"Imagem que se vê em filmes iranianos é humana e poética, completamente diferente do que se vê na mídia"
Icarabe: Quando você viaja para outros países, qual o maior equívoco que se comete ao olhar para sua sociedade?
Massoud Bakhshi: A imagem que a mídia, a ocidental principalmente, dá às pessoas sobre a sociedade iraniana não está correta, e a razão principal para este erro que as pessoas fazem é que a sociedade iraniana é muito aberta, o que difere de outros países islâmicos. O principal ponto é que o islamismo do Irã é muito diferente do islamismo de outros países. Iranianos aceitaram o islã 1400 anos atrás, e ali foi aceita a liberdade e a igualdade entre os países. Nós sofremos de uma longa monarquia antes do islã, e depois disso o som do islã nos trouxe de alguma forma a igualdade entre as pessoas, pretos e brancos, árabes e persas. Iranianos aceitaram isso para se renovar da crueldade e da depressão daquele sistema monárquico.
Icarabe: Isso foi quando o islã surgiu. E quanto à força que o islã ganha com a revolução de 1979?
Massoud: Isso deve ter sido reforçado com a revolução. O país continuava islâmico mesmo no tempo do Xá (Reza Pahlevi), mas ele queria “ocidentalizar” o país e as pessoas não queriam e não aceitavam isso na época. As pessoas ficaram insatisfeitas porque ele queria importar a cultura estadunidense ocidental. As pessoas não gostaram porque esta não estava adaptada à cultura iraniana. Queriam uma mudança mais moderada. Agora, há um detalhe. Você não pode comparar o islã do Irã com o islã da Arábia Saudita ou de qualquer outro país islâmico. De um lado, nossa cultura é antiga histórica e culturalmente, quando falamos da origem persa, e ao mesmo tempo há um componente muçulmano.
Icarabe: Voltando aos equívocos...
Massoud: Outro ponto é que usualmente a mídia ocidental mostra violentas imagens do povo iraniano, o que não é verdade. E isso é uma das maiores razões para que o cinema iraniano seja conhecido em festivais ao redor do mundo. A imagem que se vê em filmes iranianos é a imagem humana e poética, o que é completamente diferente do que se vê na mídia. Para mim, a razão principal de que os filmes iranianos tenham sido recebidos bem e com sucesso pelo mundo é que expressam a imagem real da sociedade iraniana.
Icarabe: E quanto à imagem que é feita do governo de seu país, principalmente depois da eleição de Mahmud Ahmadinejad?
Massoud: Não me interesso muito por política, mas acho que o principal ponto é que ele quer exigir os direitos dos iranianos, e por isso é que não gostam dele no mundo, principalmente nos Estados Unidos.
Icarabe: Há limites impostos pelo governo na produção de cineastas no Irã?
Massoud: No Irã há alguns limites, mas não são colocados pelo governo iraniano. São mais colocados pela cultura enraizada do Irã e das tradições iranianas. Se você fala de violência, e você é um cineasta e quer filmar violência, não é algo aceito pela população. Claro que há limites impostos pelo governo, há um departamento como há em outros países, mesmo nos Estados Unidos, que classificam o filme por idade. O mesmo acontece no Irã, dependendo do assunto. Mas em geral as próprias pessoas, de acordo com sua cultura e suas tradições, não aceitam algumas imagens. Se quiser fazer algo muito violento ou pornográfico, isso não é aceito pela sociedade iraniana. Então, antes do governo, é o público que rejeita assuntos como este.
Icarabe: Então há espaço para uma produção de filmes críticos no Irã?
Massoud: Sim, há muitos filmes críticos feitos no Irã. Talvez você não possa imaginar, mas há filmes críticos, especialmente documentários. Trabalho para um centro de documentário e este centro promove documentários e curta-metragens iranianos. Nos filmes, fazemos discussões sobre mulheres e crianças iranianos, problemas econômico-sociais.
Icarabe: E sobre religião?
Massoud: Há alguns limites, mas há filmes que criticam a religião também. Por exemplo, o relacionamento entre religião e política.
Icarabe: Como é feito o investimento nos filmes, quem é o maior investidor?
