Rumo à geografia da paz: destino Gaza?
A faixa de Gaza representa pouco mais de 2% por cento do território da Palestina, detalhe nunca mencionado, mesmo agora com os últimos acontecimentos que estão ocorrendo naquela região. Gaza, de fato, é uma pequena parte de um país que, no passado, nunca existiu como região dividida. A história de Gaza, antes da Sionização da Palestina, não foi única e sempre esteve conectada administrativa e politicamente ao resto da Palestina. Gaza, até 1948, era parte integral e natural daquele país. Como uma das principais portas da Palestina para o mar, estava mais propensa a desenvolver um modo de vida cosmopolita e flexível; muito parecido com o de outras sociedades portuárias do Mediterrâneo Oriental da era moderna. Sua localização próxima ao mar e, via maris, próxima ao Egito e Líbano, trouxe prosperidade e estabilidade, até a sua vida ser desorganizada e quase que destruída pela limpeza étnica propagada por Israel, em 1948.
Entre 1948 e 1967, Gaza tornou-se um imenso campo de refugiados severamente confinado, tanto pela política de Israel, como pela política do Egito: ambos não admitindo qualquer movimento populacional para fora daquela região. As condições de vida tornaram-se pior quando o número das vítimas da política de desapropriação de Israel, que viviam ali durante séculos, dobrou de tamanho. Na véspera da ocupação de 1967, a natureza catastrófica dessa transformação demográfica forçada ficou evidente por toda Faixa de Gaza. Esta, que fora parte do litoral bucólico do sul da Palestina, em duas décadas tornara-se uma das regiões mais densas do mundo, sem qualquer infra-estrutura econômica adequada para suportar tal mudança.
Os primeiros vinte anos de ocupação israelense ao menos permitiram algum movimento para fora de uma área que ficou isolada como zona de guerra entre 1948 e 1967. Dezenas de milhares de Palestinos agora podiam se juntar ao mercado de trabalho de Israel, como mão-de-obra não especializada e mal paga. O preço da demanda de Israel para esse mercado escravo foi uma total renúncia a qualquer tipo de luta ou agenda nacional. Quando isto não foi mais possível, o direito de ir e vir foi negado e abolido. Todos esses anos que levaram ao acordo de Oslo em 1993 foram marcados por uma tentativa de Israel de fazer da Faixa de Gaza um enclave. Os partidários da Paz esperavam que esse enclave se transformasse numa região autônoma ou fizesse parte do Egito; já os partidários do nacionalismo esperavam que fosse parte do Grande Eretz Israel, que eles sonhavam estabelecer, no lugar da Palestina.
O acordo de Oslo permitiu a Israel reafirmar o status da Faixa, como uma entidade geopolítica separada – não apenas da Palestina como um todo, mas, também, separada da Cisjordânia. Aparentemente, tanto a Faixa de Gaza como a Cisjordânia estavam sob o controle da Autoridade Nacional Palestina, mas todo e qualquer movimento populacional entre as duas partes dependia da boa vontade de Israel; qualidade rara que quase desapareceu quando Benjamin Netanyahu subiu ao poder em 1996. Além disso, Israel manteve, como ainda mantém, o fornecimento de água e luz. Desde 1993, eles usam disso, ou melhor, abusam desse poder para garantir o bem-estar dos assentamentos judaicos e para chantagear a população palestina, com capitulação e submissão. O povo da Faixa de Gaza, nos últimos sessenta anos, não eram mais que prisioneiros de guerra, ou reféns que tentavam conviver num espaço humano quase que impossível.
É dentro desse contexto histórico que devemos ver a violência que ocorre hoje em Gaza e rejeitar todos aquelas freqüentes adjetivos usados pela mídia ocidental, tais como: campanha na “guerra contra o terror”, mais um exemplo do renascimento islâmico e da Guerra entre Civilizações, mais uma prova do expansionismo da Al-Qaeda ou infiltração Iraniana nos territórios ocupados. As origens dessa mini-guerra civil estão aqui. A recente história da Faixa de Gaza, 60 anos de desapropriação, ocupação e aprisionamento, produziram essa violência interna que hoje testemunhamos, bem como outros aspectos desagradáveis da vida vivida sob tais condições insuportáveis. De fato, seria mais honesto dizer que essa violência interna está muito aquém daquilo que seria esperado, dadas as condições sociais e econômicas criadas pela política genocida israelense nos últimos seis anos.
