seu tempo, produziu filmes corajosos e memoráveis, apresentou críticas contundentes e destemidas aos senhores da elite política. Suas obras ganharam inúmeros prêmios e Chahine deixou um enorme legado e muitos discípulos.
Algumas delas foram apresentadas ao público brasileiro anteriormente, porém nunca com o devido destaque. Após sua morte, em 2008, Chahine recebeu várias homenagens em diversos países; agora, a 4ª Mostra Mundo Árabe faz uma merecida, porém ainda modesta homenagem ao brilhante diretor, sendo apresentados dois significativos filmes, A outra e Caos, este o último deles. O ICArabe não poderia deixar de homenageá-lo, apresentá-lo ou lembrá-lo, na certeza de que sua obra continuará a transformação, mesmo que por meio da crítica criativa.
Esperamos, assim, que o público de São Paulo aprecie, mais uma vez, a Mostra Mundo Árabe e se aproxime e conheça o que parece distante, mas que em verdade está muito próximo.
Soraya Smaili é Diretora Cultural do Instituto da Cultura Árabe e Professora associada da Universidade Federal de São Paulo