Uma lição sobre os perigos da queima de livros

Sex, 24/05/2013 - 15:19

Nossa família tem uma longa história de eliminação de livros de várias maneiras. Como um menino no Egito, eu me lembro da momentos rotineiros quando, de vez em quando, meu pai abria armários e gavetas e organizava seus livros, revistas e cadernos. Mais caros para ele eram os cadernos que continham seus comentários e notas sobre dezenas de livros, a maioria deles sobre o Sufismo, exigência Islâmica e Islamismo político, além dos escritos de Sayyid Qutb, Hassan al-Banna, e vários outros líderes islâmicos .

Ele organizava os livros em feixes e, em seguida, distribuía-os em vários esconderijos secretos. Alguns estavam escondidos em caixas no telhado ao lado do galinheiro. Outros eram deixados sob os cuidados de parentes próximos que não participavam em quaisquer atividades políticas. Outros livros, cuja presença ele acreditava por em risco sua segurança e de sua família, foram queimados. Uma vez garantido que ele poderia ter outras cópias, esses livros eram completamente queimados e suas cinzas discretamente eliminadas.

Quando menino, eu não tomava conhecimento nem entendia essa prática, mas o ritual de coletar livros e papéis e colocá-los em chamas no telhado foi gravado na minha memória para sempre. Quando eu perguntava à minha mãe sobre isso, ela tentava buscar as palavras certas para explicar ao seu filho as políticas em jogo, dizendo: "Estes livros contêm versículos do Alcorão e passagens de nosso Senhor e não podem ser jogados no lixo, por isso é melhor que eles sejam queimados."

Meu avô, que tinha sido um guarda de segurança em uma fábrica local, também tinha uma enorme biblioteca. Meu pai me disse que tinha havido um tempo em que meu avô não podia se dar ao luxo de comprar uma cama, então ele empilhava livros de astronomia e poemas de Ahmed Shawki - que ele tinha memorizado - e fazia camas para seus filhos dormir.

No entanto, no início da década de 1980, ele entrou em depressão e deu a maior parte do conteúdo de sua biblioteca. Posteriormente, ele contentou-se com a leitura de jornais, poemas de Al-Ma´arri e livros sobre astronomia. O último deles foi a sua maior paixão e foi o que o levou a dar ao seu filho mais velho o nome Galileo. No entanto, depois de ser convencido, com base no fato de que este era um nome não-islâmico, ele optou por Nagy, contentando-se por escrever "Nagy Galileo" em letras enormes na parede da casa.

Diferentemente de seu próprio pai, meu pai não dispunha de seus livros por causa de uma depressão repentina ou deterioração da sua capacidade de ler. Ele fez isso porque esses livros poderiam ser usados como provas contra ele no episódio em que foi preso e sua casa, invadida. Diretivas para alienar esses livros vieram de líderes da Irmandade para proteger seus membros. As cartas de al-Banna ou de Al-Manhaj Al-Haraki Lissira Al-Nabawiya poderiam ter sido usadas como prova irrefutável de que o meu pai era um membro de uma "organização banida”.

Assim, durante as lentas noites de verão em Mansoura, de volta de nossas estadias no Kuwait, não havia nada a fazer a não ser ler os livros de Anis Mansour e Khalid Muhammad Khalid e as peças de Tawfiq al-Hakim. Se as forças de segurança do Estado algum dia invadissem nossa casa e encontrassem esses livros, eles não iriam, de forma alguma, incriminar meu pai, e, assim, essas obras foram poupadas de serem usadas como lenha em suas fogueiras rituais. Eu, pessoalmente, não tinha necessidade de ler os escritos de al-Banna, a fim de compreender o mundo da Irmandade Muçulmana, pois eu a vivia e a respirava a cada dia da minha vida.

No Kuwait, assim como no Egito e em mais de uma centena de outros países, a Irmandade Muçulmana dirige uma rede de bem-estar social que não só auxilia indivíduos, mas famílias inteiras. Assistia a sessões semanais com outros meninos que, também eles, eram de famílias egípcias que possuíam vínculos com a Irmandade Muçulmana residente no Kuwait.

Naquela época, o programa habitual para as crianças da minha idade, além de ler o Alcorão e se familiarizar com a biografia profética, consistia em atividades recreativas regulares organizadas durante os finais de semana. Para um menino de repente transportado de uma vila nos arredores de Mansoura a um novo ambiente, como o Kuwait, estes passeios com a juventude da Irmandade (ou "filhotes", como são conhecidos) eram cheios de aventura e novas experiências, que ajudavam a dissipar os sentimentos de saudade.

A vida no Egito mudou para um ritmo um pouco diferente. Na nossa aldeia, eu era considerado  alguém especial por causa da posição de destaque do meu pai como médico na Irmandade. Ele era um modelo para muitos dos outros "filhotes", algo do qual eu não tinha conhecimento.
Reservado e taciturno por natureza, meu pai falava pouco do seu passado e nunca falou nada a respeito da Irmandade Muçulmana.

Recentemente, ele me contou da surpresa de seus colegas do hospital, em que ele havia trabalhado nos últimos oito anos, quando souberam, apenas alguns meses antes, que ele era um Irmão. Eles só tomaram conhecimento disso depois que ele começou a freqüentar reuniões do Sindicato dos Médicos como um dos representantes da Irmandade.

