Brasileira convertida fala de preconceitos sobre a religião
Icarabe entrevista brasileira de família católica que, depois de assumir posição agnóstica, começou a praticar o islamismo. Ela discute preconceitos e estereótipos que são criados sobre a religião.Por Gilmar Rodrigues Esperando Maria Moreira, brasileira convertida ao islã, para a entrevista no centro do Rio, eu estava com uma preocupação: como cumprimentá-la? Eu já havia conversado com alguns homens muçulmanos, com diferentes graus de devoção, mas era a primeira vez que eu teria um contato próximo com uma mulher devota da fé islâmica. Cumprimentar com dois beijinhos nem pensar, isso eu já previa. Felizmente, a caminho do restaurante do Clube de Engenharia Civil onde conversamos, ela me ligou e advertiu que muçulmanos de sexos opostos não se cumprimentam com toques corporais. Fiquei mais aliviado. Questão resolvida, ela chegou vestindo hijab e, como era de se esperar, chamando a atenção por onde passava. Foi uma primeira lição de como o Brasil desconhece e estranha as manifestações religiosas muçulmanas. Durante o desenrolar da entrevista, muitos estereótipos vão sendo derrubados por Maria que, sem fazer proselitismo religioso, defende o Islã, a paz, o debate aberto e o conhecimento como forma de libertação dos preconceitos. Maria Moreira é engenheira civil - não é descendente de árabes - de família católica, mas não muito praticante. Quando criança, ela às vezes freqüentava a igreja e gostava de ler a bíblia em quadrinhos. Na fase adulta, até 20 e poucos anos, virou agnóstica e aos 30 converteu-se ao islamismo. Hoje ela não só segue os preceitos, as regras, a filosofia da sua religião como a estuda e mantém um site de informação sobre o Islã (http://islamicchat.org). O site, que mantém um dinâmico fórum de debates, é mais voltado às mulheres, mas não só. No fórum de discussão opinam os dois sexos. Muitos dos assuntos tratados dizem respeito a todos. Há diversos artigos e com títulos instigantes como “As Raízes Islâmicas Esquecidas Dos Escravos”, “Entendendo As Diretrizes Políticas Islâmicas”, “Aids e Circuncisão”, “Entender o Fenômeno Talebã: Uma Tarefa Crucial Para O Movimento Islâmico”, “Muçulmanas e o Dever De Participação Na Sociedade” e “A Imagem Distorcida Da Mulher Muçulmana”. Maria conta que a sua conversão deu-se por etapas. Certa vez em Salvador, onde tirava férias, conheceu um grupo de egípcios que trabalhava num petroleiro. Percebeu que eram pessoas muito simpáticas e agradáveis. Quando soube que eram muçulmanos levou um choque, “mas então não eram os monstros, os opressores de mulheres, e sim pessoas normais que tinha à sua frente?”, pensou. Como é uma pessoa curiosa, procurou ler sobre o islamismo para debater com o novo grupo de amigos. A princípio houve um proselitismo por parte deles, mas depois as conversas evoluíram para o debate. Quanto mais ela lia sobre o islamismo, mais achava interessante. Começou a ter dúvidas sobre sua posição agnóstica e passou a considerar a existência de Deus. Depois a aceitou. Como o motivo que a levou a voltar a acreditar em Deus foi o Islã, por coerência, achou que deveria abraçar essa religião. E assim o fez. Deixou de ir à praia, começou a usar roupas mais cobertas e acabou casando-se com um egípcio. Com o marido, viveu cinco anos no Rio de Janeiro e sete no Egito. No final de 2005, ela voltou para o Rio, o marido permanece em Alexandria. Um dos motivos que a fez voltar para o Brasil foi não ter conseguido trabalhar por lá. Esqueçam as falsas imagens do mundo árabe: as mulheres lá trabalham sim, mas o desemprego é muito grande. Se não é fácil nem para um egípcio conseguir emprego, imaginem para um estrangeiro. Como detesta ser dona de casa, a falta de uma ocupação a incomodava muito. A reação dos egípcios, diante de uma não-descendente de árabes que virou muçulmana era, na grande maioria das vezes, de contentamento. Ficavam felizes, mas pensavam que ela não conhecia a religião, uma das perguntas mais comuns que faziam era “você sabe fazer as orações”? Evidentemente sabia. Segundo ela, sabe mais sobre o Islã que muito egípcios. “A pessoa vai para um país árabe e as pessoas tentam te empurrar os costumes árabes. Confunde-se muito o que é da cultura árabe e o que é islâmico. Narguilé e dança do ventre, por exemplo, não têm nada de islâmico. Em pequenas cidades no interior do Egito é comum colocarem as mulheres dentro de casa e restringir seus movimentos, não mandam as meninas para a escola. Eu demonstrava que isso não tem nenhuma base religiosa. As esposas do profeta estudavam, uma delas, Aisha, era alfabetizada e tornou-se o primeiro modelo de