Artigo: Mostra Mundo Árabe e reflexões sobre a Palestina

Qui, 29/08/2024 - 12:28
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Por Cristiane Jatene

 

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Neste 29 de agosto de 2024 começa a décima nona edição da Mostra Mundo Árabe de Cinema, promovida pelo Instituto de Cultura Árabe e o SESC. A programação completa e as sinopses dos filmes podem ser encontradas nesse link: 19ª Mostra Mundo Árabe de Cinema: com 11 filmes inéditos e estreia internacional, edição 2024 apresenta a diversidade e a complexidade dos países árabes (icarabe.org)

 

Em quase duas décadas de êxito, a Mostra tem feito o serviço de mostrar a diversidade do Mundo Árabe, humanizando os povos, trazendo a variedade de sua expressão artística. Povos que foram definidos pelo Ocidente, como bem demonstra a obra de Edward Said.

 

Os filmes bem escolhidos pela excelente curadoria da Mostra, no geral são coproduções com países ocidentais, alguns “ex” colonizadores, como França e Inglaterra. O filme de estreia desse ano, “O Professor”, dirigido por Farah Nabulsi   é uma coprodução de Palestina, Catar e Reino Unido.

 

Alguns filmes discutem a relação Oriente e Ocidente, como fez o diretor dinamarquês Omar Shargaui, filho de palestino, na obra autobiográfica “Western Arabs”, na qual mostra a visão do ocidental que se sente em dívida com sua origem ancestral árabe e a visão do árabe grato ao Ocidente por “protegê-lo” dos conflitos no mundo árabe, que, sob a ótica do filho, ocidental, são conflitos de responsabilidade do Ocidente. Na mesma edição da Mostra, em 2020, apresentou-se o excelente documentário sobre Said, “Selves and others- a portait of Edward Said”, dirigido por Emmanuel Hamon, uma coprodução de Estados Unidos e França, no qual o próprio Said aborda seu pensamento, enquanto vive o final de sua vida, acometido por uma enfermidade terminal, em Nova Iorque, onde era catedrático na “Columbia University”. O meu artigo sobre a Mostra daquele ano, aborda, entre outros, esses dois filmes (Reflexões sobre a Mostra Mundo Árabe de Cinema em Casa (icarabe.org.br).

 

Esse ano ao convidá-los para a Mostra, resolvi falar sobre a Palestina ocupada, num diálogo com alguns materiais que têm sido importantes para que a situação seja esclarecida, já que há um discurso “oficial” pouco questionado e, principalmente, para que não seja esquecida. São entrevistas, artigos e livros.

 

Uma das entrevistas foi realizada pela jornalista Heloísa Vilela com o acadêmico Jamil Khader, professor da “Bethlehem University”, na Palestina, no qual ele explica que o que vem ocorrendo na Palestina é o laboratório da extrema direita neoliberal, organizada mundialmente. Vilela foi umas das únicas jornalistas que fez reportagens na Palestina ocupada, após o evento de outubro de 2023 e essa entrevista foi realizada no mesmo período.

 

A segunda entrevista que menciono é do programa conduzido pelo historiador Lindener Pareto, que no episódio em questão teve a participação de Heloísa Vilela. Eles entrevistaram Omar Mouhamed, que estudou nas escolas da ONU, na Palestina, se tornou escritor e acaba de lançar o livro “Estado de Choque-Sobrevivendo em Gaza sob Ataque Israelense”, já disponível no Brasil, editado pela Autonomia Literária. Nessa entrevista, de pouco mais de trinta minutos, ele aborda e esclarece temas relevantes, inclusive o fato de que temos que continuar a falar sobre o que se passa em Gaza e sobre como os palestinos procuram a vida em meio a tanta opressão.

 

As duas entrevistas estão disponíveis no canal do YouTube do ICL Notícias.