Lutas entre políticos que gozam do apoio militar é, certamente, algo sórdido que vitimiza a sociedade como um todo. Parte do que ocorre em Gaza é uma luta entre políticos que foram democraticamente eleitos e aqueles que ainda acham difícil aceitar o veredicto popular. Mas, na verdade, essa não é a principal luta. O que se desenrola em Gaza é uma batalha entre os procuradores locais de Israel e Estados Unidos – a maioria dos quais são seus procuradores involuntários, que, no fim das contas, acabam fazendo o que Israel manda – e aqueles que se opõe. É difícil perdoar a maneira como o Hamas subiu ao poder em Gaza. Esperamos que os meios escolhidos para se chegar a isso não se enraízem e nem se repitam. Deveríamos dizer abertamente que os meios usados pelo Hamas são parte de um arsenal que no passado permitiu a eles serem a única força ativa que pelo menos tentou parar com a total destruição da Palestina. Esses meios, hoje, são menos digno de crédito e espera-se que sejam temporários.
Mas não podemos condenar os meios se não oferecermos outras alternativas. Permanecer calado enquanto a política israelo-americana estrangula Gaza até a morte, limpa metade da Cisjordânia de sua população nativa e ameaça o resto dos palestinos – dentro de Israel e em outras partes da Cisjordânia – com políticas de transferência, não são uma alternativa. É equivalente ao silêncio das pessoas “decentes” durante o Holocausto Nazista.
A melhor alternativa para o século 21 é a BDS: Boicote, Despojamento e Sanções. Trata-se de medida emergencial muito mais efetiva e menos violenta e que se opõe a destruição da Palestina que vemos hoje. Ao mesmo tempo, devemos falar de maneira aberta e convincente sobre a criação da geografia da paz. Uma geografia na qual fenômenos anormais, como o isolamento de uma pequena porção de terra, deveriam desaparecer. Nessa nova visão, não haveria mais um Campo de Prisioneiros chamado Gaza, onde alguns reclusos são facilmente incitados uns contra os outros por um calejado Diretor de Presídio. Em vez disso, aquela área voltaria a ser parte de um país do mediterrâneo oriental, que sempre ofereceu o melhor como ponto de encontro entre leste e oeste.
Nunca antes, à luz da tragédia de Gaza, a solução dupla da BDF e de um só Estado pôde ser vista como a única alternativa a seguir. Para todos aqueles que participam de grupos de solidariedade ao povo palestino, de círculos que promovem o diálogo entre árabes e judeus ou, mesmo, que fazem parte dos esforços da sociedade civil para trazer a paz e a reconciliação à Palestina, este é o momento de colocar de lado todas as falsas estratégias de coexistência, soluções de dois Estados e etc. Todas essas soluções sempre foram, e ainda são, uma doce melodia para os ouvidos dos “pesos-pesado” de Israel, que ameaçam destruir o que resta da Palestina. Todo cuidado é pouco, especialmente com os Diet Zionist ou Cloest Zionist, que, recentemente, tanto na Inglaterra como em outras partes do mundo, se uniram na campanha contra os esforços do BDS. Eles são tal qual os eruditos iluminados, que usam órgãos liberais no Reino Unido, como o The Guardian, para nos explicar o quão perigoso é a proposta do boicote acadêmico contra Israel. Eles não gastam tempo, energia e palavras sobre a ocupação em si, como o fazem a serviço da limpeza étnica da Palestina. A UNISON, a maior união de comércio e serviços públicos da Grã-Bretanha, não deve ser dissuadida por esse jogo de interesses e deve seguir o caminho desses bravos acadêmicos que endossaram o debate sobre o boicote, assim como também deveria fazer a Europa como um todo: não apenas pela causa da Palestina e de Israel, mas para encerrar de uma vez o capítulo do Holocausto, no livro da sua história.
Como um último ponto para se meditar, existem relativamente poucas mães e esposas judias na Faixa de Gaza – algumas fontes dentro de Gaza dizem que há mais de 2000 – casadas com Palestinos locais. Há muito mais mulheres judias casadas com Palestinos na zona rural; ato de desagregação dificilmente admitido e pouco reconhecido por ambas elites políticas. Se, a despeito da colonização, ocupação, políticas genocidas e desapropriações, tais relacionamentos afetivos tornaram-se realidade, imagine o que não poderia acontecer se essas políticas e ideologias criminosas desaparecessem. Quando o Muro do Apartheid for removido e as cercas elétricas do Sionismo desmanteladas, Gaza tornar-se-á, mais uma vez, no símbolo da sociedade costeira de Fernand Braudel – capaz de fundir diferentes horizontes culturais e de oferecer espaço para uma nova vida – em vez da zona de guerra que se transformou nos últimos sessenta anos.
*publicado originalmente em The Electronic Intifada, em 18 de junho de 2007