Em noite de poesia e dança, uma reflexão sobre a cultura árabe
Na terceira edição do Dîwân do Icarabe, que ocorreu no último dia 18, a riqueza das diversas manifestações artísticas fez um retrato da cultura árabe através dos poemas que lhes retratam os dramas e das danças que exprimem o que não pode ser dito por palavras.Quando as luzes se apagaram no teatro da Aliança Francesa, centro de São Paulo, a coordenadora do Dîwân de Poesia e Dança, realizado pelo Instituto da Cultura Árabe e que ganhava sua terceira edição na ocasião, dava o destino da experiência que a platéia teria: iria ao Líbano, Síria, Iraque e Palestina, com seus territórios ainda ocupados. Pelo palco, seriam levados a dramas e angústias de populações que devem viver o seu dia-a-dia, e ainda lidar com dores imensas trazidas por bombas, tiroteios, mísseis, muros e opressão. “Sou árabe ...”, dizia um dos poemas recitados, obra do palestino Mahmoud Darwish, e ali, com a eloqüência das palavras em seqüência poética e os corpos de dançarinas que, sem palavras, davam múltiplos sentidos à cultura árabe, aos espectadores era desvelado uma parte do que é ser árabe, de uma identidade recheada de humanidade nas suas mais diversas formas, onde há festa mas também tristeza e ressentimento, e onde se guarda uma força de resistência. O evento foi dividido em três blocos. No primeiro, a poesia antiga se misturou à contemporânea. Poetas andaluzes, fossem árabe-muçulmanos, judeus ou cristãos, e uma arte poética elevada. Um sevilhano que viveu no século XII, Al-Tutitli, assim dizia: E ainda me disse, e me deixou sem ação: - Chega de culpar meus olhos, muda a razão!” E eu lhe disse: “Mha senhor não te ofendas não, Se não queres, juro não falo mais de agravos - virei muçulmano, não fala mais o mago.” Depois, excertos das “Mil e Uma Noites”, a coreografia e dança de Ia Khalle e o primeiro poema da noite de Mahmoud Darwish, “Poema para Beirute”. Em seguida, Leandra Yunis, do Grupo EntreVentres, fechou o bloco com a Dança do Jarro. Com a música, a linguagem da dança e do corpo, ela fez uma alusão à água, que passava de jarro para jarro com movimentos lentos, medidos, exatos, perfeitos. A água, que para os árabes, povo que teve origem no deserto, tem um significado único. Significa, de fato, a vida. O segundo bloco foi aberto com Darwish, “Carteira de Identidade”. Aqui, não há sutileza. É uma afirmação corajosa, ainda mais para um palestino. “Registra, sou árabe”, diz ele. O ser árabe é ter “cabelo... negro / olhos... castanhos / traços distintivos / na cabeça, um lenço amarrado / minha mão ... dura feito pedra / arranha quem a tocar”, pois “sou de uma aldeia afastada...esquecida / de ruelas sem nome / seus homens no campo / e na pedreira / Isso incomoda?”. E avisa: “Registra, então! / no cabeçalho da primeira folha / eu não odeio as pessoas / eu não agrido ninguém / mas... se ficar com fome / a carne de meu usurpador eu como / e cuidado... cuidado / de minha fome / e minha fúria”. Depois, um trecho de “Meia-Noite” de Mourid Barghouti, ao que se seguiu a dança Bagdá, com Yunis. Seu corpo não podia ser visto, estava coberto de preto. A dança e a música não eram mais delicadas. Eram duras, doloridas, sofridas, de quem estava preso em seu próprio corpo, em sua própria cidade. No palco, todos com os rostos cobertos, a cabeça baixa, atingidos por um som grave, fúnebre, lento, como se fosse o sofrimento a que estivessem sendo imputados. Em seguida, depois dos poemas “Não iremos embora”, de Tawfiz Az-Zayad, e “Para minha mãe”, de Darwish, abriu-se o terceiro bloco. Márcia Dib trouxe a alegria das festas e da esperança de vida na dança Nado. O ritmo e as palmas se espalharam. O ser árabe havia contagiado a platéia. Wafah El Hage e Lelia, então, entoaram com todos a poesia de Gibran Khalil Gibran “O Poeta”, que expõe a condição de muitos, mas especialmente dos árabes. Diz, em trecho: “Sou estrangeiro neste mundo / Sou estrangeiro, e há na vida do estrangeiro uma solidão pesada e um isolamento doloroso. Sou assim levado a pensar sempre numa pátria encantada que não conheço, e a sonhar com os sortilégios de uma terra longínqua que nunca visitei”. “Sou um estrangeiro neste mundo”, ouvia-se, e os versos terminam assim: “Sou um poeta que põe em prosa o que a vida põe em versos, e em versos o que a vida põe em prosa. Por isso, permanecerei um estrangeiro até que a morte me rapte e me leve para minha pátria”. O encerramento estava próximo. Apenas pequenos trechos de dois poemas, de Waly Salomão “Amante da Algazarra”, um dos muitos brasileiros que tem origem nas terras conhecidas como árabes, e “A sultana do amor”. As dançarinas, então, fizeram a “Saudação de Despedida”, com movimentos leves, à meia luz. Acabava mais um Dîwân do Instituto da Cultura Árabe. Cada passo, gesto, verso e movimento mostraram de alguma forma o que é ser árabe. A cada aplauso da platéia, cada dança e poesia: “Registra, sou árabe”. Participaram da terceira edição do Dîwân do Icarabe o “Mabruk! Grupo de Danças Folclóricas Árabes”, Projeto Entreventres , Francisco Miraglia, Nabil Arida, Nael Qassis, Rada Smaili, Wafah Mustafa El Hage, Marcelo Tannus, Samia Arida e Fabio Trabulsi. A coordenação foi de Lelia Maria Romero e a direção dramatúrgica de Chico de Assis.