 

Não podemos ter dúvidas sobre o fato de que precisamos continuar a falar sobre o que se passa na Palestina ocupada e não podemos ter dúvidas de que esse massacre não é “problema dos palestinos”, não é “problema dos terroristas”, não é “problema do mundo árabe”. Que seja por egoísmo, pelo avanço da extrema direita no mundo que, como alertam Jamil Khader, na referida entrevista e em seus artigos (em inglês), o jornalista Gabriel Gaspar em seu artigo “Israel: exportador de fake news, automação da morte e supremacia branca” (disponível na internet) e o jornalista Breno Altman, em seu livro “Contra o Sionismo-Doutrina- Retrato de Uma Doutrina Colonial e Racista”, editado pela Alameda, e em inúmeros programadas, que são aulas, no canal do YouTube “Opera Mundi”, tem Israel como fonte de suas práticas. Não à toa, dois governadores de extrema direita brasileiros visitaram Israel no auge da fase genocidária da limpeza ética, iniciada há quase um século, como mostra em sua obra o historiador e professor de História da Universidade de Exeter, no Reino Unido, Ilan Pappé, como, por exemplo, “Os dez mitos sobre Israel” e “A limpeza étnica palestina”, ambos disponíveis no Brasil.

 

Dois outros livros foram lançados este ano no Brasil e merecem atenção: o livro de Bruno Huberman, professor da PUC/SP, “Colonização Neoliberal de Jerusalém”, editado pela EDUC, e o livro da psiquiatra e psicoterapeuta palestina Samah Jabr, “Samud em tempo de genocídio”, editado pela Tabla.

 

Embora a patologizaação e medicalização das questões existenciais sejam problemas em si, a psiquiatra chama a atenção para inadequação dos diagnósticos usados no Ocidente transpostos para os palestinos. Palestinos não tem “Transtorno de Estresse pós-traumático”, porque não há “pós”. O estresse pelo trauma é geracional e ininterrupto. Ela faz o trabalho que Frantz Fanon fez no passado em relação a África, ao demonstrar o papel da colonização na “saúde mental”. Escrevo entre aspas “saúde mental”, porque a palavra mental pode dar uma ideia, errônea, de há problemas dentro da mente, de um psiquismo simbólico, que não teriam direta relação com nossas condições de vida, sempre complexas e multifacetas. Não quero com isso tirar o papel que cada ser humano tem na sua própria vida. Em menor ou maior escala sempre temos alguma condição de escolha e o que fazemos sempre conta em nossas vidas, mas nossas escolhas são delimitadas pelo período histórico, contexto e condições nas quais vivemos. É a partir da delimitação que a liberdade humana, nossa constituinte, se apresenta. E a liberdade é para escolhermos, para nos comprometermos.

 

Qual a margem de escolha dos palestinos presos num apartheid? Toda a resistência palestina e tudo que ela cria é impressionante, dadas as condições. O que vemos por parte dos palestinos, dentro e fora da Palestina, é um compromisso com o próprio existir e resistir.

 

Estou concluindo uma dissertação sobre a resistência pró-ciência da sociedade brasileira, durante a gestão anticiência da pandemia e não foi possível discutir o termo resistência sem mencionar os indígenas palestinos, que passaram das mãos de um colonizador (britânicos) para outro (sionistas). Sendo que o segundo consegue “se vender” ao mundo como uma democracia, como aponta Gaspar (2024). *

 

E como o assunto principal é cinema, lembremos que no Festival de Cinema de Berlim de 2023, o cineasta israelense Yuval Abraham afirmou que ele vive sob o Direito Civil e o cineasta palestino Basel Advra vive sob Lei Marcial, o que parece uma novidade para muitos, já que essas informações são pouco circuladas. É comum no Brasil encontrarmos brasileiros que já visitaram Israel e não sabem dessa realidade. Não entendem que há inúmeros prisioneiros palestinos sob o domínio do estado colonial e que este estado, de acordo com a lei marcial, vigente para a população ocupada, pode prender quem quiser, pela razão que quiser. Lembremos do filme “Lemon Tree” (2009), disponível no YouTube, no qual uma plantação de limões de uma palestina, existente há muitas gerações, foi destruída, simplesmente porque uma autoridade israelense mudou-se para a vizinhança.

 

Dialogo, agora, com o artigo de Vilhena, publicado no portal do ICL Notícias, artigo de repúdio ao massacre palestino. Gostaria de fazer algumas considerações sobre o termo mencionado “banalidade do mal” e sobre o que temos assistido nesses dez meses. Hannah Arendt cunhou o termo “banalidade do mal” quando foi destacada pela revista “New Yorker” para assistir, e escrever a respeito, às sessões de julgamento de Eishmann, um executor do regime nazista. Segundo a autora, ela não encontrou um monstro, mas um burocrata, que executava assassinatos na câmara de gás como cumprisse qualquer outra ordem de seus superiores. O artigo de Arendt virou o livro “Eishmann em Jerusalém- um relato sobre a banalidade do mal”, editado pela Companhia das Letras.