Massoud: Há um grande investimento do governo em cinema. Isso não é conhecido. Na Europa, por exemplo, as pessoas pensam que são todos filmes independentes e de cineastas independentes, mas não podemos considerar isso. Mesmo (Abbas) Kiarostami começou a filmar com investimentos do governo. Há 25 anos, dois ou três anos depois da revolução, o Estado montou um centro, o Iranian Young Cinema Society, e esse centro tem 52 representações em diferentes cidades. É uma grande organização para investir no cinema. Os jovens têm dois anos de aulas sobre a teoria do cinema. Depois desses dois anos, cada um realiza sua produção e manda seus filmes para um festival que acontece em Teerã. Os melhores ganham prêmios e os diretores ganham dinheiro para fazer um segundo filme ou então um longa-metragem.
Icarabe: Então podemos dizer que há uma produção considerável de cinema no Irã?
Massoud: No Oriente Médio, somos os maiores. No mundo, somos quinto ou sexto, depois de Estados Unidos, Índia, França e Alemanha. E desde 20% a 100% do filme é bancado pelo governo. Mesmo quando se é independente, você pode receber uma parte do dinheiro.
Icarabe: E como você explica esse interesse enorme dos iranianos pelo cinema e por fazer cinema?
Massoud: Isso depende, lógico, do sucesso do cinema iraniano fora e também dos investimentos do Estado. Podemos considerar que no Irã não é tão difícil como em outros países produzir um filme. Na Europa ou nos Estados Unidos não é fácil achar investimentos e é muito cara a produção, enquanto que no Irã, por causa do subsídio do governo, como é feito com o leite e o pão, para um negativo de filme, por exemplo, as coisas se tornam um pouco mais fáceis.
Icarabe: Você já conhecia o Brasil? Tem algum interesse de filmar por aqui?
Massoud: Acho que há uma grande razão para procurar co-produções na América Latina e países do sul, pois todos temos algo em comum. Não quero dizer que somos países do Terceiro Mundo, pois esse é o modo pelo qual eles querem dividir o mundo hoje, mas o fato é que não estamos em países europeus ou norte-americanos e, por isso, somos diferentes de alguma forma.
Icarabe: No ano passado houve uma cúpula entre países árabes e latino-americanos para tentar, de alguma forma, aproximar essas duas regiões. O Irã poderia seguir esse caminho?
Massoud: Sim, especialmente com a cultura. Acho que há algo em comum entre os dois povos. Por causa da distância geográfica estamos longe, mas estamos juntos de alguma outra forma. Assisti a alguns filmes brasileiros e, por exemplo, achei “Central do Brasil” muito parecido com filmes iranianos. Usualmente, no cinema americano você vê algo que é feito de acordo com fórmulas, mas o cinema iraniano e o cinema brasileiro, o cinema dos países do sul, vêm da realidade dessas sociedades e é por isso que você pode acreditar e tocar nesse objeto e se simpatizar com esse objeto. Não só em cinema, mas em outros aspectos da cultura, como a literatura. E isso é algo que pode unificar as pessoas, mais do que a política. Políticas mudam dia a dia. Eles fazem um acordo hoje e esquecem o que fizeram ontem, mas a cultura permanece.
Icarabe: Você tem dois documentários sobre o Japão – “Hi, Tókio” (2000) e When Behrang meets Ayoumi (2001). Por que o interesse especial?
Massoud: Eu estive no Japão em 1999 e explorei uma viagem maravilhosa. O Japão é tão longe, mas ao mesmo tempo tão próximo de meu país. Encontrei muitas coisas em comum com a cultura iraniana, principalmente com a cultura antiga iraniana. A forma que pensam sobre a religião, sobre a natureza, o respeito às raízes. Agora, no Irã, há uma grande discussão e uma batalha entre tradição e modernidade. Acho que Brasil deve sofrer dessa doença, penso eu, de que para se modernizar a pessoa deve por de lado algumas tradições. No entanto, essas tradições a pessoa não pode esquecer. Acho que o Japão é um bom exemplo. É um país muito moderno, mas ao mesmo tempo mantém grandes tradições. Pode ser um grande exemplo para outros países, especialmente países com uma tradição de cultura antiga. Queria mostrar esses aspectos da cultura japonesa, pois para mim é maravilhoso estar em um país moderno mas que mantém sua tradição viva. Geralmente as pessoas em países em desenvolvimento não querem manter suas tradições, pois consideram essas tradições coisas velhas e fora de moda.