jurista da religião muçulmana. Quando alguns queriam justificar o machismo pela religião, eu logo citava os exemplos da vida de Mohamed e eles ficavam quietos”. Sobre a poligamia tão questionada no Ocidente, e permitida na fé islâmica, Maria chama a atenção para uma regra que poucos conhecem. A mulher tem a opção de exigir a monogamia no contrato de casamento. Foi isso que ela fez, exigiu que o marido abrisse mão de mais esposas. Mas isso não a preocupa, até porque a poligamia está em virtual desuso nos países de maioria muçulmana. Em sua opinião há um clima de suspeita e perseguição contra os muçulmanos no mundo inteiro. “Aqui no Brasil, tem muita gente na comunidade que está com medo de ações anti-islâmicas violentas. As mulheres mais jovens não querem usar o véu para não serem vítimas de violência. Eu mesma já sofri uma tentativa de agressão. As agressões verbais são diárias. No metrô do Rio, seguidamente, param do meu lado, principalmente evangélicos, e cantam hinos ‘para espantar demônios’. Eu nem ligo mais, não respondo às agressões”. Mesmo antes dos atentados ao World Trade Center, Maria era sempre parada em portas de bancos. Ela lembra que, certa ocasião, foi ao shopping e notou que todos os seguranças atrás dela começaram a se movimentar e a falar nos walk-talkies freneticamente. Para ela, a aceitação aos muçulmanos no país melhorou após a novela “O Clone” da Rede Globo, apesar de muitos devotos terem reclamado de simplificações e estereótipos negativos expressos pela telenovela de Glória Perez. Alguns fatos derivados da falta de informação sobre a religião no Brasil são apenas pitorescos. Muita gente ao vê-la vestida com hijab acha que ela é estrangeira e dizem: “você fala bem o português, veio pequenininha pra cá”? No Brasil, ainda é difícil para uma mulher abraçar o Islã. No caso dela, as reações da família foram negativas. A sua mãe chegou a pensar que Maria havia sofrido lavagem cerebral, que estava sendo drogada para aderir à religião. “Ela dizia que se eu casasse com um muçulmano tinha que andar atrás dele, se eu atrasasse para chegar em casa o marido iria me bater, essas coisas. Ela não se conformava com a minha escolha”. Logo depois da adesão, a cobrança de amigos e parentes foi enorme. “As pessoas acham que quando a gente se converte tem resposta para tudo, mas a gente não sabe tudo, eu me identifiquei com um princípio. Se as pessoas passassem a conhecer o Islã, parariam de me infernizar com essas perguntas”. Por isso uma das principais intenções do Islamic Chat é debater e trazer informação sobre a religião. Essa falta de informação, segundo ela, é muito grande também no mundo árabe. Isso se deve a falta de questionamento, onde a maioria muçulmana acha que já sabe tudo, não há debate. Essa livre discussão na internet provocou uma certa celeuma na comunidade muçulmana brasileira. “O fato de uma mulher sem origem árabe estar administrando o site incomodou uma parcela dos árabe-muçulmanos daqui. Diziam que eu era casada com um religioso, como se as idéias que expresso não pudessem sair da minha cabeça”. Não houve apenas reações dos devotos, até mesmo um pastor protestante chegou a afirmar que Maria era a testa-de-ferro da tentativa de islamização do Brasil. Contudo, as reações contrárias foram diminuindo e hoje até já existem mais sites na internet debatendo a religião islâmica. Para Maria, sempre há espaço para o questionamento, mesmo dentro de uma religião. Sobre os acontecimentos dos últimos anos, quando o mundo árabe e muçulmano foi atacado violentamente, ela acha que os muçulmanos têm direito de se defender. “A luta contra um exército uniformizado que representa a força opressora é legítimo. Mas não há lógica em explodir uma bomba no meio de uma fila de crianças para pegar bala. Mesmo que fosse num jardim de infância norte-americano. Isso não é jihad. Não se pode matar uma pessoa só porque nasceu no mesmo país de um tirano”. Para Maria Moreira, os muçulmanos que praticam atos de violência que atingem civis estão fazendo o trabalho do inimigo. “O grupos exaltados usam o Corão para justificar a violência porque hoje não há mais liderança, cada um interpreta como quer. Se eu estou com raiva do meu vizinho, vou achar um versículo nos livro sagrado que justifique a violência”. Em tese, ela é a favor de um Estado islâmico se a maioria da população for muçulmana. Mas hoje Maria acha que há tanto atraso no mundo árabe, causado pelo colonialismo, guerras e governos ditatoriais, que a aplicação da xariá seria muito perigosa. Poderia ser usada para justificar uma ditadura de ignorantes das leis do Profeta, como aconteceu no Afeganistão com Talibã.