 

Qual diferença para o que Arendt viu para o que temos visto agora, mas que não aparece na imprensa corporativa e está cada vez mais sumido da imprensa progressista? O grau de sadismo visto nas redes sociais, nos quais a população do estado colonial zomba da população massacrada, mostrando que tem água, enquanto os palestinos morrem sedentos, fazendo vídeos com maquiagem preta para ridicularizarem a aparência das pessoas depois dos bombardeios, soldados que dançam sob os escombros, soldados que batem nas portas, sorrindo!, e mostrando que ninguém atende porque a casa foi destruída e 65% de uma população que aprova estupro de prisioneiros palestinos. Esse sadismo expresso sem pudores, mostra que este regime, além de violento para seus “inimigos”, é violento para com os “seus”. Ensinar gerações inteiras a odiar e a terem prazer e alegria com a dor máxima de outro ser humano é diferente do que Hannah Arendt descreveu. Não há burocracia nesse caso, há um compromisso com o massacre e o sadismo, que se expressa e se expõe com orgulho. Uma causa de “vida” que é a destruição do “outro”. E como Hannah Arendt mesmo diz em sua obra “Sobre a Violência”, editado pela Civilização Brasileira, onde há violência não há poder. O poder vem da autoridade pactuada, a violência aparece quando o poder não é reconhecível. *

 

Ao lermos com atenção o texto de Achille Mbembe quando cunha o termo “Necropolítica”, em obra homônima, editada pela N-1, na qual cita o nazismo e o caso palestino, podemos compreender que para que se decida quem vai morrer, é necessário desumanizar primeiro essa pessoa ou grupo. A cilada vital é que não podemos desumanizar alguém sem nos tornarmos, simultaneamente, desumanizados. * 

 

Acredito que tenhamos que empreender esforços por uma Educação, nas instituições, e uma educação, nas famílias, realmente, antirracistas.

 

Caso queiramos uma educação realmente antirracista temos que entender que racismo não é dirigido exclusivamente aos pretos. A exclusividade que os pretos têm, infelizmente, é a escravização. E, no Brasil, uma abolição que nunca os integrou a sociedade. Estas são dívidas históricas de toda a humanidade e devem ser reparadas, até porque ainda têm consequências no cotidiano dos pretos. Mas, o racismo não se dirige exclusivamente aos pretos. Qualquer latino-americano que já viajou para os EUA ou Inglaterra e encontrou um preto como policial federal para checar seu passaporte tem facilidade de compreender a questão.

 

Não podemos mais viver sob a falácia de que para lutarmos pela cicatrização de uma ferida, esta ferida precisa ser nossa, diretamente. Quando apresentei um seminário obrigatório para me formar terapeuta fenomenológica-existencial, me emocionei ao expor uma sessão, na qual uma paciente verbalizava, a meu pedido, que se autorizava a ser mãe do filho mais novo, do segundo casamento, quando, através do processo desenvolvido na terapia, ela fez uma reparação aos dois filhos mais velhos, do primeiro casamento, dos quais havia se separado não por escolha dela. Soube depois, que uma psicóloga, da plateia, perguntou se eu era mãe para ter me emocionado com aquela situação. Nunca fui mãe, mas a dor da minha paciente e o trabalho que desenvolvemos me emocionou quando o relatei no seminário, por uma simples razão: sou humana e a dor dela era uma dor humana. 

 

Para matar, mutilar como os sionistas têm feito aos palestinos, é preciso ser desumanizado e desumanizar, para cuidar e cicatrizar dores humanas, individuais ou coletivas, é preciso ser humanizado. Nascemos como seres humanos, mas não nascemos humanizados ou desumanizados, estas são possibilidades humanas. Precisamos aprender a ser uma coisa ou outra. E como para o ser humano é possível aprendizados até findar, caso ainda não saibamos, podemos decidir aprender a sermos humanizados e empreender lutas coletivas, por um ambiente digno para todos. 