Icarabe: Há iniciativas de parcerias de produções cinematográficas com países árabes?
Massoud: Há dez anos foi organizado um festival de cinema de países islâmicos. Dois anos atrás organizamos uma retrospectiva de filmes palestinos e libaneses. Foram muito bons documentários. E no momento estamos sim procurando cooperação com países islâmicos, e mesmo com comunidades islâmicas, mesmo na América Latina, Suriname e Brasil.
Icarabe: Entre a sociedade iraniana permanece algum ressentimento em relação aos árabes por causa da guerra com o Iraque?
Massoud: Agora não. Acho que aquilo foi um grande erro. Mas acredito que não há mais ressentimento, até porque com a mudança de gerações isso acaba. E o povo iraniano sabe que o povo iraquiano, mesmo os soldados, eram vítimas do Estado de Saddam na época. Na verdade, eles odeiam Saddam Hussein e não pessoas, pois aquelas pessoas eram também islâmicas e eles podiam entender e dividir a miséria daquela guerra. Foi algo exaustivo para os dois países e fez dois povos sofrerem muito, oito anos, e isso foi ruim. Nem iranianos nem iraquianos querem repetir isso.
Icarabe: O Irã que você expõem deve surpreender muitas pessoas, principalmente aquelas que vivem nos lados para oeste do mundo. Como os iranianos encaram esses estereótipos que são feitos deles e tentativa de impor uma cultura européia-estadunidense, a qual você se referiu anteriormente?
Massoud: A democracia liberal é um sistema que deveria ser discutido muito, pois este não é um modelo que você pode exportar a todo lugar do mundo. Depende da cultura do povo, da mentalidade e da história desse povo. Há pontos positivos em um sistema democrata, ninguém pode dizer que a liberdade de expressão ou a liberdade social das pessoas deve ser limitada pelo Estado, mas ao mesmo tempo há valores desse sistema que não são comuns a diferentes regiões geopolíticas. Um sistema que responde bem em seu mundo não, necessariamente, responde bem em países do Oriente Médio. Você vê isso. Há países africanos em que há muitas diferenças e guerras internas entre diferentes tribos. Então, você não pode dar-lhes a democracia como uma cura ou uma solução para que todos os problemas sejam resolvidos. Deve-se analisar a história e a cultura do país e, com isso, encontrar a maneira que se adaptará a essa cultura, a essa região e a essa história. Isso deve surgir do povo em si. Não pode ser exportado. Eles falam há mais de quatro anos que vão exportar democracia para o Afeganistão e o Iraque e o que se vê é que nada mudou.
Icarabe: As mais recentes escolhas políticas do povo no Oriente Médio mostram essa insatisfação com a imposição de modelos “ocidentais”?
Massoud: Tirando o fato de eu concordar ou não com Ahmadinejad ou com o Hamas, isso mostra algo. Provavelmente, em dois ou três anos, o povo escolherá outro presidente ou outro partido, mas esses resultados mostram que não querem concordar com esse modelo. Querem procurar por seu próprio modelo. Não se pode exportar um modelo igual e unificado, especialmente em um lugar em que a cultura não é a cultura ocidental, mas uma coisa muito diferente. Até hoje, depois de 50 anos de presença americana no Japão, há ainda intelectuais que cometem suicídio contra essa presença. Você pode dizer que Japão é um aliado próximo dos Estados Unidos, mas há um fogo embaixo das eras da cultura japonesa que está viva e mostra a realidade dessa sociedade. Não tem nada a ver com modernidade, indústria ou sucesso econômico. As pessoas na Palestina estavam certas de que se votassem no Hamas não teriam ajuda da Comunidade Européia ou dos Estados Unidos, mas mesmo assim escolheram o Hamas. Eles acreditavam em algo e queriam respeitada a crença, mesmo que não se goste do resultado da eleição.