Um travesso djinn de idade milenar - impressões pessoais de um concerto de música e dança sufi
Takdum...taktakdum....respira-se com o coração da terra, respira-se em Deus e fora dele, onde a unidade se espraia pela multiplicidade. Respira-se como se pulsa, porque o tambor da vida assume então seu lugar na criação e, através do derbake, entra pontuando a regularidade que estava oculta na irradiação primeira. Nas imediações da cidade de Lúxor, a sua pele esticada evocou por muitas e muitas vezes, desde tempos imemoriais, esse ritmo primordial, transformado em muitos outros, refletindo diversificados ânimos e passos de homens e animais - são sua respiração, seus batimentos, seus andamentos pelo mundo, atravessando vales e desertos. O coração do espetáculo bateu, então, sob o toque de Atef Metkal Kenawy, de origem “rom”, pertencente às castas dos grandes músicos profissionais - mataqil, balhawanat ou djamassi -, que fundiram a riqueza percussiva do Egito às sutilezas da musicalidade indiana. Esse mestre da percussão faz parte nada menos do que de um dos mais autênticos conjuntos de tradições musicais do Egito: Músicos do Nilo, reconhecidos mundialmente desde 1975 e imortalizados pelas lentes de Tony Gatlif, em “Latcho Drom”.
Seu discípulo, sentado entre o derbake e a kawala, mediando estes dois elementos, terra e ar, executava com precisão o daff, dando textura à percussão. O pandeiro, nas mãos de Douglas Felis, coloriu e tornou palpável como uma renda a tessitura rímico-melódica em desenvolvimento. Esse músico é de origem latino-americana – Venezuela – e percorre os caminhos da música oriental no Brasil há cerca de 10 anos, ou mais, quando por aqui aportou. Graças a ele, tivemos a oportunidade de apreciar os veneráveis artistas da Orquestra Folclórica de Abu Ghid – na verdade mais numerosa do que a versão concisa, aqui presente.
A kawala é como o corpo, anima-se e vibra ao sopro daquele que a toca. Essa flauta é essencial na ritualística sufi e Refat Farhat elevou-nos, através do profundo lamentar de seu nobre instrumento, aos recantos inebriantes da sua via. Apesar de ser sopro, descia-me feito lava incandescente, purificando-me dos ouvidos até a planta dos pés... varreria-me por dentro, levando-me para o escuro, onde não ouso entrar sozinha? Ou era apenas um sopro suave, ao qual tudo que é poluído dentro de mim resistia e tornava-se áspero? Neste momento fechei os olhos, pois era chamada a afinar-me em alma. Reviver tal experiência ainda faz-me dissolver um pouco, por dentro. Esse tímido e estudioso músico – como o descreveu o anfitrião do grupo – é um daqueles verdadeiros mestres, guardiões da tradição em sua arte.
Sufi – vem de pureza ou lã? Que importa! Trata-se de uma única ideia – dispo-me do mundo para atingir o que é essencial, mas antes vesti-me dele para senti-lo intensamente. Não desprezo meu corpo na busca do Bem Amado, pois eu O encontro através da vivência absoluta de meus cinco sentidos, amplificados pela sinestesia estimulante do giro – beijo Sua face ao arder em Seu movimento. O Ser que em seu movimento a tudo move e transforma, mas cujo centro imóvel não pode ser por nada movido ou modificado. É a dança de Shiva Nataraj, a kaliben dos rajastanes, a espiral dos persas, o samá dos místicos muçulmanos e dos místicos não-muçulmanos, que seguem a via do coração. Vejo girando também, com o bailarino, todas as nuances do seu coração – ofende-se com o Criador, sofre com o peso de suas escolhas, muda de direção, perde-se, encontra-se, retorna e foge, suplica ou agradece por dádivas, sofre por amor, separa-se, une-se, separa-se novamente. Extasia-se através da beleza e da transitoriedade. Vejo-o peregrinar e peregrinar, em seu giro sem fim, por tempos e lugares diversos: Índia, Turquia, Egito, Síria, Argélia, Tunísia... Moçambique acho que não, Bagdá sim, Andaluzia talvez, e tantos outros ambientes que nunca vi e então pude apenas vislumbrar, sem saber quais são, onde ou quando existiram.
Depois; depois do giro impressionante com as quatro panderetas; depois das saias coloridas em padrões geométricos, lembrando a ordem harmônica da cosmologia islâmica; depois de mais música, uma muwashaha antiqüíssima e outras peças tradicionais; na verdade não me lembro se depois mesmo, ou antes, ou entre uma coisa e outra, também os bastões foram apresentados e pareciam deslizar por detrás dos braços, pela nuca, de uma mão a outra, cruzando-se e girando-se, em movimentos leves e vigorosos: era uma luta, era uma dança...era um saaidi com ares marciais de um Oriente ainda mais distante, não sei... E depois de tudo, então, até mesmo a raqs sharqi teve lugar ao final – representada com humor. Sabe, há tanto conhecimento na dança desse rapaz, que me pareceu se tratar mais de um travesso djinn de idade milenar, do que de um jovem dançarino e músico; diga-se de passagem, de extraordinário talento e carisma, que é Mohamed El Sayed.
A ORQUESTRA FOLCLÓRICA DE ABU GHID foi considerada importante patrimônio cultural pela UNESCO. O espetáculo e o workshop de dança (com música ao vivo), realizados entre os dias 21 e 24 de abril, foram organizados pelo Centro de Estudos Universais.
Links de interesse:
http://www.ceuaum.org.br
http://www.mohamedelsayed.com/