Retrato de um certo oriente - o filme, e mais uma parte da identidade brasileira perdida
Por Cristiane Jatene Para Mariana
Os filmes brasileiros que tiverem maior público na primeira semana de exibição nos cinemas ficam mais tempo em cartaz. Lembremos dessa informação.
Há duas semanas, estreou o filme “Retrato de um certo Oriente”, dirigido por Marcelo Gomes e baseado no livro de Milton Hatoum, “Relato de um certo Oriente”.
A mudança do título tem sentido num filme em preto e branco que nos mostra em quadros parte da História do Brasil, do Líbano e da Europa. Através de Emir, um dos personagens, o enredo mostra como o ser humano, tal como Édipo de Sófocles, ao fugir do seu “destino”, pode encontrá-lo, por escolha e não por destinação prévia. Emir vem ao Brasil para fugir da guerra, não queria morrer prematuramente, por escolha dos que o obrigavam a lutar. Já no Brasil, mesmo com o convite do amigo francês, que conheceu no navio, para viajar e retratar os lugares através da fotografia, tão fundamental nesse filme, muda de ideia sobre seu tempo de vida, mas por escolha própria.
Tem feito grande sucesso nas salas de cinema do Brasil, “Ainda estou aqui”, que nos relembra parte do período tenebroso que foi a Ditadura Militar Brasileira. “Ainda estou aqui” é promovido pela Sony Pictures, o que faz com que atraia muito público. O filme de Walter Salles e o livro de Marcelo Rubens Paiva são excelentes, mas a promoção, que custa muito dinheiro, traz visibilidade às obras.
Considero que os dois filmes, “Retrato de um certo Oriente” e “Ainda estou aqui” fazem parte da recuperação de partes de uma identidade brasileira que, a meu ver, é multiétnica, multicultural, multirreligiosa. Essa é nossa força e não nosso problema.
De uns tempos pra cá, com o avanço do Neoliberalismo e, com ele, a exacerbação do individualismo, ganhou força formas de lutas sectárias, identitárias, e que matam o coletivo.
O Brasil virou um país de brancos ou pretos. “Branquitude/Negritude” é o binômio imposto na contemporaneidade. E há uma cartilha sobre como você deve ser encaixado. As pessoas que querem se definir, querem definir a mim e a você, que lê este texto.
Os árabes que ajudaram a construir o país não existem, os caboclos que dançam com os libaneses, em direção à cidade de Manaus, no barco, no filme “Retrato de um certo Oriente”, são secundários.
Não à toa vivemos, com esses dois filmes, e outros, mais uma “retomada” do cinema nacional. Sem arte a identidade de um povo não existe e pode ser importada de outro país, como ocorre no Brasil, que importa a cultura estadunidense e suas formas de luta, como são as lutas identitárias.
Sabemos do conflito religioso no Líbano, tão bem retratado, e satirizado, por Nadine Labaki, no filme “E agora, aonde vamos?”. Milton Hatoum, na estreia do filme, adaptação de seu romance, ressaltou em sua conta de Instagram, que a atriz libanesa, que faz no filme uma libanesa cristã, é muçulmana e que o ator libanês, que no filme faz um libanês muçulmano, é cristão.
Hatoum ainda acrescentou à essas informações: “Quando o amor supera os dogmas e preconceitos... Assim ocorre na arte; e assim deve acontecer na vida.”
Qualquer brasileiro que entenda o Tropicalismo, por exemplo, entende o Brasil construído, e composto, por diversos. Zélia Gattai descreve bem esse Brasil multifacetado na sua obra autobiográfica, “Anarquistas, graças a Deus”*.
Hoje, essa identidade “multi” foi substituída por algo chamado “letramento”, que significa sabermos o jeito correto de abordar um assunto, sem questionamentos ou debates.
Em Portugal, usa-se muito uma palavra diferente de “letramento”, usa-se “literacia”, que significa conhecer um assunto, que não significa saber “o” jeito certo de sabê-lo.
Para honrar um povo, para fazer reparações históricas aos grupos historicamente oprimidos, como pretos e mulheres, não deveríamos desonrar outros povos, culturas e religiões.
Valorizemos o cinema nacional, a identidade nacional e as lutas coletivas, tanto no Brasil, quanto na nossa “casa comum”, como Leonardo Boff denomina nosso planeta.
Embora meus avós sejam libaneses e tenham feito essa viagem para a mesma região do Brasil, em período anterior ao do filme, assistindo “Retrato de um certo Oriente”, senti saudades de uma cabocla acriana que foi fundamental para criar a primeira e segunda geração da família Jatene, no Brasil. Mariana era analfabeta e aprendeu a falar árabe com perfeição, ao entrar para a família, como afilhada dos meus avós e, depois da viuvez da minha avó, como parte da “equipe” de mulheres da família que criou as duas gerações. As cenas de diálogos entre as mulheres, no barco que rumava à cidade de Manaus, me trouxeram às inúmeras conversas que tivemos na minha infância, ela faleceu aos 64 anos, quando eu tinha 14 anos. A ela dedico esse texto, o desejo de que o Brasil volte a ser coletivo e plural, se orgulhe disso e que nosso cinema permaneça vivo, a nos retratar em nossa
multiplicidade, e que não tenhamos que viver perpetuamente a retomá-lo.
Antes de concluir, gostaria de indicar um curto “podcast” com Farah Nabulsi, a britânica, descendente de palestinos, diretora do maravilhoso filme “O professor”, que foi o filme de estreia da Mostra Mundo Árabe de Cinema, em 2024. Um filme que sem ser um documentário, documenta uma realidade que precisa ser reparada. Um filme que, sem ser panfletário, humaniza todos
os envolvidos na tragédia criada pelo colonialismo sionista (que vem atacando também o Líbano), propiciada pelo colonialismo britânico.
Neste link do “podcast” com Farah Nabulsi: clique aqui.
Neste link para verificar os cinemas que estão a exibir “Retrato de um certo Oriente” e “Ainda estou aqui”. Basta colocar o título do filme na “lupa” de busca, no canto superior direito: clique aqui.
*Por que os ingleses estudam Beatles na escola e nós não estudamos Tropicalismo, Bossa Nova, Samba, Danças Músicas folclóricas e não incorporamos, além da Literatura Brasileira, o Cinema Brasileiro ao currículo escolar, por exemplo?
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Os artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião do Instituto da Cultura Árabe Cristiane Jatene é psicóloga licenciada no Brasil e em Portugal. Terapeuta Fenomenológica-Existencial, especialista em terapia de casal e família. É historiadora e mestranda na Universidade de Lisboa/Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.