Minha mãe nunca se sentia confortável com as "Irmãs" e não sentia vontade de participar das atividades da Irmandade. Antes da revolução, alguns membros da liderança da Irmandade  coincidentemente apareciam no noticiário e ela proferia um breve comentário, tal como: "Ele era um bom amigo de seu pai. Eles vinham para visitar e jantar na casa de sua avó. "

A primeira coisa que Irmãos in Mansoura e na nossa aldeia me diziam numa reunião era sempre: "Então você é o filho de Dr. Nagy Hegazy. Você deve estar orgulhoso, Deus é bom! "
Tanto no Kuwait quanto no Egito, onde sempre estudei em escolas particulares, cujos nomes sempre incluíam as palavras muito importantes “islâmico” e “Idiomas”.

A Guidance and Light School (Escola de Orientação e Luz), one eu fiz o meu terceiro ano na escola preparatória depois do nosso regresso do Kuwait, era uma escola da Irmandade que meu pai ajudou a criar. A partir dos anos 1980, serviços de escolaridade e educação tornaram-se um aspecto fundamental das atividades da Irmandade e um meio de proselitismo. Seguíamos o mesmo currículo das escolas públicas, exceto que tínhamos dois cursos adicionais duas vezes por semana; um foi intitulado "The Holy Quran" (O Alcorão Sagrado) e o outro era uma mistura de histórias islâmicas e provérbios. A única outra mudança foi substituir a aula de música por outra intitulada "Hinos".

Exceto por tambores e tamborins, instrumentos musicais foram proibidos e desencorajados. Folhetos e cartazes pendurados nas paredes da escola alertavam sobre os perigos de ouvir instrumentos de cordas. Os hinos, que éramos forçados a memorizar, consistiam em melodias e canções nacionalistas mais conhecidas, apenas que qualquer menção ao "Egito" era substituída por "Islã." A escola foi, naturalmente, preenchida com os filhos dos líderes da Irmandade Muçulmana local, além de outros estudantes muçulmanos de diversas origens.

Só agora é que eu percebo que, até a idade de quatorze anos, eu nunca tinha conhecido um cristão. Eu estava em um mundo exclusivo com os seus próprios valores morais, visões de mundo e perspectivas sobre o que significava ser uma boa pessoa.

A transição das escolas da Irmandade para a Escola Secundária Taha Hussein era equivalente a por os pés em outro planeta. Pela primeira vez havia cristãos na escola e a biblioteca continha outros livros, além das usuais orações matutinas e noturnas.

A utopia livre de insultos e maldições em que irmãos se moviam mastigando siwak¹ e sorrindo calorosamente parecia distante. Com a segunda intifada eu me tornei mais ativo e, apesar do fato de que ainda estava no colégio, eu participava de reuniões com os Irmãos na universidade. Trabalhava os cânticos que eram gritados em uníssono durante as manifestações após a morte de Muhammad al-Durrah. Eu tinha me tornado um membro integral do grupo Irmandade da Universidade de al-Azhar. Então Haidar Haidar aconteceu.

Um irmão trouxe várias cópias do jornal Elshaab e colocou-as ao lado dele. Como em qualquer outra reunião, a sessão daquele dia começou com um Irmão recitando o Alcorão Sagrado, seguido por um segundo interpretando um hadith e um terceiro que explicou um aspecto da jurisprudência islâmica. Em seguida, o Irmão abriu o jornal e o leu em voz alta para o grupo.

Ele leu que o Ministério da Cultura Egípcio havia publicado um romance do escritor sírio Haidar Haidar. Além de referências sexuais, o romance continha insultos heréticos dirigidos a Deus e ao Profeta Muhammad (que a paz esteja com ele). Em resposta, foram feitos os preparativos para manifestações públicas para protestar contra a publicação do romance e exigir que fosse queimado.

Palavra por palavra, isto foi o que o Irmão exigiu e eu, imediatamente, me opus. Naquela época, eu era escritor do grupo e eu me recusava a escrever qualquer cântico que apelasse para a queima daquele livro ou qualquer outro.

Até hoje, eu  não sei o que me obrigou a tomar esta posição firme.

Eu mostrei a alguns deles alguns trechos do romance de Haidar Haidar que foram publicados mo Elshaab. Pelo que li, achei seus escritos ridículos, mas eu insisti que isso em nada justificava queimar o livro. Entrei em uma longa discussão com os Irmãos que acabou em gritos. A discussão entre mim e líder do grupo tornou-se cada vez mais acentuada e, em uma explosão de raiva, ele me proibiu de tomar tal atitude. O argumento ficou ainda mais hostil e ele me disse: "Ou desiste desses livros que você lê e sua postura sobre eles ou não se reúna conosco!"

Saí da sala e nunca mais voltei.

 

Ahmed Naje, escritor e jornalista, trabalha como editor do semanário literário Akhbar al-Adab.

Artigos assinados são responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente a posição do ICArabe.

1 Um pequeno ramo (cuja ponta é amaciada pela mastigação) a partir da árvore pérsica Salvadora utilizado para a limpeza dos dentes. Sabe-se que o profeta Maomé recomenda o seu uso.