 

O antirracismo, assim como o racismo são possibilidades humanas. Qualquer ser humano pode ser racista e o racismo pode ser dirigido de qualquer pessoa ou grupo social para qualquer pessoa ou grupo social. O identitarismo é pernicioso por isso. A luta antirracista no Brasil é apenas contra o racismo dirigido aos pretos. Qualquer árabe ou descendente de árabe, de pele clara, é visto no Brasil como “branco”, descendente de europeus colonialistas, é visto como escravocrata, embora os países árabes também tenham sido “fatiados” pelos europeus colonialistas. Qualquer árabe no Brasil é visto como islâmico ou “turco”. Por que? Porque não se estuda o mundo árabe. Quando “se estuda”, o que se expõe é a visão dos ocidentais. Há brasileiros que não sabem que existem religiões (sim, no plural) cristãs no mundo árabe ou que existem islâmicos europeus. Não sabem que os “turcos”, como tradicionalmente são chamados os sírios e libaneses que imigraram para o Brasil, estavam chegando ao Brasil para se libertarem do Império Turco Otomano. São chamados “turcos”, porque na procedência do passaporte vinha carimbado “Império Turco Otomano”.

 

E o feminismo francês? O que diz sobre a proibição que as muçulmanas sofrem na França, de não poderem cobrir a cabeça? É um feminismo excludente? Um movimento de inclusão excludente parece um paradoxo. Qual nome que poderíamos dar a essa situação?

 

Os árabes, no geral, especialmente cristãos, são integracionistas, vivem suas tradições e integram-se, cocriando, a cultura dos locais nos quais vivem. Assim, também são os judeus que não são sionistas e que, por exemplo, gritam em manifestações enormes e contundes nos EUA: “Não em meu nome”, em relação ao massacre palestino e ao estado colonial que tenta, infelizmente com sucesso, igualar Judaísmo e sionismo. 

 

Precisamos de uma educação humanizada e antirracista. Precisamos olhar a figura toda e não recortá-la. Como diz Saramago, no documentário brasileiro sobre a visão, disponível no YouTube, “Janela da Alma”, “Para conhecer as coisas, há de dar-lhes a volta toda”.

 

No primeiro programa da Globo News, que abordou os eventos de outubro de 2023, a documentarista brasileira Julia Bacha, radicada em Nova Iorque, que filmou ações de paz empreendidas por judeus e palestinos, foi entrevistada, bem como uma historiadora brasileira e judia, que, ao mesmo tempo que aplaudia os documentários de Bacha, dizia defender o estado colonial e ter cidadania israelense, sem mencionar que os palestinos que foram expulsos não tem o direito de ter cidadania do local onde nasceram nem de retornarem, sendo que qualquer judeu, nascido em qualquer parte do mundo, pode ter cidadania israelense. Assim, vamos ensinando a História que não expõe toda a situação, sem compreendermos o que está em curso, o que esteve em curso e para onde estamos caminhando, com desinformação e opressão.

 

Parece difícil olharmos além do que nos foi ensinado de forma repetida. Não vejo menções ao fato de que não são dois exércitos lutando. É apenas um exército e uma organização que tem um braço armado, construído depois que OLP abandou a resistência armada, nos “Acordos de Oslo”, nunca cumpridos por Israel.

 

Parece também difícil enxergarmos o que se passa com os outros mesmo que tenhamos vivido algo similar, por isso e para isso, precisamos nos esforçar. O grande escritor Milan Kundera, que ficou apátrida por dez anos e que nunca se referiu a Tchecoslováquia com esse nome, mas sempre como Boêmia, no excelente livro “A arte do romance”, ao mencionar um prêmio recebido em Jerusalém e reproduzir seu discurso na ocasião diz que Israel é um pedaço da Europa no Oriente Médio, parece ter dito tais palavras, sem parar para pensar no significado.

 

Um último ponto que precisa ser mencionado: os governos do mundo parecem não estar ouvindo os povos do mundo que tem saído às ruas para pedir cessar-fogo e Palestina Livre. E seria bom que ouvissem, porque as próximas gerações dirão de nós: como ninguém fez nada para barrar que esse massacre dos palestinos? 

 

*Algumas argumentações presentes nesse artigo foram extraídas da minha dissertação de mestrado, em fase de finalização, na Universidade de Lisboa.

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Cristiane Jatene
Psicologa licenciada no Brasil e em Portugal
Terapueta Fenomenologica-Existencial
Especialista em Terapia de Casal e Familia
Historiadora
Mestranda na Universidade de Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas