Terrorismo para inglês ver e a auto-negação da Europa
Alvos previsíveis e anunciados, espaços de circulação anônima, o sistema de transportes. Explosões simultâneas, vítimas exclusivamente civis, a caligrafia inconfundível de terroristas mercenários camuflados como se fossem religiosos fundamentalistas. O metrô, que já foi o lugar mais seguro de Londres durante os bombardeios alemães, tornou-se o ponto focal do terror.
Os ataques covardes considerados “inevitáveis” tornam igualmente inevitáveis as medidas de militarização do cotidiano e o incremento de operações militares nas “áreas de origem” do terrorismo. O medo crônico e sistemático é a resposta ao medo agudo e episódico. A vida cromatizada à luz da segurança dos negócios, em alerta amarelo, laranja ou vermelho.
Os atentados de Londres, como todos os demais reputados à rede Al’Qaeda, serviram para aterrorizar o público e não para produzir estragos estratégicos (econômicos e militares) ao inimigo presumível, a coalizão anglo-americana. Os “especialistas” não chegaram a explicações convincentes sobre os motivos para um ataque de baixo impacto, frente a outros possíveis alvos, inclusive na Escócia, onde se reunia o G8. A versão oficial insiste em martelar na tecla da rusticidade e do primarismo das “células terroristas”. Os estereótipos são apostos para recobrir uma determinada inteligibilidade.
Operações sincronizadas, planejadas com comando, coordenação e inteligência, podem ser chamadas de “rústicas”? Que irracionalidade é essa que obsequia racionalidade à Doutrina Bush e a seu plano de europeização?
A securitização última dos investimentos depende de catástrofes que dissimulem o impacto catastrófico próprio deles. A Europa dos mercados encontrou a fórmula e o cenário adequados para não mais ser negada. Mas como dizer sim ao desemprego irreversível, à precarização do trabalho, à privatização de setores essenciais, ao enterro dos restos mortais do Welfare State?
As forças de direita responderam ao não das urnas, ao não das greves e dos protestos de rua, com um novo e fatídico sistema de controle social, de caráter privado transnacional. Pouco maniqueísmo é o problema, segundo Tony Blair. Logo após os atentados, disse que os terroristas “têm que saber que nossa determinação para defender nossos valores e nossa forma de vida é maior que sua determinação para assassinar gente inocente e espalhar terror.” O modelo sócio-econômico neoliberal perverso, assimétrico e oligopolizado, de repente, vira nossa “forma de vida”, “nossos valores”...
A identidade “ocidental” funde e subsume a todas as demais identidades, as de classe, as setoriais, as regionais, as nacionais. O novo “nós” não admite diferenças internas. Enquanto isso, “eles”, os barbarizados, os atrasados, excluídos e imigrantes de modo geral, islâmicos em particular, são culpabilizados automaticamente. Basta uma mensagem eletrônica com a confissão “irrefutável” e a verdade (da manipulação) se revela. O Tribunal midiático e sua audiência cativa aceitam, acatam e oficializam a autoria desinibida.
Atentados auto-incriminadores não precisam ser investigados, de acordo com o senso comum induzido. Foi a Organização Secreta da Al’Qaeda na Europa, ou qualquer outro nome, que faça a ilação pretendida. Importa que seja plausível, não provável. O estigma para consumo geral é que importa. São islâmicos raivosos, incapazes de lidar com seu malogro civilizatório, ressentidos com o sucesso alheio. Os “vitoriosos”, por seu lado, devem aprender a lição e defender, até as últimas conseqüências, sua “condição superior”.
Para que investigar como os terroristas se infiltram em aeroportos, estações ferroviárias e rodoviárias, companhias de transporte? Basta alegar que foram atentados suicidas. Agentes de segurança “não identificados” identificam prontamente os rastros dos homens-bomba, sem nenhuma prova consistente. Embaraçoso explicar como esses seres tão alienígenas conseguiriam administrar sua invisibilidade por tanto tempo, e depois instalar explosivos em estações de metrô com sistemas de vigilância anti-terror testados e reforçados nos últimos 4 anos.
As investigações dos atentados em Buenos Aires contra a sede da AMIA em 1994, assim como as investigações dos ataques de Madrid em 2004, mostram que a logística das duas operações foi compartilhada com empresas de segurança, policiais e quadrilhas do crime organizado, dos próprios países em questão. Uma destruição sob medida, na sua execução, é incompatível com qualquer tipo de fanatismo, porque requer alta tecnologia, financiamento programado, atuação integrada de comandos, clandestinos e oficiais, acesso privilegiado a informações, monitoramento pleno das variáveis, ou seja, uma enorme capacidade administrativa.
Recusemos a sinistra dicotomia, bombardear ou ser bombardeado. A vitória da lógica da paranóia é a morte da lógica da alteridade. O outro é sempre o inimigo, precisa dizer a Europa, contra si mesma. A aliança atlântica, EUA-União Européia pode se consumar, como Blair e Bush sempre quiseram. As últimas contradições intercapitalistas estão sendo eliminadas. Onde encontraremos ainda entrechoques sistêmicos? No acéfalo Japão? Na mais que diligente China? Na Rússia velha de guerra e grande fornecedora da nova guerra? Nos países intermediários controlados por segmentos do capital transnacional, como o Brasil, Índia e México?
O regime se fecha de dentro para fora. Os conglomerados donos do risco planetário empossam-se de um poder ad hoc e irremovível. As instituições nacionais e as negociações passam a expressar esse novo enquadramento. É o que se vê nas instâncias da OMC, nos tribunais de arbitragem privada, nas negociações bilaterais dos países da OCDE com os demais países, nas negociações da União Européia com blocos menores e nas negociações da ALCA.
Os atentados produzem o toque de Midas, aquele que tudo torna corporativo, transnacional e imperial. As democracias nos países chamados de “ocidentais” estão esgotadas. O sistema internacional é movido pelo unilateralismo da superpotência e pelo seu sinistro mercado de guerra. O monolito, porém, não se põe de pé sem a colaboração e a boa vontade dos setores com legitimidade social suficiente para emprestá-la.
Que seja retirado todo o aval aos mecanismos de institucionalização da assimetria e da barbárie. Que se multipliquem os esforços para a criação de canais de expressão e articulação de interesses desintoxicados de particularismo. Que plebiscitos e consultas populares digam aquilo que as burocracias público-privadas tentam fazer calar. Que comitês autônomos de investigação atuem com amplos poderes, sem as costumeiras restrições impostas “por razões de segurança”. Que ocupemos as ruas contra os atentados e contra as operações expansionistas dos EUA, e de sua coalizão, no Oriente Médio, África e América Latina. Transparência, participação, socialização da informação e do poder, continuam sendo os melhores antídotos contra o totalitarismo de mercado e sua guerra particular.